Contas à vista

Duas coisas são certas na vida: a morte e os tributos

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Melo Guimarães Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e doutor em Direito pela mesma Universidade.

6 de novembro de 2012, 7h00

Spacca
Existem certos dias em que as ideias jurídicas não se organizam conforme o direito positivo, mas em voos mais altos, desconectados do mundo das formas e dos grilhões da letra da lei. Nesses dias não se pensa nem mesmo em escolas jurídicas ou filosóficas — nada de realismo, positivismo, naturalismo ou historicismo. Não. “De que me vale uma sensação se há uma razão exterior a ela”, disse Fernando Pessoa. Nesses dias, pensa-se como Millôr Fernandes: O livre pensar é só pensar. Daí surgem as ideias que adiante exponho.

Já foi dito algures que só existem duas coisas certas na vida: a morte e os tributos. Geraldo Ataliba, que sempre usava esta frase, lutou contra os segundos — contra as injustiças provocadas pelos tributos —, e já foi vencido pela primeira. Saudades. É nossa sina — sigo (seguimos todos) pelo mesmo caminho.

São os tributos que oxigenam o Estado. Sem Direito não há Estado. É o Direito Tributário que cuida de grande parte da oxigenação do Estado — os tributos são como sangue que corre pelas artérias estatais, sustentando seu corpo. A distribuição e os gastos desse sangue fiscal é a área de estudo do Direito Financeiro: como se arrecada, distribui e gasta o dinheiro que antes era privado e se tornou público. E também como o Estado se endivida — mas isso é outra conversa. A rigor deveria dizer “arrecadação” ao invés de tributos, pois aquela é mais ampla que estes, mas estou seguro que você, caro leitor, me entendeu.

Quem faz o Direito é a Sociedade. Não uma amorfa sociedade ou o Parlamento — representante daquela sociedade. Mas todos nós, individual e coletivamente. Difusamente. Na convivência social. Somos nós, com nossas condutas e omissões, lutas e fracassos, sangue, suor e lágrimas, que construímos os saberes e os sabores do Direito. E este constrói o Estado. E nós sustentamos o Estado.

Vive-se no Estado; paga-se por ele. A média do custo fiscal brasileiro está em 34%. De maneira bastante desigual: uns pagam mais e outros menos, nem sempre da forma isonômica que deveria ser; no Brasil, por exemplo, paga mais quem ganha menos; e paga menos quem ganha mais. É curioso, mas é assim. Não é proporcional ou progressivo. Assalariados pagam mais que rentistas. A base da pirâmide tem maior custo fiscal que o topo — em especial pelos tributos indiretos.

O Direito está no meio de nós — não só o Direito Tributário ou o Financeiro. Por exemplo, nascemos e morremos sob a égide do Direito Civil; basta ver o conceito de nascituros e as questões de herança. Temos registros civis, relações familiares, a regulação da propriedade, a posse de bens e direitos, casamento, contratos, obrigações. Todos estes assuntos estão conectados com o viver em sociedade. Esta vivência/convivência está permeada pela existência do Estado — sem ele nenhuma destas relações poderia ser estável e duradoura; não haveria segurança jurídica.

Consome-se para viver: arroz, feijão e pão. Mas “a gente não quer só comida; quer comida, diversão e arte”, dizem os Titãs. No consumo há ICMS. Há ISS. Também IR, PIS, Cofins e toda uma sopa de letrinhas fiscais. Come-se ICMS no Brasil.

Vive-se entre posses e propriedades. Mora-se sob o IPTU, sob o ITR. Dirige-se com o IPVA. Transmite-se a propriedade — casamentos desfeitos, morte, partilhas, cisões, doações, compra/venda —, outros tributos: ITCMD, ITBI. Em alguns casos até mesmo o ICMS.

Na morte, mais tributos. Sobre os vivos, é claro. O Estado funciona para os vivos e deve ser sustentado por eles. Há propriedades a partilhar, rendas a distribuir, arranjos e rearranjos familiares ou societários — outras incidências.

Onde quero chegar? A exposição tem a ver com o Direito, com o Estado e a correlação destes conosco, com a sociedade, com cada qual de nós. O Direito está no meio de nós. Nascemos, vivemos e morremos nele. E de acordo com ele. E o Estado vigia — e pune. Se estivermos contra o Direito existe todo um regramento sancionatório a nos punir. Chico diz isso de forma perfeita no Hino de Duran: “Se vives nas sombras, frequentas porões/Se tramas assaltos ou revoluções/A lei te procura amanhã de manhã/Com seu faro de dobermann.”

Em Antígona, aprendemos sobre o direito natural dos vivos à dar uma sepultura aos seus mortos. No Estado contemporâneo, tributa-se do nascimento à morte.

A morte é certa — trata-se de um fato natural. Os tributos também são certos — trata-se de um fato jurídico.

O Direito pode mudar, basta a sociedade querer. Pode-se mudar o Estado e suas formas de financiamento, mas ele precisa ser financiado. Nascer é uma possibilidade. Nascidos, é certo que morreremos. E seremos tributados, do nascer ao morrer. Estas são as únicas certezas em sociedade: a morte e os tributos. Todo o resto é mutável; basta querermos.

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Esta coluna foi escrita com Luma e Lucas Scaff, em homenagem a Zilda Facury Scaff.

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