Limite Penal

Adoção do plea bargaining no projeto "anticrime": remédio ou veneno?

Autor

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

22 de fevereiro de 2019, 10h11

A ampliação dos espaços de consenso é uma tendência inexorável e necessária, diante do entulhamento da Justiça criminal em todas as suas dimensões. Contudo é preciso compreender que nosso sistema jurídico (civil law) impõe limites que não permitem a importação de uma negociação tão ampla e ilimitada no que se refere à quantidade de pena — como a proposta pelo projeto "anticrime" do governo federal — que se assemelha ao plea bargaining norte-americano (common law). Uma negociação dessa magnitude representa o fim do processo penal, na medida em que legitima em larguíssima escala a "aplicação de pena privativa de liberdade sem processo". Nos Estados Unidos, acordos assim superam 90% dos meios de resolução de casos penais, chegando a 97% nos casos federais e até 99% em Detroit. Significa dizer que 9 de cada 10 casos criminais são resolvidos com a aplicação de uma pena sem nenhum processo, sem contraditório e sem produção de provas.

O plea bargaining viola desde logo o pressuposto fundamental da jurisdição, pois a violência repressiva da pena não passa mais pelo controle jurisdicional efetivo e tampouco se submete aos limites da legalidade, senão que está nas mãos do Ministério Público e submetida à sua discricionariedade. Isso significa uma inequívoca incursão do Ministério Público em uma área que deveria ser dominada pelo tribunal, que erroneamente limita-se a homologar o resultado do acordo entre o acusado e o promotor. Não sem razão, afirma-se que o promotor é o juiz às portas do tribunal. É verdade que o projeto tenta dar maior protagonismo para o juiz, inclusive permitindo que não homologue o acordo quando “as provas existentes no processo forem insuficientes para uma condenação criminal”. Mas isso é simbólico e meramente sedante, pois não resolve o problema e serve como mero paliativo a uma (apenas uma) das críticas ao modelo de ampla negociação que pretende implantar.

O ponto nevrálgico é: qual o espaço de negociação que nosso sistema admite e tolera, sem gravíssimo prejuízo para a qualidade da administração da Justiça? É preciso pensar esse limite a partir da compreensão da nossa realidade social e prisional e também dos erros que já cometemos com a banalização da transação penal (Lei 9.099/95). Se a transação penal já se mostrou uma perversa mercantilização do processo penal, no sentido mais depreciativo da expressão, imagine-se o imenso estrago que causará uma ampliação excessiva ou ilimitada desse espaço?

Também é uma ilusão pensar que existe uma "livre" negociação ou "consenso" real por parte de quem está sofrendo uma acusação e não raras vezes sofrendo uma prisão cautelar.

Schünemann[1] critica o suposto princípio de consenso, frequentemente invocado para legitimar o modelo negocial, taxando de "eufemismo", por trás do qual se ocultaria uma sujeição do acusado à medida de pena pretendida pelo acusador, enquanto resultado mínimo, de quem é colocado em posição de submissão através de forte pressão por parte da Justiça criminal sobre o acusado. É uma ficção, desde o ponto de vista prático, conclui. Não existe consenso ou voluntariedade, porque não existe igualdade de partes/armas. Existe uma submissão do réu a partir de uma visão de redução de danos (para evitar o "risco" do processo). Existe semelhança com um "contrato de adesão", onde não há liberdade plena e real igualdade para negociar, apenas de aceitar o que lhe é imposto.

O plea bargaining no processo penal pode se constituir em um perverso intercâmbio, que transforma a acusação em um instrumento de pressão, capaz de gerar autoacusações falsas, testemunhos caluniosos por conveniência, obstrucionismo ou prevaricações sobre a defesa, desigualdade de tratamento e insegurança. O furor negociador da acusação pode levar à perversão burocrática, em que a parte passiva não disposta ao "acordo" vê o processo penal transformar-se em uma complexa e burocrática guerra. Tudo é mais difícil para quem não está disposto ao "negócio".

Dessarte, a negociação precisa ser adotada com prudência, critérios e limites de pena a ser negociada. Não pode ser um modelo completamente aberto como o proposto.

Na Itália, cujo modelo civil law é similar ao brasileiro e que sempre serviu de orientação doutrinária, jurisprudencial e legislativa, o patteggiamento sulla pena (artigo 444 e seguintes, CPP italiano) é uma negociação entre acusado e MP, que não permite negociação sobre a imputação (correlação) e que tem um limite demarcado: com a redução de 1/3, a pena não pode superar 5 anos. Esse é um limite muito próximo e que orientou a redação do artigo 283 do projeto de CPP que tramita atualmente.

Na Espanha, a Ley de Enjuiciamiento Criminal prevê o instituto da conformidad nos artigos 695 e seguintes e depois nos artigos 787 e 801, onde o acusado se conforma com a pena pedida pelo Ministério Público, abreviando assim o procedimento e aceitando a imputação, desde que a pena privativa de liberdade não seja superior a 6 anos. No processo penal português, existe o arquivamento em caso de dispensa da pena (artigo 280 do CPP português) e o instituto da "suspensão provisória do processo" (artigo 281), similar à nossa suspensão condicional do processo, para crimes punidos com pena não superior a 5 anos. Nesse caso, o processo ficará suspenso por um período máximo de 2 anos ou de 5 anos (casos previstos no artigo 281. 6 e 7), e, uma vez cumpridas as condições, será arquivado (artigo 282). Esse é o espaço negocial. Figueiredo Dias[2] propõe uma ampliação, dentro do marco do artigo 344 do CPP português, e, portanto, somente cabível para crimes cuja pena máxima não ultrapasse os 5 anos, ficando na esfera dos crimes de pequena ou média gravidade.

O projeto do CPP (PL 8.045) define no seu artigo 283 que a negociação será aplicável aos crimes cuja pena máxima cominada não ultrapasse 8 anos, cabendo às partes pedir aplicação da pena mínima.

A negociação é imposta antes da instrução, portanto, sem produção de provas. Isso leva a uma supervalorização do inquérito policial, que passa a ser soberano e a única prova existente, com os graves inconvenientes de que o inquérito é um modelo ultrapassado de investigação, é unilateral, inquisitório, sigiloso e despido de contraditório e defesa efetivos. Daí a preocupação acertada de Streck[3] em cobrar seriedade na aplicação do plea, a começar pelo dever de o Ministério Público ter um agir ético (e não estratégico, como sói ocorrer), de também investigar elementos de descargo e que possam auxiliar a defesa (e o esclarecimento do fato), e de trazer todos os elementos colhidos, de forma transparente, para o momento do acordo, evitando"blefes" e surpresas. Mas isso, com certeza, é sempre muito difícil de se efetivar.

Ademais, a negociação está centrada na "confissão", que volta a ser a rainha das provas no modelo negocial, como uma recusa a toda a evolução da epistemologia da prova e também do nível de exigência na formação da convicção dos julgadores. Nada de prova de qualidade, de standard probatório, de prova produzida em juízo, à luz do contraditório e que precisa ser robusta ou pelo menos com alto grau de certeza e convicção. Bastam os meros atos de investigação, realizados de forma inquisitória na fase pré-processual, sem (ou com muita restrição) de defesa e contraditório, seguidos de uma confissão. A rainha das provas voltou.

Atualmente, explica Langbein[4], nos Estados Unidos, "nós coagimos o acusado contra quem encontramos uma causa provável a confessar a sua culpa. Para ter certeza, nossos meios são muito mais elegantes; não usamos rodas, parafusos de polegar, botas espanholas para esmagar as suas pernas. Mas como os europeus de séculos atrás, que empregavam essas máquinas, nós fazemos o acusado pagar caro pelo seu direito à garantia constitucional do direito a um julgamento. Nós o tratamos com uma sanção substancialmente aumentada se ele se beneficia de seu direito e é posteriormente condenado. Este diferencial da sentença é o que torna o plea bargaining coercitivo. Há, claro, uma diferença entre ter os seus membros esmagados ou sofrer alguns anos a mais de prisão se você se recusar a confessar, mas a diferença é de grau, não de espécie. O plea bargaining, assim como a tortura, é coercitivo" (grifamos). A experiência da"lava jato" já mostrou o quanto a prisão cautelar é usada (e degenerada) como instrumento de coação para obter confissões e colaborações[5]. A prática não será diferente quando adotado o plea bargaining à brasileira.

A negociação é ainda perversa na medida em que subverte a lógica punitiva: o verdadeiro culpado é beneficiado com a negociação e recebe uma pena inferior àquela que teria de cumprir se fosse julgado. Já o inocente, injustamente acusado e sobre o qual recaem apenas os elementos da fase inquisitória, é pressionado a fazer o acordo "para não correr o risco do processo e da condenação alta".

O panorama é ainda mais assustador quando, ao lado da acusação, está um juiz pouco disposto a levar o processo até o final, quiçá mais interessado que o próprio promotor em que aquilo acabe o mais rápido e com o menor trabalho possível. Quando as pautas estão cheias e o sistema passa a valorar mais o juiz pela sua produção quantitativa do que pela qualidade de suas decisões, o processo assume sua face mais nefasta e cruel. Sintoma disso é que, logo após o anúncio do projeto "anticrime", mesmo despido que qualquer justificativa ou fundamentação, uma pesquisa da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros)[6] apontou que 90% dos juízes[7] apoiam a plea bargaining. Como recorda Langbein[8], nesse tema existe um adágio popular muito adequado: se a necessidade é a mãe da invenção, a preguiça é o pai.

Em síntese, tudo dependerá do espírito aventureiro do acusado e de seu poder de barganha. É um modelo que subverte a lógica do sistema penal, na medida em que prejudica o inocente e beneficia o culpado, gerando uma distribuição seletiva e formalizada de impunidade.

Por último, a alardeada eficiência do sistema e benefícios de redução e custos é ilusória. Façamos um cálculo rápido e superficial do impacto financeiro:

  • vagas faltantes: 359.058 vagas[9];
  • custo preso/mês segundo o CNJ: R$ 2,4 mil[10];
  • custo aproximando de construção: R$ 42,5 por vaga[11];
  • gasto aproximado com a construção de presídios apenas para suprir a falta de vagas: R$ 15 bilhões;
  • acréscimo no custo mensal: R$ 861,7 milhões.

Isso sem considerar o aumento (gigantesco e muito rápido) de demanda por novas vagas, na medida em que os acordos forem sendo fechados e necessariamente executados.

Em apertada síntese, a proposta contém os seguintes problemas:

  • pretende importar um instituto do sistema jurídico norte-americano incompatível com o sistema jurídico brasileiro e as regras que regem a ação penal pública (indisponibilidade e obrigatoriedade);
  • não estabelece um limite máximo de pena negociável, criando a possibilidade de negociar qualquer pena e qualquer crime;
  • viola a relação entre gravidade do fato-pena aplicada, que é a base de legitimação do Direito Penal e do processo penal;
  • a adoção da negociação antes da instrução representa uma supervalorização daquilo que foi produzido de forma unilateral, inquisitorial, sigilosa, sem contraditório e defesa, no inquérito policial, retirando do direito de audiência e de produção de provas perante um juiz imparcial;
  • é ilusória a "voluntariedade" do acusado ao negociar, na medida em que coagido pela ameaça de penas altíssimas, por excesso de acusação (overcharging) e, principalmente pela ameaça da prisão cautelar, que será utilizada como instrumento de coação para obtenção de confissões e forçar a negociação;
  • desconsidera o gigantesco impacto carcerário que irá gerar e também as críticas que o próprio sistema jurídico americano faz, pois hoje os Estados Unidos são a maior população carcerária do mundo (mais de 2,2 milhões de presos) por conta do plea bargaining;
  • constituiu o fim do processo penal demarcado pelo artigo 5º, LV da Constituição, pois permite em larga escala e sem limites, a aplicação de pena sem prévio processo;
  • essa medida gera um encarceramento em massa (basta ver que os Estados Unidos possuem a maior população carcerária do mundo) em um sistema carcerário caótico, medieval e extremamente deficitário de vagas;
  • é uma economia ilusória, na medida em que a médio e longo prazo terá um gigantesco impacto orçamentário, com a imprescindível construção e manutenção de novos presídios além da resolução do déficit já existente.

Diante disso, a proposta substitutiva é retomar o PL 8.045 (Projeto do CPP) com alguns ajustes, para que a negociação seja possível para os crimes cuja sanção máxima cominada não ultrapasse 8 anos. Esse é um espaço negocial bastante amplo, mas adequado à nossa realidade. Tal proposta foi objeto de amplo debate com toda a comunidade jurídica e está amadurecida no espaço democrático, em contraste com o pacote "anticrime", feito a la carte e conforme o gosto do proponente. Sem falar que é uma proposta que sofre de "solipsismo legislativo", na medida em que parte de um marco zero e desconsidera todos os projetos anteriores em tramitação. Por fim, precisamos de um CPP inteiramente novo (e que está pronto no Congresso), e não de mais uma reforma pontual em nosso já retalhado e desfigurado código de 1941.

Retomando o título do presente artigo, a diferença entre o remédio e o veneno não raras vezes está apenas na dosagem. À Justiça negocial se aplica essa metáfora: se bem utilizada e na dose certa, pode salvar o sistema de Justiça; mas, se abusamos dela, matamos o processo penal brasileiro.


[1] SCHÜNEMANN, Bernd. Um olhar crítico ao modelo processual penal norte-americano. In: "Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Org. Luís Greco. São Paulo, Marcial Pons, 2013, p. 257.
[2] DIAS, Jorge de Figueiredo. Acordos sobre a sentença em processo penal – o "fim" do estado de direito ou um novo "principio"? Conselho Distrital do Porto, 2001.
[3] https://www.conjur.com.br/2019-fev-21/senso-incomum-proposta-seria-plea-bargain-serio
[4] LANGBEIN, John H. Tortura e Plea Bargaining. In: “Sistemas Processuais Penais”. Org. Ricardo Jacobsen Gloeckner. Florianópolis, Ed. Empório do Direito, 2017, p. 141.
[5] Como noticiou a ConJur, "o uso das prisões preventivas como forma de forçar os réus da operação 'lava jato' a colaborar com a investigação não é mais segredo. Em pelo menos quatro pareceres em Habeas Corpus, a Procuradoria Regional da República da 4ª Região defende a manutenção das prisões diante da “possibilidade real de o infrator colaborar com a apuração da infração penal"(https://www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes). Em parecer do MPF, pela manutenção da prisão preventiva, encontramos trechos sintomáticos do uso da prisão como instrumento de pressão para aceitação de acordos: "A conveniência da instrução criminal mostra-se presente não só na cautela de impedir que investigados destruam provas, o que é bastante provável no caso do paciente, mas também na possibilidade de a segregação influenciá-lo na vontade de colaborar na apuração de responsabilidade, o que tem se mostrado bastante fértil nos últimos tempos" (https://www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes). Também causou surpresa, mais pela clareza do que propriamente pelo conteúdo, a declaração do procurador regional da República Manoel Pastana de que "em crime de colarinho branco, onde existem rastros mas as pegadas não ficam, são necessárias pessoas envolvidas com o esquema para colaborar. E o passarinho pra cantar precisa estar preso" (https://www.conjur.com.br/2014-nov-27/parecer-mpf-defende-prisoes-preventivas-forcar-confissoes).

[6] https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/90-dos-juizes-apoiam-plea-bargain-de-moro
[7] https://painel.blogfolha.uol.com.br/2019/02/11/80-dos-juizes-apoiam-prisao-em-segunda-instancia-diz-pesquisa-da-amb
[8] LANGBEIN, John H. Tortura e Plea Bargaining. In: “Sistemas Processuais Penais”. Org. Ricardo Jacobsen Gloeckner. Florianópolis, Ed. Empório do Direito, 2017, p. 146.
[9] https://g1.globo.com/politica/noticia/2018/07/20/brasil-caminha-para-se-tornar-refem-do-sistema-prisional-diz-jungmann.ghtml
[10] http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/83819-carmen-lucia-diz-que-preso-custa-13-vezes-mais-do-que-um-estudante-no-brasil
[11] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42274201

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