Contas à Vista

As receitas da floresta amazônica e as fronteiras do Direito Financeiro

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

17 de setembro de 2019, 8h00

Spacca
A preocupação ambiental é relativamente recente na história do homem. Não que o problema não existisse desde priscas eras, pois relatos históricos apontam para a decadência de Atenas correlacionando-a ao esgotamento das minas de prata da região do Laurio, considerada uma das causas de sua derrota para Esparta. Pode-se afirmar, contudo, que as preocupações com o nosso futuro comum são recentes, iniciando-se nas últimas décadas do século passado, havendo quem indique como documento icônico a Conferência de Estocolmo, de 1972, um marco na análise da matéria.

Na Amazônia, até os anos 60 e 70 do século passado, havia um verdadeiro incentivo governamental ao desmatamento. Projetos econômicos aprovados pela SUDAM – Superintendência da Amazônia, órgão de desenvolvimento regional que tem raízes nos anos 50, previa a liberação de incentivos fiscais e financeiros para quem desmatava visando implantar projetos pecuários ou agrícolas. Era um dos requisitos para sua aprovação. O mesmo se pode constatar, no mesmo quandrante histórico, acerca dos incentivos creditícios no âmbito do BASA – Banco da Amazônia. Não existia sequer reserva legal ambiental naquela época. Em suma: havia incentivo ao desmatamento da Amazônia como plano de governo.

Isso mudou ao longo dos anos. A tônica atual é completamente oposta, o que me parece uma lógica muito mais adequada e consentânea com os marcos normativos e civilizatórios ora vigentes.

Porém mesmo aqui há um problema a ser analisado, e que implica em uma visão de mundo. É sabido que uma floresta não é um conjunto de árvores, caracterizando-se muito mais como um bioma que se constitui em conjunto de espécies bióticas e abióticas reunidos pela natureza ao longo das eras de formação do globo terrestre. Pode-se até fazer um reflorestamento com espécies em áreas anteriormente desmatadas, mas isso acarretará a formação de outro bioma, diverso do original. Se fosse apenas um conjunto de árvores, bastava reflorestar (expressão inapropriada à espécie, mas consagrada na literatura especializada), que estava tudo resolvido – porém não é assim. Oficinas de florestas e deuses da chuva são licenças poéticas de Caetano Veloso, e para Sampa (https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/41670/).

O modo de produção econômico na Amazônia possui características próprias. Exemplos históricos nos levam a afirmar isso. Henry Ford, patrono da indústria de automóveis mundial, viu parte de sua enorme fortuna ir pelo ralo em dois projetos econômicos desenvolvidos no Pará, inicialmente em uma área no alto do rio Tapajós, que ficou conhecida por Fordlândia, no município de Aveiro, e, após, em outra área próxima de Santarém, no município de Belterra. A ideia era aplicar os princípios fordistas, de domínio de toda a cadeia de produção, à indústria automobilística. Faltava àquela indústria norteamericana a matéria prima para a fabricação de pneus. As duas tentativas fracassaram, pois se tentou plantar seringueiras de forma intensiva, para extração de látex visando a fabricação de borracha. Qual a principal razão para o erro, se existiam seringueiras na floresta amazônica? Houve infestação de pragas em razão do plantio racionalizado, em fazendas surgidas após desmatamento de enormes áreas, e a produção não logrou êxito. Hoje restam naqueles locais apenas lembranças históricas dos empreendimentos[1].

O mesmo se pode afirmar sobre outras iniciativas desenvolvidas por grandes empreendedores do século passado, como Percival Farquhar (cujo nome está ligado à ferrovia Madeira-Mamoré, em Rondônia) e Daniel Keith Ludwig (milionário fundador do Projeto Jarí, no Amapá, para produção e beneficiamento de celulose). Ambos, cada qual a seu tempo, foram alguns dos homens mais ricos de sua época, e tentaram imprimir àquela floresta o ritmo industrial então vigente no resto do mundo. Não deu certo. Consta ser de Farquhar a frase, proferida no início do século passado: “ninguém sabe ainda o que fazer com a Amazônia”.[2]

Não é a-tóa que a Constituição brasileira estabeleceu a Amazônia como um dos biomas especialmente protegidos, a ser explorado “dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais” (art. 225, parág. 4º).

O assunto retorna ao proscênio com as notícias sobre as queimadas na região, o que causa inegáveis problemas ambientais para o homem e a sustentabilidade da floresta. Aqui se encontra o problema central a ser enfrentado. O que fazer com a floresta amazônica? Se adotarmos um viés exageradamente conservacionista, teremos que abandonar qualquer tentativa de exploração econômica daquela região, mantendo tudo intocado, e deixando seus habitantes sem condições dignas de vida. Não falo dos núcleos urbanos, como Manaus, Belém ou Porto Velho, que possuem problemas como os de qualquer outra grande cidade brasileira, como São Paulo ou Rio de Janeiro – criminalidade, congestionamento de tráfego, favelas, precário saneamento e por aí vai. Trato das populações tradicionais e demais habitantes desses locais. A ideia romântica de preservacionismo a qualquer custo, que imagina seringueiros vivendo de sua produção artesanal é praticamente um mito que deve ser colocado em xeque, pois não permite que tenham dignidade e qualidade de vida, dentro do sistema econômico em que vivemos. Por outro lado, a ideia de exploração indiscriminada da floresta é igualmente inadequada, pois contempla uma mudança radical na dinâmica daquele ecossistema, e, em si, prevê sua extinção.

Não existem soluções mágicas. O sistema de utilização racional, que vier a ser implantado, dependerá de nossa capacidade de implantar e gerenciar a exploração sustentável da floresta, mantendo-a, porém gerando renda suficiente para que os habitantes daquela região tenham dignidade e qualidade de vida. Este é o desafio jurídico e econômico a ser enfrentado.

Uma das diversas fórmulas possíveis passa pela valorização da manutenção da floresta em pé. Ou seja, obter receita sem necessitar extrair a vegetação nela existente, sem colocá-la no chão.

Isso pode ser feito de diversas maneiras, uma das quais passa pelo que se denomina de pagamento pelos serviços ambientais, objeto de excelente livro de Ana Maria Nusdeo[3], minha colega de docência, fruto de sua Tese de Livre Docência na Faculdade de Direito da USP.

Ana Maria, em seu livro, relaciona diferentes espécies de serviços ambientais que podem ser explorados com sustentabilidade, tais como transações associadas à conservação da biodiversidade (licenças para pesquisa e direitos de prospecção, servidões florestais, contratos ou concessão para sua conservação), proteção de bacias hidrográficas (contratos para a proteção de mananciais, ou para a qualidade da água ou de habitats aquáticos), sem esquecer as questões relacionadas ao sequestro e estocagem de carbono (e as transações associadas a este tipo de exploração), bem como as relacionadas à beleza cênica. As opções são diversas, não se restringindo a esse rol.

O ponto central é permitir que o ser humano, que é o centro de todas as preocupações jurídicas, possa viver na floresta e receber recursos financeiros para sua conservação, não sendo necessário destruir o ecossistema para sua sobrevivência. O maior problema, aponta Ana Maria, com quem concordo, não está no reconhecimento “de que há um valor para esses serviços, mas na estimativa do valor” que lhe é atribuído.[4] Ou seja, é necessário valorizar muito mais a floresta em pé, mais do que a floresta no chão. Haverá quem queira efetivamente pagar por isso, ou se trata apenas de retórica política?

Ana Maria aponta que é necessário que tal renda reverta para os que detém sua posse. Dou um passo além: é necessário envolver os governos, dos diversos níveis federativos, em tal preocupação, de tal modo que também tenham um pedaço dessa receita – jamais a totalidade. A arrecadação tributária a partir dessas receitas é insuficiente para haver interesse governamental. Somente assim as boas intenções ambientalistas podem passar a ter concretude. Não se há de pensar em soluções para tal problema sem analisar a eterna necessidade que os governos têm em arrecadar, pelas diversas alternativas tributárias e financeiras.

A louvável iniciativa dos governadores dos Estados amazônicos, que tentam se organizar para receber os recursos estrangeiros do Fundo Amazônia (https://valor.globo.com/politica/noticia/2019/09/13/governadores-da-amazonia-querem-fundo-para-receber-recurso-estrangeiro.ghtml), negligenciado pelo governo federal, passa também por este tipo de análise. De nada adiantará apenas obter recursos, nacionais ou estrangeiros, se não forem criadas, ao mesmo tempo, fórmulas financeiras sustentáveis para que o homem amazônico seja incentivado a preservar o ambiente em que vive – e do qual deve receber recursos para sua preservação.

Trata-se, assim, de uma nova fronteira para análise do Direito Financeiro, limítrofe ao Direito Ambiental, que merece atenção dos jusfinancistas, como outras que já apresentei anteriormente (https://www.conjur.com.br/2016-jan-26/contas-vista-fazem-advogados-especializados-direito-financeiro). Fica a dica.

 

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Perdemos a Bebel. Triste. Infelizmente, apenas duas coisas são certas na vida: a morte e os tributos https://www.conjur.com.br/2012-nov-06/contas-vista-duas-coisas-sao-certas-vida-morte-tributos.

 

 


[1] Greg, Grandin Fordlândia – Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva. Rio de Janeiro: Rocco, 2010.

[2] GaulD, Charles. Farquhar – O Último Titã. Um empreendedor americano na América Latina. São Paulo: Editora de Cultura, 2006, pág. 155.

[3] NUSDEO, Ana Maria. Pagamento por serviços ambientais. Sustentabilidade e disciplina jurídica. São Paulo: Editora Atlas, 2012.

[4] NUSDEO, Ana Maria. Ob. cit., pág. 20.

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    é sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados, professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e de Direito Financeiro e Tributário da Universidade Federal do Pará (UFPA).

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