Crime e Castigo

Ideias de Brancaleone: o assassinato pelo Estado e a negação da modernidade!

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

19 de maio de 2019, 14h23

Spacca
O sentido da democracia reside na legitimidade da vontade da maioria para indicar quem deve governar.

O sentido do Estado de Direito encontra-se na proteção da minoria quando ela é ameaçada, e no cumprimento estrito de regras previamente criadas.

A conjugação de ambos constrói o sentido dos Poderes eleitos pela maioria, com seus conflitos dirimidos por quem não se submete ao escrutínio do povo.

Todos juntos respeitam a minoria, não obstruem os canais de escolha da vontade pública e preservam as funções e separações institucionais.
Isto é o Estado Democrático de Direito.

Nem a mais cândida das almas ousaria dizer que não estamos num momento de crise, com alguma cizânia mais profunda.

Há crise política, há crise moral, há ruptura de lógicas políticas e há desfazimento de racionalidade. Nada nos protegerá mais do que a sempre diária afirmação das instituições. Nada protegerá mais os pensadores e juristas do que a coerência!

O Estado também é composto de um Judiciário que deve ser criticado, porém respeitado; de um Ministério Público que deve ser atuante, porém responsável; de uma Polícia que deve estar presente, mas obediente à lei; de um Legislativo independente, porém jamais seduzível às negociatas. Todos possuem um papel constitucional e institucional, e é exatamente este papel que precisa ser preservado enquanto o quadro moral e ético se agrava, a crise se aprofunda e ideias contrárias ao Estado Democrático de direito surgem a torto e a direito.

Há vozes destoantes ocupando lugares de fala dignos do Exército de Brancaleone. Precisamos evitá-las! Há ideias que já fizeram parte de outros discursos, em tempos que nem Cervantes e nem eu já não queremos lembrar!

Abater pessoas utilizando atiradores à média distância é uma destas abstrações aberrantes!

Abater cidadãos tidos por criminosos, desde helicópteros ou postos avançados, utilizando-se de snipers não parecer ser, nem de longe, papel do Estado ou atitude razoável na modernidade.

Obviamente toda a sociedade quer proteção, e nenhum de nós suporta mais o agravado quadro de violência e mortes que tomou conta de algumas regiões do país. Medidas urgentes precisam ser tomadas.

Conquanto, não podemos transformar o Estado em promotor profissional de assassinatos; os policiais em sicários da força pública, abrindo mão da posição ética que os caracteriza, para mergulharmos numa perseguição do inimigo público indicado.

Não podemos responder ao crime com os mesmos métodos e praticando os mesmos atos dos criminosos, pela só razão ética de que isso nos iguala a eles. Se agirmos tal e qual o bandido, a nossa diferença qual será? E isso em tempos de milícias, onde a farda e a força pública já pouco se diferenciam dos demais praticantes de atos ilegais!

Lógico que parte da população pensa em si de forma epidérmica! Pensa em vendeta e raciocina desejando a exclusão pura e simples do outro. Contudo, quando vinganças coletivas ou individuais são estadualizadas morre a diferença entre o leviatã e os peixes em conflito! Não apenas Rosseau morre, mas Hobbes também.

Isto sem mencionar questões práticas: quem escolhe quem é bandido e deve morrer? O atirador? Isto sem apresentar questões óbvias como: e se o atirador usar sua posição de oráculo da vida e da morte para resolver questões pessoais ou ideológicas? E se ele errar o tiro?

Mesmo em guerra, sob a égide de todos os organismos internacionais e sob a tutela do direito internacional não se admite agressões diretas à população, desta maneira. Estamos em guerra? Talvez estejamos em guerra contra as milícias, contra os traficantes e contra os assaltantes de banco, mas não estamos em guerra contra os favelados, os habitantes dos morros, as famílias de periferia e os excluídos sociais.

O direito abomina o homicídio, e por esta razão não é possível num estado democrático de direito legalizar o homicídio praticado pelo Estado!

Não é dogmaticamente razoável sustentar como legítima defesa abater dos céus, do mar ou da terra nossos concidadãos sob a justificativa de reduzir o crime!

Policias precisam ser equipadas, precisam ser limpas da bandidagem que as corrompeu em diversos lugares do país! Os efetivos devem aumentar. Zonas de controle de milicianos e de traficantes precisam ser retomadas pelo Estado. O tráfico de armas precisa ser coibido nas fronteiras e dentro das corporações. As ruas devem ser patrulhadas e os criminosos presos!

Não parece ser crível que a gestação do direito de matar o outro persista em pleno século XXI, mesmo que Brancaleone saia das telas do cinema italiano e invada o Brasil de 2019.

Autores

  • é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!