Direitos Fundamentais

A tragédia de Brumadinho e por que apostar nas assim chamadas "leis do medo"

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15 de março de 2019, 8h00

A tragédia de Brumadinho, cujas centenas de vítimas humanas fatais ainda sequer foram todas localizadas e identificadas, sem falar aqui no impacto sobre as famílias dos mortos e desaparecidos, bem como sobre o meio ambiente em termos gerais, mais uma vez tornou visível, do modo mais doloroso possível, o quão negligenciado e vilipendiado tem sido o óbvio, aqui representado pela máxima milenar — não apenas aplicável ao meio ambiente e sua proteção — de que “melhor prevenir do que remediar”.

Se a tradução de tal brocardo em linguagem jurídica — que hoje assume caráter quase universal — se deu evidentemente ao longo dos tempos de modo diverso nos mais diferentes lugares, cristalizando-se especialmente — do ponto de vista jurídico e voltado à proteção ambiental — desde a década de 1960, da mesma forma é certo — e somos lamentavelmente testemunhas quase que diuturnamente de tais episódios, entre nós e em todo o planeta — que sua implantação na prática segue tímida.

Na sua forma jurídica, apenas para aqui estabelecer um acordo semântico, o assim denominado princípio da prevenção, como bem destacado no Preâmbulo da Convenção sobre Diversidade Biológica, opera com o objetivo de antecipar a ocorrência do dano ambiental na sua origem, evitando-se, assim, que o mesmo venha a ocorrer pelo fato de que as suas causas já são conhecidas em termos científicos. Mas a experiência também demonstrou — e o Direito a ela reagiu — que não basta tomar medidas de prevenção em relação a danos já conhecidos e que se quer evitar ou, pelo menos, minimizar o seu impacto. Por isso, como notório, acabou por se reconhecer, no plano do Direito Internacional e nas diversas ordens jurídicas estatais, um outro princípio, com objeto mais aberto, convencionalmente chamado de princípio da precaução.

Do ponto de vista conceitual, invoca-se aqui a lição de Carla A. Gomes, para quem o princípio da precaução representaria, em termos substanciais, uma prevenção qualificada ou agravada, que atuaria sempre a favor do ambiente na ausência de certeza científica, proibindo qualquer atividade cujo efeito ambiental é desconhecido ou legitimando uma intervenção tendente a evitar um determinado efeito mesmo quando não se tem a certeza sequer se pode haver lesão[1]. Já no tocante à distinção conceitual de ambos os princípios, é precisa a lição de Juarez Freitas ao afirmar que a diferença entre ambos os princípios reside no grau estimado de probabilidade da ocorrência do dano, ou seja, “certeza” (para a prevenção) versus “verossimilhança” (para a precaução)[2].

Migrando do campo teórico para a seara jurídico-normativa, com foco no caso brasileiro, é de se sublinhar que diversas expressões concretas de reconhecimento e aplicação do princípio da prevenção e da precaução podem ser encontradas tanto na Constituição Federal de 1988 quanto na legislação infraconstitucional e na jurisprudência, como dá conta, entre vários outros, por sua particular relevância, a exigência do estudo prévio de impacto ambiental, também consagrado na esfera do Direito Internacional.

Mas, definitivamente, não é nosso intento tecer aqui longa digressão sobre questões conceituais e filigranas jurídicas que dizem respeito aos princípios da prevenção e precaução, sobre os quais existe farta e qualificada doutrina também no Brasil. Aliás, se dependesse apenas da literatura jurídica prevalentemente amiga de ambos os institutos e do expressivo manancial normativo já disponível (embora sob constante ataque agora cada vez mais também entre nós), quem sabe não tivéssemos de nos preocupar tanto com o tema e episódios abomináveis como os de Brumadinho e tantos outros direta ou indiretamente reconduzíveis à ação e/ou omissão humana.

Todavia, pelo menos algumas questões — relevantes para o nosso propósito — ainda há que considerar. Em especial, importa ter sempre presente que o dever estatal de proteção do ambiente, mas também os deveres de proteção vinculados aos direitos fundamentais em termos gerais, por si só implica — ainda que sem previsão textual expressa — deveres de prevenção e precaução, levados a efeito mediante medidas de natureza diferenciada, na seara legislativa, executiva e judiciária, já que todos os atores estatais estão vinculados diretamente aos direitos fundamentais e, por conseguinte, aos respectivos deveres de proteção[3].

Tais medidas incluem, aqui em caráter meramente exemplificativo, tanto a criminalização de atos que atentam contra os direitos fundamentais, incluindo o direito/dever de proteção ambiental, quanto medidas de natureza organizatória e procedimental, técnicas processuais adequadas e eficazes, sanções administrativas e responsabilidade civil, dentre tantas outras. A doutrina, por essa ótica, chega a destacar a concepção de um modelo de Estado de Direito da Prevenção e Precaução dos Riscos (Der Rechtstaat der Risikovorsorge)[4], reconhecendo-se um direito do cidadão de exigir dos entes públicos a sua proteção contra tais riscos, existências decorrentes do desenvolvimento e, sobretudo, da manipulação da tecnologia levada a efeito pelo ser humano da técnica.

Quando se fala — na esteira de um Christian Caliess e tantos outros — nos princípios da prevenção e precaução, está a se falar, em primeira linha, em deveres de prevenção e precaução, os quais, por sua vez, à medida que a proteção do meio ambiente se situa no contexto mais alargado da arquitetura constitucional e do sistema dos direitos fundamentais, marcada por uma lógica de concorrência, tensão e mesmo colisões típica de uma relação multipolar, exigem uma aplicação pautada pelos critérios da proporcionalidade, com destaque aqui para a necessidade de manter o necessário — embora difícil — equilíbrio entre as assim chamadas categorias da proibição de excesso de intervenção estatal no domínio dos direitos fundamentais e a ausência ou insuficiência de medidas de caráter protetivo[5].

Pedindo escusas pela singeleza, dadas as características e objetivos de escritos como este, das considerações tecidas, é aqui que passamos a investir mais diretamente na explicitação do sentido do título desta coluna: a tragédia de Brumadinho e por que apostar nas “leis do medo”.

Que a tragédia de Brumadinho — assim como a antecedente de Mariana — pode ser reconduzida, em alguma medida e mesmo que os detalhes do como e dos eventuais responsáveis não estejam ainda elucidados, à ação e/ou omissão humanas, não parece ser objeto de maior controvérsia. Da mesma forma, seja com fundamento na teoria do risco, seja com base em outra categoria jurídica, não há como deixar de aplicar (ou pelo menos assim o deveria ser) a normativa que exige a investigação das causas e dos responsáveis pelo evento e suas consequências, bem como pela sua responsabilização. Qualquer outra coisa corresponderia, mais uma vez, a uma violação dos deveres de proteção estatais já sumariamente apresentados.

Quando se invoca a expressão “leis do medo”, o estamos fazendo no sentido que o fez Cass Sunstein no seu livro sobre o princípio da precaução[6], onde — e esse parece ser o fio condutor de sua narrativa — advoga que o princípio não pode ser aplicado de modo a ter efeitos paralisantes e, ao fim e ao cabo, sem observar os parâmetros da razoabilidade e da proporcionalidade. As assim chamadas laws of fear de Sunstein são, nessa perspectiva, as leis que têm por escopo a concretização do princípio da precaução (que Sunstein usa como abarcando o da prevenção) como instrumento para o combate das ameaças e riscos que podem afetar o ambiente em geral e as vidas humanas e não humanas. O medo de um futuro — pelo menos em parte incerto no caso da precaução — marcado por eventos danosos levaria — e, segundo Sunstein, tem levado — à criação de um esquema organizacional e procedimental que, ao invés de contribuir para uma vida melhor e um ambiente mais equilibrado para as atuais e futuras gerações, poderia produzir efeitos ainda mais danosos pelo fato de impedir eventuais avanços que, embora impliquem uma certa dose de flexibilidade e reverência a outros valores, bens jurídicos e direitos, no seu conjunto, trariam mais benefícios do que malefícios.

Dito de outro modo e para sintetizar, Sunstein, ao fim e ao cabo, não refuta o princípio da precaução como tal, mas advoga sua leitura e aplicação proporcional, no que, aliás, não chega propriamente a inovar, mas não deixa de contribuir fortemente — levando em conta seu prestígio e o fato de escrever de modo elegante e objetivo em inglês — para a difusão de tal entendimento.

Mas — e é aqui que pretendemos chegar — o próprio Sunstein não deixa de reconhecer a necessidade de uma incidência e aplicação forte dos princípios e deveres de precaução e prevenção quando necessário, ou seja, quando em causa bens ambientais de elevada importância e cuja desproteção tende a implicar — e em muitos casos assim o acaba sendo — danos de expressiva monta e mesmo irreversíveis.

Que o caso da barragem de Brumadinho ocupa essa condição não carece aqui de maior justificativa. Basta lembrar das suas consequências, ainda em curso, e, pior, do número de barragens que se encontram em situação similar, correndo sério risco de rompimento e de causar novas vítimas. Soma-se a isso o fato de que a nossa CF e a ordem jurídica brasileira preveem expressamente um dever de proteção do ambiente e exigem e criaram instrumentos específicos para sua efetividade.

Dito isso e deixando tantos outros aspectos em aberto, a exortação que aqui se faz é no sentido de que levar a sério os deveres de proteção e, por via de consequência, de prevenção e precaução é apostar, de certo modo, em “leis do medo” (talvez dito leis da consideração e do respeito pela vida), é nosso dever exigir que tais leis sejam também levadas a sério, sempre, é claro, respeitado o marco normativo constitucional.

Assim, não só não precisamos ter medo das “leis da prevenção e precaução” como devemos, sim, ter medo de que não sejam devidamente compreendidas e aplicadas e dos que colocam os mais diversos obstáculos para que isso ocorra. Mais do que eventuais efeitos paralisantes e tópicos da atividade econômica (que, sempre, podem ser conciliados de modo produtivo com a proteção do ambiente e da vida humana, em suma, da ecologia), há que temer e combater a paralisia em relação às indispensáveis medidas de proteção, em especial também na esfera da prevenção e precaução. Do contrário, talvez não mais tenhamos tempo sequer para lamentar novas tragédias e prantear os nossos mortos, humanos e não humanos.


[1] Cf. GOMES, Carla Amado. A prevenção à prova no direito do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 38.
[2] Cf. FREITAS, Juarez. Princípio da precaução: vedação de excesso e de inoperância. In: Separata Especial de Direito Ambiental da Revista Interesse Público, n. 35, 2006, p. 36.
[3] Cf. SARLET, Ingo W. Sarlet; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental. 5.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, pp. 289-301.
[4] MARQUES, Antonio Silveira. Der Rechtstaat der Risikovorsorge. (Schriften zum Öffentlichen Recht, Vol. 1381). Berlin: Duncker & Humblot, 2018, especialmente pp. 114-120.
[5] Cf., por todos, CALIESS, Christian. Die grundrechtliche Schutzpflicht im mehrpoligen Verfassungsverhältnis, in: Juristen Zeitung – JZ, 2006.
[6] Cf. SUNSTEIN, Cass R. Laws of Fear. Beyond the Precautionary Principle. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

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