Agente policial disfarçado no Estatuto do Desarmamento e na Lei de Drogas
25 de agosto de 2020, 18h04
A Lei 13.964/19 (pacote "anticrime") [1] ensejou inúmeras mudanças na legislação penal e processual brasileira, sendo uma das mais marcantes a figura do agente policial disfarçado. Essa figura foi inserida na legislação penal especial nos artigos 17, §2º, e 18, parágrafo único, da Lei 10.826/03 e no artigo 33, §1º, IV, da Lei 11.343/06.
Pena — reclusão, de 6 (seis) a 12 (doze) anos, e multa.
(…)
Artigo 18 — Importar, exportar, favorecer a entrada ou saída do território nacional, a qualquer título, de arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização da autoridade competente:
Pena — reclusão, de 8 (oito) a 16 (dezesseis) anos, e multa.
Lei 11.343/06: "Artigo 33 — Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
§1º. Nas mesmas penas incorre quem:
(…)
IV — vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente".
Como se nota, o instituto investigativo foi estampado na forma de tipo penal equiparado no Estatuto do Desarmamento (crimes de comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo) e na Lei de Drogas (delito de tráfico de drogas).
Agente policial disfarçado qualifica-se como técnica especial de investigação, contida em tipo penal equiparado, a ser realizada exclusivamente por policial investigativo (civil ou federal), independentemente de autorização judicial. Consiste na atuação de maneira dissimulada do policial que, após diligências preliminares que atestem a presença de elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente, recebe arma de fogo ou droga do investigado, confirmando a suspeita e concretizando situação flagrancial da venda ou entrega do objeto ilícito.
O que se observa na atualidade é a utilização de um verdadeiro exército de intermediadores da mercancia do objeto ilícito, o que se chama de tráfico formiguinha. Os criminosos passaram trazer consigo e transportar somente pequenas quantidades de drogas e poucas armas, na porção estritamente encomendada. Deixam as coisas ilegais em esconderijo de difícil descoberta, sem fazer sua guarda ostensivamente para não despertar suspeita, acessando o covil somente no exato momento da relação de compra e venda, e de forma bem rápida. Com isso, praticamente inviabilizam a prisão em flagrante pelo policial, que raramente conseguirá surpreender o criminoso no curto espaço de tempo da negociação sem que para isso tenha que se passar por negociante e induzir o comércio, o que gera flagrante preparado e um delito putativo por obra do agente provocador (artigo 17 do Código Penal e súmula 145 do STF).
Nesse sentido, o agente disfarçado consiste em reação legislativa à sofisticação da conduta dos delinquentes, de maneira a permitir a eficiente atuação do Estado-investigação. Esse é justamente o propósito dos meios extraordinários de obtenção de prova, sendo a grande novidade do disfarce policial, como mencionado, o fato de estar hospedado em um tipo penal.
"Ao eleger essa conduta como crime, de maneira excepcional, o legislador rompe com a necessária bilateralidade inerente ao tráfico, dotando de desvalor penal suficiente a prática de atos unilaterais destinados à dispersão de determinados produtos. (…) A incriminação resulta da antecipação do comportamento delitivo, fruto de um fracionamento normativo apto a caracterizar suficientemente um novo injusto penal. (…) A norma penal erigiu como nova hipótese normativa (suporte fático) uma conduta que produz um resultado jurídico bem delimitado, qual seja, a dispersão daqueles produtos ilícitos, independentemente de serem identificadas outras pessoas no negócio [2].
Nesse caso, ainda que se queira objetar que o agente disfarçado tenha, de fato, contribuído na cadeia causal da conduta delituosa, o fato de o legislador ter tipificado, como crime autônomo, o envolvimento preexistente — por isso, voluntário — do investigado com a venda ou entrega desses artefatos ao policial, já será o suficiente para que se possa atestar o preenchimento de todas as elementares da figura típica" [3].
Contudo, a inovação legislativa não tem o condão de tornar lícita toda e qualquer prisão em flagrante, sendo necessária a obediência aos requisitos legais. Assim, quando o policial não identificado, sem a presença de elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente (seja porque não realizou investigação prévia, ou porque as diligências efetuadas nada constataram), adquire drogas ou armas de indivíduo, que a repassa exclusivamente em razão dessa indução, o crime é impossível e o flagrante é provocado e por isso ilegal.
"Essa observação é crucial para compreender o instituto como uma aposta na atuação profissional dos investigadores policiais e não simplesmente como um expediente capaz de levar ao alargamento de prisões de pessoas desvinculadas da prática de crime" [4].
Já se o policial disfarçado realiza apuração anterior que indica que determinada pessoa exerce comércio de objetos ilícitos e para tanto os guarda indevidamente, se o disfarce policial provocar a conduta de vender a coisa, o que antes seria uma prisão em flagrante ilegal passa a se encaixar no novo crime. O delito resta configurado em razão da realização dos elementos do tipo penal. O que a Lei 13.964/19 fez foi criar nova figura típica decorrente da atuação do policial com disfarce, autorizando a prisão em flagrante pela venda ou entrega induzida (desde que haja elementos previamente colhidos sobre delito anteriormente praticado), e com isso também fornecendo fundadas razões (detectadas antes da entrada na casa) para autorizar o ingresso no domicílio, podendo a justificativa ser dada a posteriori [5].
Antes do pacote "anticrime", diante de simulação policial de comércio da coisa ilícita, o flagrante só era lícito e o crime se aperfeiçoava quando fosse possível comprovar conduta configuradora de crime permanente (conduta esta voluntária e não estimulada pelos policiais) sem necessidade de entrada na casa, a exemplo dos comportamentos de guardar e trazer consigo [6].
Agora, com a entrada em vigor da Lei 13.964/19, por mais que não seja possível achar o esconderijo do objeto ilegal e realizar o flagrante pela manutenção em depósito, ou comprovar que o suspeito transitava anteriormente em outro contexto fático trazendo a coisa consigo, é possível a prisão em flagrante desse criminoso pela venda ou entrega da arma ou droga ao policial.
Nessa linha. foi deliberado na I Jornada de Direito Penal e Processo Penal do CJF/STJ que:
"Enunciado 7 — Não fica caracterizado o crime do inciso IV do § 1º do artigo 33 da Lei 11.343/2006, incluído pela Lei Anticrime, quando o policial disfarçado provoca, induz, estimula ou incita alguém a vender ou a entregar drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à sua preparação (flagrante preparado), sob pena de violação do artigo 17 do Código Penal e da Súmula 145 do Supremo Tribunal Federal".
Para não fazer letra morta o novo dispositivo legal, a interpretação que se deve fazer desse enunciado é que o crime é impossível e o flagrante é provocado somente quando o policial disfarçado realizar a indução inexistindo elementos probatórios razoáveis de conduta criminal pretérita. Já se houver indícios de comportamento criminoso prévio, não derivando a ação delinquente exclusivamente da persuasão do policial dissimulado, configura-se o tipo penal equiparado que admite o flagrante.
A importância maior do instituto é a de permitir que a prisão em flagrante seja incontestavelmente realizada e válida. A essa modalidade chamamos de flagrante parasitário ou acessório, porquanto se vincula necessariamente à existência de elementos probatórios de outra conduta criminosa anterior.
Cabe mencionar que o agente policial disfarçado não atuará de maneira inédita naquela investigação, já que o dispositivo legal exige a presença de elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente. E por isso mesmo fica afastada a alegação de flagrante preparado e delito putativo por obra do agente provocador.
Se o dispositivo do parágrafo contém um tipo penal equiparado ao crime principal do caput, e o investigado pratica a conduta de vender criminalizada por ambos, o conflito aparente de normas resolve-se pelo princípio da especialidade, sendo o delito equiparado especial em relação à infração penal principal, devendo o suspeito responder por aquele.
Por fim, registre-se que a técnica de agente policial disfarçado não se confunde com: a) o agente infiltrado, consistente na atuação dissimulada de policial que se insere em grupo criminoso com objetivo de desarticular sua estrutura, coletar provas e prevenir a prática de novos crimes (previsto na Lei de Drogas, na Lei de Organização Criminosa, na Lei de Lavagem de Capitais e no Estatuto da Criança e do Adolescente); e tampouco com b) a ação controlada, que se traduz no retardamento da ação policial mediante acompanhamento para que se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações (prevista na Lei de Drogas, na Lei de Organização Criminosa e na Lei de Lavagem de Capitais).
[1] Para um estudo completo sobre a matéria: COSTA, Adriano Sousa; FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique; SILVA, Márcio Alberto Gomes da. Pacote Anticrime. Salvador: Juspodivm, 2020.
[2] CUNHA, Rogério Sanches et al. Leis penais especiais comentdas. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1749.
[3] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador:Juspodivum, 2020, p. 130.
[4] CUNHA, Rogério Sanches et al. Leis penais especiais comentdas. Salvador: Juspodivm, 2020, p. 1750.
[5] STF, RE 603.616, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 05/11/2015.
[6] STJ, HC 214.235, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, DJ 30/05/2014.
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