Academia de Polícia

Reflexões sobre a (in)ação penal e a ação subsidiária

Autor

  • Márcio Adriano Anselmo

    é delegado da Polícia Federal doutor pela Faculdade de Direito da USP mestre em Direito pela UCB e especialista em investigação criminal pela ESP/ANP e em Direito do Estado pela UEL.

7 de maio de 2019, 12h55

Spacca
O site do STJ, em 16 de abril, assim noticiou[1]:

Excesso de prazo determina trancamento de inquérito contra empresário na Operação Custo Brasil

A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou o trancamento do inquérito policial que investigava o envolvimento do empresário Dércio Guedes na Operação Custo Brasil, desdobramento da Lava Jato em São Paulo.

De acordo com o relator do habeas corpus, ministro Sebastião Reis Júnior, há evidente excesso de prazo no caso.

“O procedimento investigatório foi instaurado no dia 14/12/2015 e encerrado pela autoridade policial em 9/4/2018. Pelo que constatei das recentes informações prestadas, desde então o feito aguarda providências pelo órgão acusatório”, afirmou o ministro.

Ele destacou que a única movimentação processual desde então se deu em 5 de novembro do ano passado, quando foram prestadas informações ao tribunal de origem.

“Na minha compreensão, o constrangimento ilegal está caracterizado, uma vez que o Ministério Público Federal, aqui, não esclareceu o motivo da demora de mais de um ano para o oferecimento da peça acusatória ou adoção de qualquer outra ação processual”, fundamentou o relator.

Além disso, Sebastião Reis Júnior lembrou que o processo teve andamento regular para os demais investigados. “Alie-se a isso o fato de outras três denúncias, relacionadas aos mesmos fatos sob investigação, já terem sido oferecidas em desfavor de outros indiciados no ano de 2016”, concluiu o ministro.

A decisão da Turma foi por maioria. Votaram contra o trancamento a ministra Laurita Vaz e o ministro Rogerio Schietti Cruz.

Custo Brasil
A Operação Custo Brasil foi deflagrada pela Polícia Federal em junho de 2016 como um desdobramento da 18ª fase da Lava Jato e investigou um suposto esquema de fraudes envolvendo crédito consignado de servidores públicos.

Segundo o MPF, o Grupo Consist repassava valores do seu faturamento a políticos, e teria movimentado mais de R$ 100 milhões em propinas de 2009 a 2015. No início da operação, o ex-ministro do Planejamento Paulo Bernardo chegou a ser preso.

Ainda de acordo com o MPF, Dércio Guedes foi investigado pela suposta prática do crime de corrupção ativa, pois teria oferecido vantagem indevida para uma funcionária pública para prorrogar um acordo de cooperação técnica.

No caso em tela, por óbvio, o tema prioritário que se apresenta é a duração razoável do processo penal, previsto no artigo 5º, LXXVIII da Constituição Federal, ao assegurar que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”, o que, sem dúvida, também deve se aplicar à investigação criminal. O mesmo também é previsto no artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

5. Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

Por outro lado, gostaria de colocar sob discussão, neste espaço, a questão dos reflexos da decisão e do sério prejuízo à União, tendo em vista os efeitos civis que podem advir da condenação.

A esse respeito, cabe destacar que o Código de Processo Penal, ao tratar da ação penal, no título III:

Art. 24. Nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo.

(…)

§ 2º Seja qual for o crime, quando praticado em detrimento do patrimônio ou interesse da União, Estado e Município, a ação penal será pública.

(…)

Art. 29. Será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal, cabendo ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.

A Constituição Federal, por sua vez, em seu artigo 5º, LIX, dispõe que "será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal". Trata-se, portanto, de cláusula pétrea.

Portanto, para exemplos como o caso em tela, é preciso reconhecer a legitimidade extraordinária para defesa do interesses dos entes públicos e nos parece, no caso, que caberia à Advocacia-Geral da União tal ato, conforme disposição expressa do artigo 131 da Constituição Federal segundo o qual:

“A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”.

E não há que se falar aqui em violação do sistema acusatório, pois o próprio Ferrajoli já aponta que o princípio acusatório não implica exclusividade da ação penal, conforme destacado por Eliomar da Silva Pereira:

“Esse princípio se deve entender como uma garantia orgânica de imparcialidade da jurisdição, não implicando qualquer discricionariedade da ação, tampouco sua exclusividade concentrada em mãos de um órgão oficial de acusação”[2].

Devem ser desenvolvidos mecanismos, portanto, de defesa do patrimônio público, com a comunicação da advocacia pública nos casos em que envolvam crimes que lesem o erário, em claro equilíbrio entre os direitos do acusado e da vítima.

Por outro lado, a excepcionalidade à ação penal pública também é prevista em outros diplomas normativos, como, por exemplo:

Art. 183. Compete ao juiz criminal da jurisdição onde tenha sido decretada a falência, concedida a recuperação judicial ou homologado o plano de recuperação extrajudicial, conhecer da ação penal pelos crimes previstos nesta Lei.

Art. 184. Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.

Parágrafo único. Decorrido o prazo a que se refere o art. 187, § 1o, sem que o representante do Ministério Público ofereça denúncia, qualquer credor habilitado ou o administrador judicial poderá oferecer ação penal privada subsidiária da pública, observado o prazo decadencial de 6 (seis) meses.

Da mesma forma, o CDC também aponta legitimidade concorrente na defesa do consumidor em juízo:

Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente:

I – o Ministério Público,

II – a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;

III – as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;

IV – as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear.

Ainda, na Lei 7.492/86, o texto é claríssimo:

Art. 26. A ação penal, nos crimes previstos nesta lei, será promovida pelo Ministério Público Federal, perante a Justiça Federal.

Parágrafo único. Sem prejuízo do disposto no art. 268 do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, será admitida a assistência da Comissão de Valores Mobiliários – CVM, quando o crime tiver sido praticado no âmbito de atividade sujeita à disciplina e à fiscalização dessa Autarquia, e do Banco Central do Brasil quando, fora daquela hipótese, houver sido cometido na órbita de atividade sujeita à sua disciplina e fiscalização.

Art. 27. Quando a denúncia não for intentada no prazo legal, o ofendido poderá representar ao Procurador-Geral da República, para que este a ofereça, designe outro órgão do Ministério Público para oferecê-la ou determine o arquivamento das peças de informação recebidas. (grifo nosso)

Por fim, imperioso ainda destacar o artigo 3º do CPP ao estabelecer que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito”.

Veja-se que aqui podem ser aplicados os mesmos argumentos que nortearam a decisão do STF ao decidir sobre o poder investigatório no RE 593.727/MG, notadamente a questão da ausência de exclusividade da ação penal, à luz da teoria dos poderes implícitos (tanto que a exclusividade da ação penal fora mitigada em inúmeras oportunidades).

E aqui, adotando as razões de decidir do ministro Celso de Mello, expostas no voto do referido recurso extraordinário, vale frisar:

“Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes implícitos (CARLOS MAXIMILIANO, “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, p. 312, item n. XI, 18ª ed., 1999, Forense, v.g.), cuja doutrina – construída pela Suprema Corte dos Estados Unidos da América no célebre caso McCULLOCH v. MARYLAND (1819) – enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos..

Cabe assinalar, ante a sua extrema pertinência, o autorizado magistério de MARCELLO CAETANO (“Direito Constitucional”, vol. II/12-13, item n. 9, 1978, Forense), cuja observação, no tema, referindo-se aos processos de hermenêutica constitucional, assinala que, “Em relação aos poderes dos órgãos ou das pessoas físicas ou jurídicas, admite-se, por exemplo, a interpretação extensiva, sobretudo pela determinação dos poderes que estejam implícitos noutros expressamente atribuídos”[3].

Pois bem, não há dúvidas de que a própria Constituição Federal, no artigo 131, outorgou à advocacia pública o direito de representar a União judicial e extrajudicialmente, a quem, ainda citando o voto do ministro Celso de Mello, ao citar Oswaldo Trigueiro:

“Nada mais lógico, portanto, do que recorrermos eventualmente ao expediente dos poderes implícitos, para neles assentar algum poder derivado de que (…) tivesse de utilizar-se para integral desempenho de seu papel constitucional”.

E como instrumentalizar tal mecanismo de ação subsidiária? Nos parece mais razoável e consentâneo com o Estado Democrático de Direito, que, nos casos de investigação policial, quando encontrados elementos que apontem a existência de materialidade delitiva e identificação de autoria, expressos por meio do indiciamento (devidamente previsto na Lei 12.830/2012, artigo 2º, parágrafo 6º ), “privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias”, que, quando da conclusão do inquérito policial e apresentação do relatório final, seja o órgão da advocacia pública da esfera competente devidamente informado para acompanhamento e, decorrido o prazo legal, sem ação por parte do órgão acusador, que seja manejada a devida ação subsidiária, a fim de resguardar o interesse do ente público lesado.


[1] Cf. notícia publicada em http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Comunica%C3%A7%C3%A3o/noticias/Not%C3%ADcias/Excesso-de-prazo-determina-trancamento-de-inqu%C3%A9rito-contra-empres%C3%A1rio-na-Opera%C3%A7%C3%A3o-Custo-Brasil . Acesso em 6/5/2019.
[2] PEREIRA, Eliomar da Silva. Saber e Poder: o processo de investigação penal. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2019, p. 77.
[3] Trecho do voto do ministro Celso de Mello no RE 593.727/MG.

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