Mineração e tragédias no estado de Minas Gerais. Até quando?
2 de março de 2019, 8h00
Tratando sobre a extração de ouro no Morro de Pascoal da Silva, em Vila Rica, em 1717, o Conde de Assumar, então governador, deixou registrado em seu diário que os negros faziam “huns buracos mui profundos aonde se metem, e pouco a pouco vão tirando a terra para a lavar; porém esta sorte de tirar ouro he mui arriscado, porque sucede muitas vezes cahir a terra e apanhar os negros debayxo deitando-os enterrados vivos”.
Tamanha a degradação causada pela mineração de ouro na região de Mariana, com mortes de pessoas e animais que despencavam pelos buracos abertos nos morros, que em 26 de setembro de 1721 Dom Lourenço José de Almeida, governador e capitão-general de Minas Gerais, baixou norma que determinava: “toda a pessoa que abrir buraco será obrigada a torná-lo a tapar de forma que fique a terra igual para que não sucedam as desgraças que têm sucedido nestes morros onde se minera com buracos, e os que têm deixado abertos, e toda a pessoa de qualquer qualidade ou condição que seja que fizer o contrário do acima dito e faltar a esta minha ordem, será presa na cadeia desta Vila por dois meses infalivelmente, sendo o primeiro mês carregada de ferros”.
Ao que sabemos, foi a primeira vez que uma norma jurídica precisou ser editada em Minas Gerais para tentar refrear os danos causados pela prática abusiva da mineração.
Mas a história estava apenas começando…
Em meados de 1844, na Mina de Cata Branca, município de Itabirito, à época alvo da exploração aurífera por uma empresa britânica chamada Saint John del Rey Mining Company, houve o desabamento da galeria explorada e o soterramento de dezenas de operários escravos. Segundo os registros, dias depois do desastre ainda eram ouvidas vozes e gemidos dos negros em meio aos escombros da mina de ouro. Ante a dificuldade de resgate, os empreendedores ingleses tomaram a decisão de desviar um curso d’água para inundar a galeria, matando os pobres trabalhadores sobreviventes afogados, ao invés de esperá-los morrer de fome.
Sobre o fato, José Pedro Xavier da Veiga deixou registrado nas suas célebres Efemérides Mineiras: “E lá estão enterradas naquele gigantesco túmulo da rocha as centenas de mineiros infelizes, que encontraram a morte perfurando as entranhas da terra para lhe aproveitar os tesouros. A mina conserva escancarada para o espaço uma boca enorme rodeada de rochas negras e como que aberta numa contorção de agonia”.
Em 21 de novembro de 1867, na Mina de Morro Velho, em Nova Lima, um desabamento matou 17 escravos e um trabalhador inglês. Dezenove anos mais tarde, em 10 de novembro de 1886, a história se repetiu em Morro Velho.
Mais recentemente, rompimentos de barragens nas minas de Fernandinho (1986) e Herculano (2014), em Itabirito; Rio Verde (2001), no distrito de Macacos, em Nova Lima; e da Mineração Rio Pomba (2008), em Miraí, redundaram em dezenas de outras mortes e prejuízos irreversíveis ao meio ambiente de Minas Gerais.
Em 5 de novembro de 2015, em Mariana, o rompimento de duas barragens da empresa Samarco soterrou quase integralmente o distrito de Bento Rodrigues, ceifou 19 vidas, destruiu centenas de bens culturais e danificou de forma severa os recursos ambientais de quase toda a bacia do rio Doce, chegando a contaminar o Oceano Atlântico e o sensível e importante Arquipélago de Abrolhos.
Todos sabem que a história é mestra da vida e os fatos adversos por ela registrados devem servir de alerta para o futuro, para que os erros do passado não sejam repetidos.
O aprendizado com os equívocos de antanho deveria impor ao setor minerário da atualidade uma completa mudança de paradigmas. Afinal, temos condições de sermos autores da nossa própria história e não podemos admitir a repetição reiterada desses desastres como algo normal, inerente às atividades econômicas de Minas Gerais. Consoante a sábia advertência de Bertrand Russell: “Na vida nunca se deveria cometer duas vezes o mesmo erro. Há bastante por onde escolher”.
Contudo, nem mesmo as trágicas consequências do desastre de Mariana foram suficientes para sensibilizar o setor minerário e os órgãos licenciadores sobre a necessidade de mudança de postura.
Infelizmente, percebemos que ainda se avultam nas Minas Gerais as inconsequentes condutas de mineradoras induzidas pela ambição do lucro fácil e pelo desdém aos direitos alheios, não raras vezes secundadas pela omissão, conivência ou incompetência de autoridades públicas responsáveis pelos processos de licenciamento ambiental, que se contentam com a adoção de tecnologias ultrapassadas em empreendimentos de alto risco, que raramente são fiscalizados.
Em razão de tais fatos, o Ministério Público de Minas Gerais propôs, em 4 de novembro de 2016, ação civil pública contra o estado de Minas Gerais requerendo fosse o mesmo condenado a se abster de conceder novos licenciamentos de barragens de acúmulo de rejeitos pelo método de alteamento a montante para empreendimentos minerários[1].
Naquela ocasião existiam 37 pedidos (16 deles de empresas do grupo Vale) de renovação de licenças para tais estruturas de armazenamento de rejeitos, que é a que gera menos custos para o empreendedor, mas, ao mesmo tempo, a que implica em maiores riscos de rompimento e, consequentemente, de danos ambientais e sociais, devido a fenômenos como o pipping, a liquefação e ocorrências sísmicas[2], razão pela qual foram banidas pela legislação de diversos países, a exemplo do Chile, ainda no ano de 1969, e proscrita pela NBR 13.028[3], da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), no item 4.2, da versão do ano de 1993, onde era dito que: “Não se recomenda o alteamento de barragem pelo método a montante”.
A ação civil pública advertia que a perpetuação do uso de barragens de alteamento a montante, quando existentes alternativas mais seguras e ambientalmente adequadas para tanto, violava o dever jurídico de adoção das melhores tecnologias disponíveis (MTD) e feria dois dos objetivos básicos da política nacional de resíduos sólidos, estabelecida pela Lei 12.305/2010, que são: a) a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos; b) a adoção, desenvolvimento e aprimoramento de tecnologias limpas como forma de minimizar impactos ambientais.
Contudo, mesmo ciente do alerta, o estado de Minas não só deu continuidade aos processos de licenciamento envolvendo tais estruturas como ainda promoveu notória flexibilização das regras do licenciamento ambiental[4], com o nítido propósito de beneficiar, entre outros, o seguimento dos empreendimentos de mineração, do qual muitos agentes políticos são reféns nesta terra das alterosas, em razão de interesses inconfessáveis.
Tal conduta, mesmo que sob o ponto de vista apenas da teoria do ethos (que não admite a pretensiosa concepção de que a natureza é apenas meio e os objetivos empresariais o único fim), viola os basilares deveres morais de prudência e solidariedade intergeracional. É preciso compreender que não somente as regras jurídicas positivadas são preceitos que devem ser observados pelo poder público e pelos empreendedores no exercício de suas atividades industriais ou econômicas, porque se deve considerar, por primeiro, como freio básico de ações potencialmente degradadoras e deletérias ao meio ambiente e ao ser humano, a tábua de valores constituída de regras morais aceitas pela sociedade, o que é objeto da ética, e não do Direito.
Como salienta o desembargador José Renato Nalini, o ser humano não está desvinculado de compromissos éticos em relação aos que o sucederão. O homem não é dono da natureza. Ele a recebeu por empréstimo e prestará contas pela sua malversação. Por isso, nunca se exigiu do ser humano tanta prudência. Prudência que leva em consideração o futuro, pois seria perigoso e imoral esquecê-lo[5].
Mas nem a ética nem o Direito foram suficientes para mudar a postura de leniência do poder público de Minas Gerais e de ganância do setor minerário em relação ao uso da tecnologia assassina consistente do armazenamento de milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração em barragens construídas com terra e tão mais perigosas quanto mais antigas e elevadas.
Na sequência dos acontecimentos, em 24 de janeiro deste ano, uma nova tragédia assolou Minas Gerais, desta vez em decorrência do rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração da empresa Vale, no município de Brumadinho, construída pelo conhecido e mortífero método de alteamento a montante. O número de mortos já ultrapassa 180 pessoas e existem cerca de 130 ainda desaparecidas. Centenas de hectares de vegetação ciliar nativa foram suprimidos pela lama, que também desabrigou grande número de pessoas e contaminou centenas de quilômetros do rio Paraopeba, importante afluente do rio São Francisco, implicando na mortandade de peixes, contaminação hídrica por metais pesados, bioacumulativos — como chumbo e mercúrio — e suspensão do abastecimento de água para milhares de pessoas.
Em resposta à mais recente hecatombe minerária ocorrida em Minas, a 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual de Belo Horizonte concedeu, em 28 de janeiro, a liminar requerida pelo Ministério Público na ação civil pública acima referenciada, proposta em 2016, impedindo a concessão de novas licenças para barragens de alteamento a montante. A Agência Nacional de Mineração editou, em 15 de fevereiro, a Resolução ANM 04/2019, que estabelece medidas regulatórias cautelares objetivando assegurar a estabilidade de barragens de mineração, notadamente aquelas construídas ou alteadas pelo método denominado "a montante" ou por método declarado como desconhecido.
Por fim, em 22 de fevereiro a Assembleia Legislativa de Minas Gerais aprovou o projeto de lei “Mar de Lama Nunca Mais”, de autoria popular (capitaneada pela Associação Mineira do Ministério Público), que dormitava nos escaninhos do Poder Legislativo desde 2016. O projeto, já sancionado e convertido na Lei Estadual 23.291/2019, prevê medidas importantes para se evitar novos desastres envolvendo barragens de mineração em Minas Gerais, a exemplo de regras específicas de licenciamento ambiental, a vedação de construção de barragens quando existente comunidade situada na zona de autossalvamento e a proibição de construção de barragens pelo método de alteamento a montante.
Contudo, conquanto tenham sido importantes os últimos avanços advindos do novo posicionamento dos Poderes Judiciário, Executivo e Legislativo sobre a questão da segurança envolvendo atividades minerárias em Minas Gerais, é preciso reconhecer que, realisticamente, os riscos de novos desastres não foram afastados.
A simples edição de normas e a prolação de decisões judiciais não são capazes de mudar a realidade vivenciada pelos homens.
Como já advertia o insuperável poeta itabirano Carlos Drummond de Andrade, que tão de perto conviveu com as agruras e destruições decorrentes da atividade minerária em sua terra: “As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei”.
Com efeito, ainda são muitas as barragens de rejeitos existentes e que colocam em risco a vida dos mineiros e a integridade do meio ambiente em nosso estado. O perigo persiste e a atenção deve ser redobrada até que todas elas sejam descomissionadas.
Somente a implementação efetiva das novas normas existentes, com uma rígida e eficiente fiscalização por parte dos diversos atores responsáveis pelo controle das atividades minerárias, aliadas a uma esperada mudança de postura dos empreendedores quanto ao monitoramento, à manutenção preventiva e à desativação das verdadeiras “bombas-relógio” que espalharam pelos chãos do nosso estado, poderão nos trazer um cenário de maior segurança.
As Minas, de tragédias gerais, aguardam por isso.
[1] Processo 5162864-29.2016.8.13.0024.
[2] DUARTE, A. P. Classificação das barragens de contenção de rejeitos de mineração e de resíduos industriais no Estado de Minas Gerais em relação ao potencial de risco. 2008. Dissertação (Mestrado em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos) – Departamento de Engenharia Sanitária e Ambiental, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: UFMG, 2008.
[3] Essa norma fixa as condições exigíveis para elaboração e apresentação de projeto de disposição de rejeitos de beneficiamento, em barramento, em mineração, visando atender as condições de segurança, higiene, operacionalidade, economia, abandono e minimização dos impactos ao meio ambiente, dentro dos padrões legais.
[4] Deliberação Normativa Copam 217, de 6 de dezembro de 2017.
[5] NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. São Paulo: Revista dos Tribunais. 5. Ed. 2006. p. 463.
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