O sistema judicial penal: a autopoiese como necessidade
23 de junho de 2019, 9h31
O filme de Fellini — combinado com as páginas de García Márquez — no qual se transformou a sociedade brasileira levou à normalização da ignorância e à valorização da estupidez, com palcos armados para eloquentes, que repentinamente têm opiniões a dar sobre tudo, e são chamados de filósofos, para o desespero das almas de Aristóteles e Kant.
Os gregos antigos provaram que a Terra era redonda, com Pitágoras, em IV a.C, e também com Eratóstenes, à frente da biblioteca de Alexandria, que calculou a sua circunferência.
Ele errou, de fato! Por 75 quilômetros, segundo a medição atual da Nasa!
Já Galileu Galilei comprovou que a Terra esférica girava — e ainda gira — em torno do sol!
Mas há quem duvide!
A internet chega para unir os “doidos de praça”, isolados num bar ou num logradouro qualquer. Emitem opiniões e resolvem problemas conforme suas próprias limitações. Eles se sentem confortados ao saberem que as suas loucuras não são únicas. A simbologia da representação da ignorância favorece a estupidez. As redes sociais os conectam. A imbecilidade ganha voz atrás da internet, disse um dia Umberto Eco.
Paralelamente a isso, pessoas com expertise numa determinada questão tendem a opinar em áreas que demandam um conhecimento que não possuem. Elas usam compreensões exógenas à natureza de uma questão para tentar dar respostas a análises de outros sistemas.
O arquiteto deseja dar opinião sobre a teoria da relatividade de Einstein.
E negá-la!
O juiz lê na rede social a legitimação da sua decisão!
E se regozija!
Essa é uma característica natural dos tempos que correm!
Como explicar no Brasil de hoje que a Medicina e o Direito Penal estão diluídos no amálgama das opiniões sem estrutura e sem fundamento? Como enfrentar o fato de que esta diluição vem como subproduto da liberdade tecnológica e da democracia?
Talvez Niklas Luhmann nos ajude a entender.
A sociedade moderna caracteriza-se por diferenciações e por sistemas que gozam de autonomia frente a outros sistemas.
Não podemos resolver problemas internos ou responder a perguntas específicas de um sistema autônomo com base em pressupostos de outro sistema. Também não podemos agir no sistema de Justiça penal a partir da absoluta alopoiese, que nega a existência e a autonomia dos próprios sistemas e pugna pela inexistência de diferenciação. Não é moderno desconhecer que entre eles mesmos e o ambiente onde sobrevivem há diferenças.
No ambiente moderno, questões de Economia se resolvem — ou deveriam se resolver — sob as lógicas das ciências econômicas, e não a partir do senso comum ou das verdades do Direito. A ciência jurídica não pode globalmente resolver crises da Economia. Isto nos faz modernos! Mas estamos abandonando a modernidade.
Essas mesmas questões podem ser tratadas conforme outros pressupostos, pois novo tratamento jurídico de questões econômicas — sob o enfoque jurídico — não invalida as soluções internas da própria Economia.
Sistemas são autopoiéticos, e isto é uma característica da modernidade onde o xerife já não resolve questões de família, e o monarca não soluciona problemas de religião. Não são as verdades do príncipe ou seus pressupostos que validam as soluções, mas a lógica interna de cada um dos sistemas.
Diferenciação é a nota da modernidade!
Não podemos desistir dela!
O sistema de Justiça tem regras internas e se move a partir de elementos concretos próprios. Não é possível decidir ou agir na Justiça com base em topoi de outros discursos ou do senso comum vigente. Não seria moderno.
Em termos comezinhos, valoração da prova e argumentação jurídica sobre a prova, assim como existência ou não de fato típico e responsabilidade penal do agente por fato atípico, não podem ser tratadas a partir da Economia ou da política.
No cotidiano, a política invade o Direito, na medida em que nem sempre os pressupostos jurídicos são observados nas decisões, e muitas delas cristalizam uma narrativa política. O sistema político oferece fundamentos e justificativas para atos judiciais, e a alopoiese permite que a narrativa ideológica invada a fundamentação judicial.
Neste sentido, Luhmann observa que os direitos fundamentais devem ser usados como uma ponte entre o mundo jurídico e a Política, já que a Constituição é o momento do acoplamento estrutural entre os dois sistemas. Esta ponte não existe para que a política invada o Direito, mas exatamente para que eles se mantenham afastados. Eles são a última fronteira da diferenciação. Tudo para que o sistema judicial não se comprima por outra narrativa, abandonando a dogmática.
Na diluição discursiva do Brasil de hoje, a política se ocupa do Direito Criminal e as razões de alguns julgamentos estão fora da dogmática. Algumas decisões não podem ser explicadas, porque seus apoios estão fora dos pressupostos do Direito Criminal.
É um momento de crise da dogmática penal!
Um momento de obstaculização do sistema de Justiça pelo ambiente e pelo sistema político. A Constituição, responsável pelo acoplamento estrutural, sofre agressões que permitem a colonização do Direito pela política.
A solução pode ser encontrada na própria escrita do sociólogo de Bielefeld: garantir que o sistema judicial penal resolva suas tensões e suas questões com base na própria dogmática criminal.
A alopoiese e a liquefação dos axiomas de decisões — centralizando-os no senso comum — é característica de um sistema autoritário, jamais da ampla democracia, que é um dos itens desejáveis de nossa moderna modernidade.
No sistema judicial penal há sempre uma tradução de fatos com imposição de normas.
Como traduzi-los preservando conquistas da modernidade? Como fazer bem a arte?
Se não Niklas Luhmann — ou Raffaele De Giorgi —, ao menos Ferreira Gullar pode nos ensinar, para que não decretemos a morte da Justiça criminal:
Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?”.
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