Direito do Agronegócio

Os aspectos tributários da política energética RenovaBio

Autor

  • Fábio Pallaretti Calcini

    é doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) ex-membro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) professor da FGV-Direito SP e Ibet e sócio tributarista da Brasil Salomão e Matthes Advocacia.

3 de janeiro de 2020, 8h00

Em nossa primeira coluna de 2020 cuidaremos das discussões envolvendo relevante Política Energética voltada para os biocombustíveis denominada de RenovaBio prevista na Lei nº 13.576/2017.

Spacca
O Renovabio seria uma Política Nacional de Biocombustíveis tendo por finalidade (artigo 1º): “I –  contribuir para o atendimento aos compromissos do País no âmbito do Acordo de Paris sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima; II – contribuir com a adequada relação de eficiência energética e de redução de emissões de gases causadores do efeito estufa na produção, na comercialização e no uso de biocombustíveis, inclusive com mecanismos de avaliação de ciclo de vida;  III – promover a adequada expansão da produção e do uso de biocombustíveis na matriz energética nacional, com ênfase na regularidade do abastecimento de combustíveis; e IV – contribuir com previsibilidade para a participação competitiva dos diversos biocombustíveis no mercado nacional de combustíveis.

Os fundamentos de referida Política seriam (artigo 2º): “I – a contribuição dos biocombustíveis para a segurança do abastecimento nacional de combustíveis, da preservação ambiental e para a promoção do desenvolvimento e da inclusão econômica e social; II – a promoção da livre concorrência no mercado de biocombustíveis; III – a importância da agregação de valor à biomassa brasileira; e IV – o papel estratégico dos biocombustíveis na matriz energética nacional.”

Por sua vez, adotaria como princípios (artigo 3º): “I – previsibilidade para a participação dos biocombustíveis, com ênfase na sustentabilidade da indústria de biocombustíveis e na segurança do abastecimento; II – proteção dos interesses do consumidor quanto a preço, qualidade e oferta de produtos; III – eficácia dos biocombustíveis em contribuir para a mitigação efetiva de emissões de gases causadores do efeito estufa e de poluentes locais; IV – potencial de contribuição do mercado de biocombustíveis para a geração de emprego e de renda e para o desenvolvimento regional, bem como para a promoção de cadeias de valor relacionadas à bioeconomia sustentável; V – avanço da eficiência energética, com o uso de biocombustíveis em veículos, em máquinas e em equipamentos; e VI – impulso ao desenvolvimento tecnológico e à inovação, visando a consolidar a base tecnológica, a aumentar a competitividade dos biocombustíveis na matriz energética nacional e a acelerar o desenvolvimento e a inserção comercial de biocombustíveis avançados e de novos biocombustíveis.

Daí porque, para concretizar suas finalidades, utiliza dos seguintes instrumentos, entre outros (artigo 4º): “I – as metas de redução de emissões de gases causadores do efeito estufa na matriz de combustíveis de que trata o Capítulo III desta Lei; II – os Créditos de Descarbonização de que trata o Capítulo V desta Lei; III – a Certificação de Biocombustíveis de que trata o Capítulo VI desta Lei;

IV – as adições compulsórias de biocombustíveis aos combustíveis fósseis; V – os incentivos fiscais, financeiros e creditícios; e VI – as ações no âmbito do Acordo de Paris sob a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima.”

Neste momento, o ponto de maior relevo sob a perspectiva tributária seria o crédito de descarbonização (CBIO) que, segundo artigo 5º, V, seria “instrumento registrado sob a forma escritural, para fins de comprovação da meta individual do distribuidor de combustíveis de que trata o artigo 7º desta Lei;”.

No Capítulo VI, o legislador trouxe mais detalhes a respeito deste crédito – CBIO -:

“Artigo 13. A emissão primária de Créditos de Descarbonização será efetuada, sob a forma escritural, nos livros ou registros do escriturador, mediante solicitação do emissor primário, em quantidade proporcional ao volume de biocombustível produzido, importado e comercializado.

§ 1º A definição da quantidade de Créditos de Descarbonização a serem emitidos considerará o volume de biocombustível produzido, importado e comercializado pelo emissor primário, observada a respectiva Nota de Eficiência Energético-Ambiental constante do Certificado da Produção Eficiente de Biocombustíveis do emissor primário.

§ 2º A solicitação de que trata o caput deste artigo deverá ser efetuada em até sessenta dias pelo emissor primário da nota fiscal de compra e venda do biocombustível, extinguindo-se, para todos os efeitos, o direito de emissão de Crédito de Descarbonização após esse período.

Artigo 14. O Crédito de Descarbonização deve conter as seguintes informações:

I – denominação “Crédito de Descarbonização – CBIO”;

II – número de controle;

III – data de emissão do Crédito de Descarbonização;

IV – identificação, qualificação e endereços das empresas destacadas na nota fiscal de compra e venda do biocombustível que servirão de lastro ao Crédito de Descarbonização;

V – data de emissão da nota fiscal que servirá de lastro ao Crédito de Descarbonização;

VI – descrição e código do produto constantes da nota fiscal que servirão de lastro ao Crédito de Descarbonização; e

VII – peso bruto e volume comercializado constantes da nota fiscal que servirão de lastro ao Crédito de Descarbonização.

Artigo 15. A negociação dos Créditos de Descarbonização será feita em mercados organizados, inclusive em leilões.

Artigo 16. O escriturador será o responsável pela manutenção do registro da cadeia de negócios ocorridos no período em que os títulos estiverem registrados.

Artigo 17. Regulamento disporá sobre a emissão, o vencimento, a distribuição, a intermediação, a custódia, a negociação e os demais aspectos relacionados aos Créditos de Descarbonização.”

Deste modo, pode afirmar que  certificado — CBIO -: (i) — é um instrumento para concretização do RenovaBio; (ii) — será emitido e registrado de forma escritural pelo emissor primário[1]; (iii) — sua escrituração se dará mediante registro em livros e registros do escriturador[2]; (iv) — como um título deverá conter alguns elementos obrigatórios como denominação, numero de controle, data da emissão, qualificação da empresa, descrição e código dos produtos que darão lastro ao crédito, peso bruto e volume comercializado; (v) — a negociação se dará por mercado organizado ou leilões; (vi) — haverá regulamento para disciplinar emissão, o vencimento, a distribuição, a intermediação, a custódia, a negociação e os demais aspectos relacionados aos Créditos de Descarbonização.

Em decorrência da legislação posta, houve a edição do Decreto nº 9.888, de 27 de junho de 2019, o qual “Dispõe sobre a definição das metas compulsórias anuais de redução de emissões de gases causadores do efeito estufa para a comercialização de combustíveis de que trata a Lei nº 13.576, de 26 de dezembro de 2017, e institui o Comitê da Política Nacional de Biocombustíveis – Comitê RenovaBio”.

Ademais, a Agência Nacional do Petróleo — ANP — editou algumas resoluções:

  • Resolução ANP nº 802/2019 – Estabelece os procedimentos para geração de lastro necessário para emissão primária de Créditos de Descarbonização, de que trata o artigo 14 da Lei nº 13.576, de 26 de dezembro de 2017, e altera a Resolução ANP nº 758, de 23 de novembro de 2018.
  • Resolução CNPE nº 15/2019 – Define as metas compulsórias anuais de redução de emissões de gases causadores do efeito estufa para a comercialização de combustíveis.
  • Resolução ANP nº 791/2019– Dispõe sobre a individualização das metas compulsórias anuais de redução de emissões de gases causadores do efeito estufa para a comercialização de combustíveis, no âmbito da Política Nacional de Biocombustíveis (RenovaBio).
  • Resolução ANP nº 758/2018– Regulamenta a certificação da produção ou importação eficiente de biocombustíveis de que trata o artigo 18 da Lei nº 13.576, de 26 de dezembro de 2017, e o credenciamento de firmas inspetoras.

Com base neste arcabouço legislativo o RenovaBio tem obtido desdobramentos já existindo diversas empresas já certificadas e outras em fase de certificação.

Bem por isso, surge a necessidade de se avaliar quais seriam os efeitos fiscais decorrentes da emissão de referido certificado ou, em verdade, a partir de sua negociação.

O primeiro ponto a se esclarecer é o fato de a legislação não disciplinar os reflexos tributários de referida política com os biocombustíveis, notadamente, quanto a CBIO.

Em virtude de referida ausência de expressa disciplina dos aspectos tributários, surge uma enorme insegurança jurídica.

Isto porque, caberá interpretar e reconhecer, diante de todo o nosso sistema jurídico, qual a natureza jurídica de tais certificados e sua negociação e, por conseguinte, imputar as leis fiscais.

O segundo ponto de nossa reflexão está relacionado às premissas que devem ser adotadas para reconhecer a natureza jurídica deste certificado e sua tributação.

Ora, é evidente que o legislador, ao se analisar os princípios, fundamentos e finalidade do RenovaBio, pretende fomentar os biocombustíveis, diante de imposições ambientais visando a concretização de direito fundamental do mais alto relevo, como ainda viabilizar economicamente um setor estratégico nacional.

Deste modo, o que nos parece evidente é que qualquer, independente do caminho fiscal, este não pode se desconectar com tais propósitos maiores.

Com isso, a tributação há de ser tida como elemento secundário dentro desta Política maior criada pelo Governo.

Equivale dizer: não deve esta política e, principalmente, os instrumentos criados para viabilizar finalidades maiores como o meio ambiente e o fomento da atividade dos biocombustíveis, sofrerem restrições ou mesmo termos elevados custos por meio de tributação.

Cabe aqui, ao Poder Público por meio de regulamentação legislativa ou infralegal, partindo da extrafiscalidade, promover as finalidades do RenovaBio sem a pretensão de tributação.

A tributação aqui não pode ser uma finalidade almejada pelo Estado para esta política.

A preocupação quanto a CBIO e os reflexos fiscais é evidente.

Ora, que natureza daríamos ao CBIO, tendo em vista o legislador estabelecer como um instrumento escritural a ser negociado em mercados organizados, inclusive leilões?

Naturalmente, ao emissor primário, o simples fato de ter a titularidade de um certificado CBIO não geraria qualquer tributação em si, uma vez que: (i) — não houve transferência de titularidade; (ii) — não houve negócio jurídico; (iii) — não há renda efetiva, ou mesmo receita auferida.

Porém, quando se consumar uma negociação em mercados organizados, como se reconhecer este ingresso financeiro do ponto de vista tributário?

Em geral, algumas hipóteses poderiam ser apontadas: (i)  — commodity ambiental? (ii) — bem incorpóreo ou intangível? (iii) — derivativo; (iv) — título ou valor mobiliário?; (v) — subvenção?

Não há pretensão neste artigo de esgotar o tema, mas, simplesmente, reforçar o debate e preocupação.

Sem embargo, vejamos algumas ponderações de cada uma das hipóteses.

Seria uma commodity ambiental? Em tese, não seria por não ser uma mercadoria, ao contrário, por expressa disposição legal são créditos.

Logo, poder-se-ia entender como um bem incorpóreo ou intangível?

De certo modo, o CBIO não pode ser considerado uma coisa, sendo um bem incorpóreo ou intangível. Em verdade, um direito que decorre da lei, desde que preenchido certos requisitos e procedimentos, o qual poderá ser objeto de negociação.

Como um bem intangível, tem-se uma cessão de direitos e daí qual a tributação: ganho de capital? Ou podemos sustentar ser uma receita operacional, dada a sua causa ter vinculação com a produção do biocombustível?

Apesar de ser razoável pensar como um bem incorpóreo, em contrapartida, a lei menciona tratar-se um crédito mediante escrituração e negociação em mercados de balcão.

Diante dessa afirmação, pode ser um derivativo ou título/valor mobiliário? O primeiro passo diz respeito ao fato de que o CBIO necessitaria estar identificado em uma das hipóteses do art. 2º, da Lei n. 6.385/76? Este certificado em si não encontra exata identidade na legislação, ou ainda como derivativo.

Por fim, tem-se ainda a possibilidade de ser uma subvenção estatal, uma vez que, por meio de tais certificações, o Estado objetiva fomentar determinada atividade econômica, cuja transferência de recursos se dá pela iniciativa privada a partir da negociação de tais direitos ou títulos. Ou ainda uma mero ressarcimento ou indenização.

Sem a pretensão de apontar exatamente qual a natureza jurídica do CBIO e todas as consequências tributárias, o que se pode reconhecer inevitavelmente é que se trata de tema, cuja incerteza jurídica é clarividente e merece urgente a adequada regulamentação.

E que esta adequada regulação tenha como principal objetivo fomentar a política energética de biocombustíveis e não a arrecadação, a qual pode até mesmo inviabilizar ou reduzir os efeitos objetivados pelo legislador, além de poder ser mais um problema de contencioso fiscal.

[1]produtor ou importador de biocombustível, autorizado pela ANP, habilitado a solicitar a emissão de Crédito de Descarbonização em quantidade proporcional ao volume de biocombustível produzido ou importado e comercializado, relativamente à Nota de Eficiência Energético-Ambiental constante do Certificado da Produção Eficiente de Biocombustíveis, nos termos definidos em regulamento;”

[2]banco ou instituição financeira contratada pelo produtor ou pelo importador de biocombustível responsável pela emissão de Créditos de Descarbonização escriturais em nome do emissor primário;”

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    é advogado tributarista, sócio do Brasil Salomão e Matthes Advocacia. É doutor e mestre em Direito do Estado pela PUC-SP, pós-doutorando em Direito pela Universidade de Coimbra (Portugal) e ex–membro do Carf.

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