Garantias do Consumo

2020: sindemia e resistência do Direito do Consumidor

Autores

  • Fernando Rodrigues Martins

    é professor da graduação e da pós-graduação da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) mestre e doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) membro do Ministério Público do Estado de Minas Gerais e presidente do Brasilcon.

  • Clarissa Costa de Lima

    é juíza de Direito do TJ-RS doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul especialista em Direito Europeu dos Contratos pela Universidade de Savoie ex-presidente do Brasilcon (2012-2014) diretora adjunta da Revista de Direito do Consumidor e vice-presidente do Brasilcon (2020-2022).

  • Guilherme Magalhães Martins

    é professor associado de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito/UFRJ professor permanente do programa de doutorado em Direito Instituições e Negócios da UFF pós-doutor em Direito da USP doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj procurador de Justiça no MP-RJ segundo vice-presidente do Instituto Brasilcon e diretor do Iberc.

  • Sophia Martini Vial

    é doutora pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul assessora parlamentar no Distrito Federal e diretora secretária-geral do Brasilcon.

30 de dezembro de 2020, 8h01

O ano de 2020 foi extremamente peculiar aos consumidores e também para o Direito do Consumidor. Enquanto a população ainda sofre sérios abalos em decorrência da crise pandêmica instalada mundialmente a partir de fevereiro, o Direito do Consumidor consegue se projetar como disciplina resistente na promoção do vulnerável, mesmo e apesar dos 30 anos de vigência do CDC, quando concebido no início da década de 90 em anteprojeto vocacionado para sociedade bastante diferente da contemporânea.

O escopo deste texto é proceder reflexão retrospectiva do ano 2020 concentrando as observações no direito do consumidor, em três perspectivas que nos parecem proeminentes: 1) as reações legislativas frente à pandemia da Covid-19 utilizando como meio de apoio o direito dos consumidores; 2) as ações institucionais para a defesa dos consumidores; 3) o alargamento da dogmática consumerista.

Para a primeira perspectiva é propositiva a noção de sindemia, neologismo derivado junção das expressões sinergia e povo [1]. Na sindemia são levadas em deferência não apenas as condições de saúde de cada pessoa (v.g. comorbidades), senão fatores sociais que contribuem para a expansão dos efeitos negativos de determinada diagnose (v.g., ausência de acesso à água potável, serviços sanitários, moradia). Nesse sentido, desigualdades sociais representam fatores relevantes para a disseminação do SARS-CoV-2. De agregar, pois, à importância internacional de pandemia declarada pela OMS, a compreensão sindêmica sem se descurar da observação que são os vulneráveis e hipervulneráveis (desiguais) os mais expostos a este contexto caótico [2].

A Covid-19 atingiu drasticamente a humanidade (vida, saúde e segurança das pessoas) [3], assim como as incontáveis conquistas e projeções da civilização corrente. Isso equivale a dizer que os sistemas econômicos, científicos e sociais da globalidade (produção, fabricação, tecnologia, logística, transportes, turismo, cultura, educação, esportes etc.) foram diretamente afetados. Ademais exasperou a tensão "habitante-cidade", provocando maiores complexidades (riscos e temores) e transformando costumes e hábitos que objetivam ressignificar o valor da casa e do trabalho, este último internalizado perante a família. 

Ao sistema político cabia reagir obviamente através de leis (ordem), estabelecendo diretrizes para enfrentamento da superveniência do "anormal" [4], mediante comandos (direito objetivo), permissões (direitos subjetivos) e qualidades (justiça) que contribuíssem nas tomadas de decisões pelas instituições públicas e sociedade civil frente às multifárias relações humanas, comunitárias e jurídicas. Vale dizer: as leis são pontos essenciais que, entretanto, carecem de intepretação para atribuição de sentido [5].

Destaquem as relações jurídicas que envolvam o consumidor como as mais sujeitas aos impactos da pandemia, notadamente quanto ao tema de prestação de serviços e desabastecimento de produtos essenciais. Contudo, não se viu neste ano iniciativa legislativa ou mesmo política pública que garantisse o reequilíbrio e harmonia entre direitos dos consumidores e fornecedores. O Código de Defesa do Consumidor, forte na própria doutrina e jurisprudência, cumpriu isoladamente a carga de efetividade de direitos dos consumidores.

No setor de transporte aéreo houve clara opção pela proteção das concessionárias. A edição da MP 925, posteriormente convertida na Lei 14.034/20, possibilitou às companhias aéreas a obrigação de reembolsar os valores das passagens adquiridas pelos consumidores no prazo de 12 meses contados a partir da data do voo cancelado. Para tal situação não estabeleceu qualquer multa por conta do cancelamento da prestação de serviços pela fornecedora, muito embora ao consumidor as penalidades tenham sido mantidas na hipótese de desistência. Entretanto, é na redação dada pela nova lei ao artigo 251-A do Código Brasileiro de Aeronáutica que se encontra séria atecnia, porquanto se vincula indenização por dano extrapatrimonial à efetiva demonstração de prejuízo e sua extensão, rompendo com o preceito óbvio de que para compensação de lesões à situação jurídica existencial da pessoa basta a violação de interesse jurídico tutelado, enquanto direito da personalidade [6].

O mesmo se deu através da MP 948/20, também convertida na Lei nº 14.046/20, que, versando sobre reservas e eventos dos setores de turismo e cultura, vinculou a restituição dos valores pagos pelos consumidores ao não oferecimento de nova data para a prestação de serviços ou à negativa de disponibilização de crédito para uso ou abatimento em outras atividades por parte dos fornecedores. O reembolso também se dá no prazo de um ano, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública.

A legislação deixa o leque de opções quanto à restituição ou ao cumprimento das obrigações a serem adimplidas à disponibilidade exclusiva do fornecedor, reconhecendo o cancelamento do evento indiscriminadamente como caso fortuito e força maior e, à vista disso, tornando incabíveis processos administrativos sancionatórios pelos órgãos públicos de proteção ao consumidor, bem como a reparação por danos morais, salvo na hipótese de má-fé.

À luz da Constituição Federal, esta última legislação tem pontos sérios de invalidade valorativa, pois trata de mitigar a atuação do Estado na promoção dos vulneráveis, enquanto direito fundamental (CF, artigo 5º, inciso XXXII) [7], assim como impede compensação por lesões existenciais de forma generalizada (CF, artigo 5º, inciso XXXV) [8], exigindo que o consumidor comprove má-fé do fornecedor, quando o correto seria o abuso.

O PL 1.179/20, convolado na Lei 10.014/20, tratou do regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado (RJET) e tem o mérito em estabelecer diretrizes de segurança para situações supervenientemente obstaculizadas pela pandemia. No que respeita aos consumidores, contudo, restringiu o direito de arrependimento (CDC, artigo 49) para situações de entrega domiciliar. Muito embora a regra fosse temporária, arranhou a simbologia promocional dos vulneráveis que ao adquirirem produtos sem acesso físico ao objeto comprado permanecem impossibilitados em enjeitá-lo (retorno ao princípio caveat emptor). Temas assim são melhor solvidos na experiência do dia a dia entre os próprios interessados, dada a singularidade dos negócios, não fazendo sentido a alteração do microssistema.

São essas as movimentações legislativas com maior ênfase neste ano e, pelo que se observa, desprovidas da garantia de efetividade aos direitos dos consumidores. Ao contrário, há nítida percepção de retrocessos. Cabe aqui a lembrança que desde 2012, no Senado Federal, e a partir de 2015, na Câmara dos Deputados, tramita o PL 3515/15, com disposições normativas extremamente pertinentes à situação de milhões de desempregados e superendividados, contudo entrando em pauta para votação (e ainda não votado) somente neste mês de dezembro.

Muitos outros temas poderiam ser objeto de incisiva temática legislativa. Dois registros são relevantes: o transporte coletivo urbano (e a prevenção ao contágio) e os serviços privados de saúde explorados por operadoras e cooperativas.

É essencial nos transportes coletivos urbanos, especialmente ônibus, a adoção de medidas preventivas e precautórias à propagação da pandemia, sendo imprescindível o aumento da frota como forma de evitar aglomerações. Todavia, em muitas cidades o número de veículos foi até reduzido em reverência aos pleitos das empresas. Aqui há o manifesto risco de contágio da população de usuários de serviços públicos que se vê superdimensionada ao ser transportada.

O direito fundamental de ir e vir, assegurado na legalidade constitucional, se faz em diálogo coordenado com os pressupostos tanto estabelecidos na legislação que versa sobre a concessão e permissão de serviços públicos (Lei 8.987/95), como ainda pelo Código de Defesa do Consumidor e Código Civil, restando suficientemente claro que a prestação de serviço de transporte deve ser adequada, eficiente, segura e contínua. O poder público ao insistir na referida prestação de serviços tal como está contribui acendradamente para contágios, impactando todo o sistema de saúde.

No que respeita aos serviços privados de saúde, não passou despercebido que as operadoras e cooperativas que exploram lucrativamente o setor tiveram ganhos significativos frente a outros nichos regulados. Com o advento da pandemia, logo as intervenções eletivas (bastante corriqueiras), assim compreendidas aquelas não urgentes ou não emergenciais, foram suspensas.

Em contrapartida, além do nível de inadimplência dos usuários continuar linear (sem aumento), sobejaram maiores demandas por parte de novos consumidores à procura da segurança proporcionada pela iniciativa privada [9], mesmo que sob o modelo de contratos coletivos, opção de preferência das operadoras, já que os reajustes não são regulados pela ANS.

A adoção de práticas como a telemedicina e a liberação parcial do fundo garantidor são demonstrações claras que as exigências às operadoras foram relativizadas, enquanto as parcelas mensais devidas pelos usuários não tiveram descontos proporcionais ou mesmo seguiram medidas de mitigação às sanções contratuais pelo inadimplemento, evitando-se solução de continuidade aos consumidores sem capacidade de pagamento [10].

A segunda perspectiva remonta à atuação institucional dos órgãos vinculados à promoção dos consumidores. Há nítida verificação de descompasso entre determinadas políticas adotadas pelo Ministério da Justiça com as finalidades administrativas dos demais organismos públicos. A referência a "deveres de proteção do Estado" aos direitos fundamentais dos consumidores não pode ser abandonada, já que há status de envergadura constitucional. Promoção dos vulneráveis é dever fundamental do Estado [11].

Em 2020, a recriação do Conselho Nacional de Defesa dos Consumidores através do Decreto nº 10.417/20 foi alvo de percuciente crítica, haja vista a introdução de temas desconexos ao dever fundamental de proteção aos consumidores [12].  

Vale a lembrança que na edição do Decreto 2.181/07, que regulamenta o Código de Defesa do Consumidor, o princípio da democracia [13], verdadeira causa subjacente do sistema federativo e cooperativo, foi concretizado como garantia de constituição do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. É esse o palco fundamental onde a única hierarquia constitucionalmente aceita é aquela vertida ao interesse público de defesa do consumidor.

Sem embargo disso, Procons, Defensorias Públicas, Ministérios Públicos e entidades civis de proteção ao consumidor cumpriram exitosamente as funções tocadas pelo sistema jurídico. Questões relacionadas a contratos de prestação de serviços de ensino, abastecimento em supermercados e farmácias, equipamentos de proteção individual e segurança, abuso em preços, sobreendividamento dos consumidores e relações bancárias representaram assuntos densamente enfrentados por tais órgãos e entidades.

A terceira perspectiva é relacionada às novas dimensões da dogmática consumerista. Mesmo em ano abalado por fortes variações econômicas impactantes, professores de Direito do Consumidor reeditaram obras anteriores [14] e lançaram novas pesquisas [15]. A lista não pode ser exaustiva, pois o espaço é singelo, contudo vale o destaque a três excelentes produções coletivas: "Diálogo das fontes: novos estudos sobre a coordenação e aplicação das normas no direito brasileiro" (Editora RT), "O direito do consumidor no mundo em transformação" (Editora RT) e "Direito do Consumidor 30 anos do CDC: da consolidação como direito fundamental aos atuais desafios da sociedade" (Editora Forense).

 


[1] SINGER, Merrill. Introduction to syndemics: a critical systems approach to public and community health. San Francisco: Jossey Bass, 2009.

[2] MENDES, Eugênio Vilaça. O lado oculto de uma pandemia: a terceira onda da COVID-19 ou o paciente invisível. Veja https://www.resbr.net.br/o-lado-oculto-de-uma-pandemia-a-terceira-onda-da-covid-19-ou-o-paciente-invisivel/#.X-pQnNhKiy. Consultado em 28-12-2020.

[3] Ministério da Saúde aponta neste final ano de 2020 alarmante número de 18.479 para diagnósticos confirmados  e 191.139 óbitos oficialmente declarados. Veja em https://covid.saude.gov.br consulta em 28-12-2020.

[4] Adotando aqui linha mais formal TELLES JUNIOR, Goffredo. Iniciação na ciência do direito. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 18.

[5] ATIENZA, Manuel. El sentido del derecho. 6ª edición. Barcelona: Ariel, 2010, p. 268.

[6] MIRAGEM, Bruno. Direito civil: responsabilidade civil. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 173.

[7] SILVA, Jorge Pereira da. Deveres do Estado de protecção de direitos fundamentais: fundamentação e estrutura das relações jusfundamentais triangulares. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015.

[8] DIDIER JUNIOR, Fredie. Direito à inafastabilidade do Poder Judiciário. In: LEÃO, Adroaldo; PAMPLONA FILHO, Rodolfo (coords.). Direitos constitucionalizados. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 172

[10]Ver nesta mesma plataforma GREGORI, Maria Stella. O impacto do novo coronavírus nos planos de saúde no Brasil. Em https://www.conjur.com.br/2020-jul-01/garantias-consumo-impacto-coronavirus-planos-saude-brasil. Consulta em 28-12-2020.

[11] Para tanto ver NABAIS, José Casalta. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do Estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009. Também do mesmo autor: Por uma liberdade com responsabilidade: estudo sobre direitos e deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007.

[12] MORISHITA, Ricardo; SODRÉ, Marcelo Gomes; PFEIFFER, Roberto Augusto Castellanos. Conselho nacional de defesa do consumidor: uma chance perdida? Ver: https://www.conjur.com.br/2020-ago-12/garantias-consumo-conselho-nacional-defesa-consumidor-chance-perdida. Acesso em 28-12-2020.

[13] FILOMENO, José Geraldo Brito. Consumidor e cidadania: agente político e econômico. In: Doutrinas essenciais de direito do consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 237/242.

[14] É o caso de Bruno Miragem; Cláudia Lima Marques; Flávio Tartuce e Guilherme Magalhães Martins

[15] Leonardo Roscoe Bessa; Dennis Verbicaro; Joseane Suzart Lopes da Silva e Paulo Roque A. Khouri.

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