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Tributação das emissões e negociações dos títulos de CBio: a vida continua

Autor

  • Heleno Taveira Torres

    é professor titular de Direito Financeiro e chefe do Departamento de Direito Econômico Financeiro e Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) e advogado.

29 de abril de 2020, 8h32

Spacca
Nesta semana, dentre as últimas etapas para implantação da Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), do “Acordo de Paris”, para reduzir as emissões de CO2, deu-se início à comercialização dos Créditos de Descarbonização (CBio) na plataforma da bolsa de valores B3. Um fato inédito e de máxima importância, lamentavelmente ofuscado pela grave crise sanitária da Covid-19 e as confusões políticas nas quais o País encontra-se enredado.

De outra banda, há pouco mais de duas semanas, o Presidente da República vetou o único instrumento que poderia conferir algum equilíbrio à carga tributária sobre esta riqueza dantes inexistente na economia, na forma de um regime de tributação exclusiva de Imposto de Renda na Fonte (IR-Fonte), aprovado na conversão em lei da Medida Provisória n° 897/2019, na contramão de todos os empenhos para implantação de uma política ambiental equilibrada, pelo custo que a própria operação financeira já representa para a cadeia de combustíveis fósseis.

Assim dispunha o art. 60 da Medida Provisória n° 897/2019:

Art. 60. A Lei nº 13.576, de 26 de dezembro de 2017, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 15-A:

Art. 15-A A receita das pessoas jurídicas qualificadas conforme o inciso VII do caput do art. 5° desta Lei auferida até 31 de dezembro de 2030 nas operações de que trata o art. 15 desta Lei fica sujeita à incidência do imposto sobre a renda exclusivamente na fonte à alíquota de 15% (quinze por cento).

§ 1° A receita referida no caput deste artigo será excluída na determinação do lucro real ou presumido e no valor do resultado do exercício, mas as eventuais perdas apuradas naquelas operações não serão dedutíveis na apuração do lucro real.

§ 2° O disposto no § 1º deste artigo não impede o regular aproveitamento, na apuração do lucro real das pessoas jurídicas referidas no caput deste artigo, das despesas administrativas ou financeiras necessárias à emissão, ao registro e à negociação dos créditos de que trata o inciso V do caput do art. 5° desta Lei, inclusive aquelas referentes à certificação ou às atividades do escriturador de que tratam os incisos I e VIII do caput do art. 5° e os arts. 15 e 18 desta Lei.

§ 3° O disposto no caput e no § 1° deste artigo aplica-se por igual a todas as demais pessoas físicas ou jurídicas que realizem, sucessivamente, operações de aquisição e alienação na forma do art. 15 e com o registro de que trata o art. 16 desta Lei, salvo quando aquelas pessoas se caracterizarem legalmente corno ' distribuidor de combustíveis’.”

O inciso VII do art. 5º da Lei nº 13.576/2017 cuida do “emissor primário”, que é o produtor ou importador de biocombustível, autorizado pela ANP, habilitado a solicitar a emissão de Crédito de Descarbonização em quantidade proporcional ao volume de biocombustível produzido ou importado e comercializado. Pois bem, nestas emissões dos CBio incidiria o IR-Fonte à alíquota de 15%, com exclusão das receitas do cálculo do lucro real ou presumido, para os fins de incidência do IRPJ e da CSLL.

Ao que tudo indica, o argumento do veto seria que este regime de tributação exclusiva equivaleria a uma espécie de benefício fiscal, nos termos do art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Contudo, não há que se falar em “renúncia”, dado que não preexistia qualquer estimativa de receita tributária passível de arrecadação sobre esta hipótese de “títulos verdes”. Mantido o veto, deveras, coloca-se um manto de insegurança jurídica sobre os destinos do CBio, pois esta etapa de apuração de renda seguirá tributada a 34% (IRPJ e CSLL), o que reduz substancialmente o estímulo de produção dos títulos, além de agravar os custos dos consumidores, na compra dos combustíveis fósseis.

A partir de agora, os CBio apurados da produção de biocombustíveis poderão ser levados a mercado e adquiridos pelos produtores ou comerciantes do setor de combustíveis fósseis para compensação da emissão de dióxido de carbono. Vale recordar que cada certificado CBio equivale a uma tonelada de CO2 que deixa de ser emitida (em média, com valor próximo a dez dólares). Surge, assim, o nosso mercado de “ativos (financeiros) verdes”, o que merece estímulo e uma tributação coerente com seus fins de preservação e proteção do meio ambiente.

Em diversas ocasiões, ressaltei a integrantes dos setores de produção de biocombustíveis ou de combustíveis fósseis, bem assim para instituições financeiras e até mesmo a membros do Ministério das Minas e Energia, que nada adiantaria construir o modelo RenovaBio, cuidado à perfeição, se não houvesse um diálogo interministerial, técnico e qualificado com a Secretaria da Receita Federal do Brasil, para alinhar o modelo de produção, negociação e aquisição dos CBio com as repercussões tributárias, especialmente quanto à incidência do PIS/COFINS, do IR-Fonte, do IRPJ, do IOF.1

Importante lembrar da pretérita experiência dos créditos de carbono, que malogrou pelas dificuldades criadas pelo Fisco e insegurança jurídica gerada nas negociações dos créditos. Perderam todos. E especialmente o próprio Fisco, pela sua ganância desmedida. Diferentemente do Protocolo de Kyoto, a Lei nº 13.576/2017 não trouxe tributos específicos para carbono e seus derivados. Sua virtude está justamente na conversão da redução de emissões em certificados a serem adquiridos no mercado secundário pelos emissores de CO2.

Conforme a Lei nº 13.576/2017, os produtores de biocombustíveis devem ser certificados pela ANP. Para tanto, devem buscar uma das firmas inspetoras credenciadas, habilitadas para efetuar o processo de Certificação da Produção Eficiente de Biocombustíveis.

Após esta certificação, o produtor poderá dar início às demandas de pré-CBio. O pedido deve ocorrer com antecedência de sessenta dias2 pelo emissor primário da nota fiscal de compra e venda do biocombustível, caso contrário, o direito de emissão ficará extinto para o período. Ademais, o CBIO possui a forma de título eletronicamente emitido e obedece às características determinadas na Lei nº 13.576/2017, em conjunto com o art. 14 da Portaria MME nº 419/2019.

Eis como surge o CBIO3, que é um “ativo financeiro”, para efeitos tributários (“ativo ambiental” em nada altera esta fisionomia), negociado na bolsa e emitido pelo produtor de biocombustível. O processo de emissão é efetuado na forma escritural (utiliza-se livros ou registros do escriturador4) e deve ocorrer mediante a solicitação do emissor primário em valor proporcional ao volume de biocombustível comercializado, importado ou produzido.

Assim, a ANP, em parceria com o Serpro, emite os chamados pré-CBio, o que é feito a partir dos lastros validados pela “Plataforma CBio”, a partir das notas fiscais que refletem o volume produzido e comercializado de biocombustíveis. Atendido este requisito, o produtor terá condições para registrar o CBio numa instituição financeira, contratada dentre as autorizadas para cumprir as funções de “escriturador”, para negociação na bolsa de valores. Logo, quem irá operar em balcão na bolsa de valores será o escriturador, que responderá pelo registro do CBio e acompanhará o título até a sua “aposentadoria”.

A forma de negociação do CBIO está prevista na Portaria MME nº 419/2019 que admite a “gestão de carteira”. Todo o monitoramento e regulação das operações da B3 envolvendo os CBios serão transmitidas à ANP que atua como reguladora do mercado de descarbonização. A negociação dos créditos deve ocorrer num ambiente onde não haja a identificação das partes (vide art. 7º da Portaria), com classificação dos emissários nos sistemas eletrônicos de escrituração, negociação e registro.

Para que os créditos cheguem a ser comercializados em mercados financeiros5, o escriturador torna-se o responsável por realizar a manutenção do registro dos negócios ocorridos no intervalo de tempo de registro dos títulos6.

Com a comercialização, o produtor ou distribuidor de combustíveis (indivíduo que necessita do título) tem a obrigação de comprovar, anualmente, o atendimento de sua meta individual e compulsória de redução; caso não atenda a meta individual estabelecida pela ANP7, estará sujeito a aplicação de multa proporcional ao valor dos CBIOs não adquiridos.8

Para conferir efetividade aos princípios do Acordo de Paris, o tratamento tributário deve ser graduado por cada etapa. Logicamente, a simples emissão de CBIO não representa auferimento de receita tributável, por se tratar de “receita financeira”. Logo, não podem incidir PIS e COFINS na emissão dos títulos.

No adquirente (distribuidor ou importador de combustíveis, na forma do art. 5º, VI e X da Lei nº 13.576/2017), a dedutibilidades da despesa com a aquisição de CBIO justifica-se por se tratar de despesa operacional, dada sua obrigatoriedade por lei, conforme o art. 47, §1º e §2º da Lei nº 4.506/64.

Em relação ao escriturador, a Portaria MME nº 419/2019 esclarece que a atividade realizada se configura como a prestação de um serviço9. Logo, estará sujeito a incidência de ISSQN, pelo item 15 da lista anexa da Lei Complementar nº 116/2003, quanto aos “serviços relacionados ao setor bancário ou financeiro, inclusive aqueles prestados por instituições financeiras autorizadas a funcionar pela União ou por quem de direito”; também se aplica referido raciocínio para a incidência dos tributos sobre a receita da prestação (IRPJ, CSLL, PIS e COFINS).

Para um tratamento tributário do CBIO, cabe avaliar as possiblidades de enquadramento do crédito de carbono, posto que pode ser tido como commodity, título de crédito, valor mobiliário e ativo financeiro, afora outras.

Para serem commodities, os créditos de carbono deveriam ser considerados mercadorias capazes de serem individualizadas e substituídas por outras de mesma natureza, além de terem a característica de serem bens corpóreos. Como os créditos são bens incorpóreos, não preenchem o requisito mínimo para a classificação.

Também não cabe qualificar como título de crédito, porque estes são documentos que consubstanciam o direito de crédito de uma determinada pessoa em relação a outra, tendo como sua característica a obrigação unilateral de vontade, não podendo serem confundidos com a própria obrigação.

Por sua vez, não é aplicável o conceito de valor mobiliário, pois os créditos são manifestação da expectativa em se reduzir a emissão de gases do efeito estufa e, por conseguinte, impossibilitados de serem colocados como bens relacionados a investimentos monetários. Vale recordar aqui o Parecer RJ nº 6.346/2009 da CVM, que exclui a possiblidade de o “crédito de carbono” ser um derivativo ou contrato de investimento, no que se aplica à perfeição à hipótese dos CBio.

Destarte, os créditos de descarbonização (CBio), assim como os “créditos de carbono”, ao seu tempo, têm natureza de ativo financeiro. E o pronunciamento técnico CPC 14 não deixa dúvidas, ao definir que ativo financeiro será qualquer ativo que seja: (i) caixa; (ii) título patrimonial de outra entidade; (iii) direito contratual; (iv) um contrato que seja ou possa ir a ser liquidado em instrumentos patrimoniais da própria entidade. De igual modo, as hipóteses qualificadoras do art. 2º da Resolução nº 4.593, de 28 de agosto de 2017, do Banco Central, que dispõe sobre o registro e o depósito centralizado de ativos financeiros e valores mobiliários por parte de instituições financeiras. Logo, o CBIO, para o Direito Tributário, assemelha-se a um ativo financeiro, ainda que portarias ministeriais falem em “ativo ambiental”.

Por todos estes motivos, a derrubada do veto presidencial sobre a mudança para o regime de tributação exclusiva do IR-Fonte, de 15%, afirma uma parte relevante desta cadeia, mas ainda insuficiente para sua totalidade. Oportuno buscar junto ao Ministério da Economia o entendimento necessário para criar os meios de fomento a este mercado nascente de “ativos financeiros verdes” dos CBio, com afastamento do regime geral tributário, como parte de uma política de uma indução positiva para que o Acordo de Paris ganhe efetividade no Brasil.


1 Sobre o tema, veja-se ainda o estudo de Fabio Calcini: https://www.conjur.com.br/2020-jan-03/direito-agronegocio-renovabio-aspectos-tributarios

2 Lei nº 13.576/2017, art. 13, §2º.

3 “Art. 4º São instrumentos da Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio), entre outros:

(…)

II – os Créditos de Descarbonização de que trata o Capítulo V desta Lei” (vide Lei 13.576/2017).

4 Lei nº 13.576/2017, art. 13, caput.

5 Lei nº 13.576/2017, art. 15.

6 Lei nº 13.576/2017, art. 16.

7 Decreto nº 9.888/2019, Art. 5º.

8 Decreto nº 9.888/2019, Art. 6º, § 1º.

9 Portaria MME nº 419/2019, art. 3º.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro e livre-docente em Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Advogado, foi vice-presidente da International Fiscal Association (IFA).

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