"Fora do padrão"

Trecho ambíguo de decisão no Paraná causa polêmica racial

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12 de agosto de 2020, 12h59

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Na decisão, juíza diz  que réu, "seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta"
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A juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba, afirmou em decisão que um réu, "seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta os delitos e o seu comportamento, juntamente com os demais, causavam o desassossego e a desesperança da população, pelo que se deve ser valorada negativamente".

A sentença foi proferida em junho, mas ganhou repercussão depois que a advogada Thayse Pozzobon, responsável pela defesa do réu, postou em suas redes sociais o polêmico e ambíguo excerto, que pode ser interpretado de várias formas.

Uma delas, talvez mais apressada, é que, "em razão de sua raça", o réu seria "seguramente integrante do grupo criminoso".

Outra interpretação do trecho permite a afirmação de que o "em razão de sua raça" se refere ao suposto fato de que o réu agia "de forma extremamente discreta".

O mesmo trecho aparece três vezes na decisão, na argumentação da juíza referente a três fatos distintos. Os excertos são usados para analisar a "conduta social" do réu. 

Acusado de furto, roubo e de integrar organização criminosa, o homem foi condenado a 14 anos de reclusão. Único negro, foi julgado junto com outras oito pessoas. 

"Padrão" diferente
Na decisão, a magistrada diz que o grupo "tentava parecer e se identificar como pessoas de aparência comum da população". Quem se destacava era o homem negro, "que fugia desse padrão" e tinha "fácil identificação". 

Para Pozzobon, "associar a questão racial à participação em organização criminosa revela não apenas o olhar parcial de quem, pela escolha da carreira, tem por dever a imparcialidade, mas também o racismo, ainda latente na sociedade brasileira". 

Ainda de acordo com a advogada, "um julgamento que parte desta ótica está maculado". "Fere não apenas meu cliente, como toda a sociedade brasileira. O Poder Judiciário tem o dever de não somente aplicar a lei, mas também, através de seus julgados, reduzir as desigualdades sociais e raciais. Ou seja, atenuar as injustiças, mas jamais produzi las como fez a magistrada ao associar a cor da pele ao tipo penal." 

À Conjur, Pozzobon disse que irá recorrer da decisão e acionar o Conselho Nacional de Justiça para que sejam tomadas medidas contra a conduta da magistrada.

Outro lado
Em nota, Zarpelon afirmou que "em nenhum momento houve o propósito de discriminar qualquer pessoa por conta de sua cor (…) A linguagem, não raro, quando extraída de um contexto, pode causar dubiedades."

Cássio Lisandro Telles, presidente da OAB-PR, disse que a entidade se posiciona "firmemente contra o uso da origem racial como critério de condenação" e que a decisão "é um absurdo que retrocede anos da nossa história, negando o direito fundamental da igualdade". 

Também informou a Pozzobon que conversou com o presidente do Tribunal de Justiça do Paraná, desembargador Adalberto Jorge Xisto Pereira, e "o mesmo informou que já determinou a instauração de procedimento disciplinar na corregedoria". 

Procurado pela reportagem, o Conselho Nacional de Justiça ainda não se pronunciou sobre o caso. 

"Não tem condição"
Em manifesto, os advogados  Djefferson Amadeus e Marcelo Dias, do Movimento Negro Unificado (MNU), afirmaram que a juíza de Curitiba deve ser impedida de julgar outros negros. 

"Uma parte bem pequena da magistratura há de envergonhar-se para sempre do dia em que uma juíza, não controlando aquilo que traduz o pensamento de uma maioria, expôs o que gritava em seu inconsciente: o racismo estrutural. Justo porque nada conhece, nada lera, embora já possa ter ouvido falar, achava-se na condição de dizer algo, sem dar-se conta que um dizer assim, não ancorado na Constituição, outra coisa não seria senão uma manifestação do seu inconsciente racista. Eis por que a lei e a Constituição existem: para impor-lhe limites […] A juíza Inês Marchalek Zarpelon não tem condições de julgar nenhuma pessoa negra", diz o texto. 

Ainda de acordo com o manifesto, "ao demonstrar total incapacidade de agarrar-se à Constituição para lutar contra o racismo estrutural, entendem estes advogados, com base no princípio da imparcialidade, que a juíza Zarpelon não pode julgar nenhuma pessoa negra por conta daquilo que denominamos de impedimento ou suspeição por racismo estrutural incontrolável". 

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*Texto alterado às 13h30 de 12/8 para retificação de informações. Diferentemente do que constou da versão original desta reportagem, o trecho da decisão não permite a afirmação inequívoca de que a juíza associou o critério racial ao suposto fato de o réu integrar organização criminosa.

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