Opinião

A confissão de dívida como requisito à transação tributária e o REsp 1.133.027

Autores

  • Michell Przepiorka

    é Mestrando em Direito Tributário (IBDT); especialista em Direito Tributário Internacional (IBDT) Especialista em Direito Tributário Brasileiro (IBDT); professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário; juiz do Conselho Municipal de Tributos da Prefeitura de São Paulo; e sócio de Takano e Przepiorka Advogados.

  • Caio Augusto Takano

    é advogado professor de Direito Tributário da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e doutor e mestre em Direito Econômico Financeiro e Tributário pela Universidade de São Paulo (USP).

  • Daniel de Paiva Gomes

    é doutorando (PUC) e mestre (FGV Direito-SP) em Direito Tributário msc. candidate em blockchain e digital currency pela University of Nicosia especialista em Direito Tributário nacional (PUC) e internacional (IBDT) professor de cursos de extensão e pós-graduação lato sensu pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e advogado em São Paulo.

  • Eduardo de Paiva Gomes

    é doutorando (PUC) e mestre (FGV Direito-SP) em Direito Tributário MSc candidate em blockchain e digital currency pela University of Nicosia especialista em Direito Tributário nacional (PUC) conselheiro do CMT (4ª Câmara Julgadora) juiz suplente do TIT professor de cursos de extensão e pós-graduação lato sensu pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet e advogado em São Paulo.

7 de dezembro de 2019, 6h02

Sem entrar no mérito da qualificação jurídica dos parcelamentos extraordinários, bem como do comportamento por eles induzido, percebemos que o instituto da transação tributária em sua forma mais pura foi evitado pelas administrações públicas federal, estaduais e municipais, muito por conta do chamado princípio da indisponibilidade do crédito tributário, em que pese ter sido expressamente previsto nos artigos 156, III[1], e 171 do Código Tributário Nacional[2].

Nesse cenário, em 16 de outubro de 2019, foi publicada a Medida Provisória 899 — conhecida como MP do contribuinte legal — para regulamentar o referido artigo 171 do CTN no âmbito federal, visando, segundo a exposição de motivos que a acompanha, à redução do estoque desses créditos (inscritos em dívida ativa da União), limitados àqueles classificados como irrecuperáveis ou de difícil recuperação, (o que) incrementará a arrecadação e esvaziará a prática comprovadamente nociva de criação periódica de parcelamentos especiais, com concessão de prazos e descontos excessivos a todos aqueles que se enquadram na norma (mesmo aqueles com plena capacidade de pagamento integral da dívida).

A primeira dúvida que surge diz respeito à definição de créditos como irrecuperáveis ou de difícil recuperação. Isto porque, embora a Portaria PGFN 11.956/2019, expedida em 27 de novembro pra fins de regulamentar a medida provisória em comento, apresente parâmetros para qualificação do rating da dívida como irrecuperável, temos dúvidas quanto à legitimidade de tais critérios para os fins buscados pela norma sob comento.

Isso porque, embora muito parecidos, os parâmetros para cálculo do rating da dívida adotados pela Portaria PGFN 11.956/2019 não são os mesmos adotados pela Portaria MF 293/2017[3], o que leva ao seguinte questionamento: é razoável admitir que a União Federal possua critérios de classificação diferentes para classificar uma dívida como irrecuperável para fins de orçamento e para fins de transação tributária?

Além disso, a premissa adotada pela medida provisória, no sentido de que a transação obedecerá a critério de juízo de oportunidade e conveniência, limitaria o controle das referidas transações pelo judiciário[4].

Outro ponto que chama a atenção no regulamento da transação pela portaria ministerial, diz respeito às obrigações assumidas pelo devedor:

Art. 5º Sem prejuízo dos demais compromissos exigidos em Edital ou na proposta individual, em quaisquer das modalidades de transação de que trata esta Portaria, o devedor obriga-se a:

I – fornecer, sempre que solicitado, informações sobre bens, direitos, valores, transações, operações e demais atos que permitam à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional conhecer sua situação econômica ou eventuais fatos que impliquem a rescisão do acordo;

II – não utilizar a transação de forma abusiva ou com a finalidade de limitar, falsear ou prejudicar de qualquer forma a livre concorrência ou a livre iniciativa econômica;

III – renunciar a quaisquer alegações de direito, atuais ou futuras, sobre as quais se fundem ações judiciais, incluídas as coletivas, ou recursos que tenham por objeto os créditos incluídos na transação, por meio de requerimento de extinção do respectivo processo com resolução de mérito, nos termos da alínea "c" do inciso III do caput do art. 487 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 – Código de Processo Civil;

IV – manter regularidade perante o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço;

V – regularizar, no prazo de 90 (noventa) dias, os débitos que vierem a ser inscritos em dívida ativa ou que se tornarem exigíveis após a formalização do acordo de transação.

Neste espaço duas questões chamam atenção, a obrigação prevista no inciso I e a obrigação prevista no inciso III.

Em relação ao primeiro ponto, parece que a PGFN busca introduzir, via legislação infraconstitucional, temática similar a algo que já foi rejeitado anteriormente pelo Congresso Nacional. Quem não se recorda da frustrada tentativa perpetrada pela administração pública de introduzir a abertura obrigatória de informações relativas a planejamentos tributários pela Medida Provisória 685/2015?

A ausência de delimitação precisa das informações que podem ser requisitadas por meio do inciso I do artigo 5º indica que poderia a PGFN solicitar informações relativas a, por exemplo, (a) atos ou negócios jurídicos praticados, mas que não possuam razões extratributárias relevantes; (b) atos cuja forma adotada não seja usual ou que se utilizem de negócio jurídico indireto ou, ainda, que contenham cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou (c) atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil.

Por fim, talvez a mais severa das obrigações diga respeito à renúncia a quaisquer alegações de direito, atuais ou futuras, sobre as quais se fundem ações judiciais, incluídas as coletivas, ou recursos que tenham por objeto os créditos incluídos na transação. Tal medida não se coaduna com os princípios que vigem o crédito tributário, principalmente no que diz respeito à legalidade.

Apenas a título ilustrativo, declarada a inconstitucionalidade da inclusão do PIS e da Cofins em sua própria base não poderia o contribuinte que, em boa-fé se socorreu à transação para saldar seus débitos tributários, discutir o valor da dívida que foi quitada com a indevida inclusão das referidas contribuições na base de cálculo?

Considerando que a própria medida provisória já reconhece em seu artigo 6º, parágrafo 3º que a proposta de transação aceita não implica novação dos créditos por ela abrangidos, e, considerando ainda, que o débito tributário possui natureza legal, parece-nos cingida de inconstitucionalidade tal previsão, na medida que vai de encontro ao direito de petição prescrito no inciso XXXV, do artigo 5ª da Constituição Federal.

Tampouco se diga que referida renúncia a quaisquer alegações de direito, atuais ou futuras, seja exercício de opção do contribuinte que busque a transação, pois se trata de ônus excessivo, desproporcional e irrazoável que joga contra o próprio objetivo da norma, que é a recuperação de créditos tributários de difícil recuperação ou irrecuperáveis com a diminuição de litígios e custos para a administração pública.

A partir do momento que determinado tributo é declarado parcial ou totalmente inconstitucional, não se fala mais em “crédito tributário”, de forma que ações judiciais ajuizadas pelos contribuintes que sejam voltadas ao reconhecimento da ilegitimidade de tal cobrança não devem ou não deveriam ter repercussão negativa na validade de eventual transação tributária!

Ademais, tal dispositivo viola frontalmente orientação já consolidada pelo e. Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Recurso Especial 1.133.027, sob a sistemática dos recursos repetitivos:

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA (ART. 543-C, § 1º, DO CPC). AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO COM BASE EM DECLARAÇÃO EMITIDA COM ERRO DE FATO NOTICIADO AO FISCO E NÃO CORRIGIDO. VÍCIO QUE MACULA A POSTERIOR CONFISSÃO DE DÉBITOS PARA EFEITO DE PARCELAMENTO. POSSIBILIDADE DE REVISÃO JUDICIAL.

1. A Administração Tributária tem o poder/dever de revisar de ofício o lançamento quando se comprove erro de fato quanto a qualquer elemento definido na legislação tributária como sendo de declaração obrigatória (art. 145, III, c/c art. 149, IV, do CTN).

2. A este poder/dever corresponde o direito do contribuinte de retificar e ver retificada pelo Fisco a informação fornecida com erro de fato, quando dessa retificação resultar a redução do tributo devido.

3. Caso em que a Administração Tributária Municipal, ao invés de corrigir o erro de ofício, ou a pedido do administrado, como era o seu dever, optou pela lavratura de cinco autos de infração eivados de nulidade, o que forçou o contribuinte a confessar o débito e pedir parcelamento diante da necessidade premente de obtenção de certidão negativa.

4. Situação em que o vício contido nos autos de infração (erro de fato) foi transportado para a confissão de débitos feita por ocasião do pedido de parcelamento, ocasionando a invalidade da confissão.

5. A confissão da dívida não inibe o questionamento judicial da obrigação tributária, no que se refere aos seus aspectos jurídicos. Quanto aos aspectos fáticos sobre os quais incide a norma tributária, a regra é que não se pode rever judicialmente a confissão de dívida efetuada com o escopo de obter parcelamento de débitos tributários. No entanto, como na situação presente, a matéria de fato constante de confissão de dívida pode ser invalidada quando ocorre defeito causador de nulidade do ato jurídico (v.g. erro, dolo, simulação e fraude). Precedentes: REsp. n. 927.097/RS, Primeira Turma, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, julgado em 8.5.2007; REsp 948.094/PE, Rel. Min. Teori Albino Zavascki, Primeira Turma, julgado em 06/09/2007; REsp 947.233/RJ, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 23/06/2009; REsp 1.074.186/RS, Rel. Min. Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 17/11/2009; REsp 1.065.940/SP, Rel. Min. Francisco Falcão, Primeira Turma, julgado em 18/09/2008.

6. Divirjo do relator para negar provimento ao recurso especial. Acórdão submetido ao regime do art. 543-C, do CPC, e da Resolução STJ n. 8/2008.

Isto posto, parece-nos que para além de inibir os contribuintes de adotar o regime de transação, sob o risco de se tornarem os “bobos” que não poderão discutir a inconstitucionalidade ou ilegalidade de determinada previsão tributária; há fortes fundamentos para que se discuta a legalidade e a constitucionalidade do dispositivo previsto na Portaria PGFN 11.956/2019 e na MP 899/2019, que condiciona a celebração da transação à renúncia ao direito de discutir a legitimidade da dívida, ainda mais sob a ótica da jurisprudência consolidada no STJ.

[1] Art. 156. Extinguem o crédito tributário: […] III – a transação;

[2] Art. 171. A lei pode facultar, nas condições que estabeleça, aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária celebrar transação que, mediante concessões mútuas, importe em determinação de litígio e conseqüente extinção de crédito tributário. Parágrafo único. A lei indicará a autoridade competente para autorizar a transação em cada caso.

[3] Estabelece os critérios para classificação dos créditos inscritos em dívida ativa da União e institui o Grupo Permanente de Classificação dos créditos inscritos em dívida ativa da União (GPCLAS).

[4] Nesse sentido, por exemplo, o Agravo Regimental em Mandado de Segurança 34.342, relator ministro Dias Toffoli, julgamento em 08/08/2017, Tribunal Pleno:

Agravo regimental em mandado de segurança. Tributário. Contribuição social do salário-educação. Alegada omissão quanto à edição do regulamento a que se refere o art. 1º, § 1º, IV, da Lei nº 9.766/98. Definição de organizações de fins culturais a serem contempladas pela isenção do recolhimento da exação. Ilegitimidade passiva do Presidente da República. Decreto nº 6.003/06. Redirecionamento da incumbência a órgão integrante do Poder Executivo. Inexistência de prova cabal. Discricionariedade. 1. O Presidente da República, autoridade apontada como omissa, regulamentou a lei em tela, em primeiro lugar, com o Decreto nº 3.142/99 e, posteriormente, com o Decreto nº 6.003/06, que redirecionou a regulamento a definição das organizações de fins culturais a serem contempladas com a benesse fiscal. A alegada omissão acerca de tal definição não pode, portanto, ser atribuída à autoridade ora impetrada, mas sim àquela que, embora tenha recebido competência para editar tal regulamento, quedou-se inerte quanto a isso. É o caso, portanto, de extinguir o feito por ilegitimidade passiva. 2. Não há, nos autos, prova cabal de que a impetrante tenha direito à isenção a que se refere o art. 1º, § 1º, IV, da Lei nº 9.766/98. 3. Consoante a jurisprudência da Corte, a concessão de isenção tributária configura ato discricionário. Por meio dela, o Poder Público, embasado no juízo de conveniência e oportunidade – o que inclui a verificação do momento adequado para a concretização da benesse –, busca efetivar políticas fiscais e econômicas. Não cabe, assim, ao Poder Judiciário, sob pena de ofensa ao princípio da separação dos poderes, afirmar que determinada situação está abrangida por uma norma de isenção tributária se assim ela não determinou. Precedentes. 4. Agravo regimental não provido, com imposição de multa de 2% (art. 1.021, § 4º, do CPC). 5. Inaplicável o art. 85, § 11, do CPC, haja vista tratar-se de mandado de segurança (art. 25 da Lei 12.016/09).

Autores

  • é Mestrando em Direito Tributário (IBDT); especialista em Direito Tributário Internacional (IBDT) Especialista em Direito Tributário Brasileiro (IBDT); professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário; juiz do Conselho Municipal de Tributos da Prefeitura de São Paulo; e sócio de Takano e Przepiorka Advogados.

  • é mestre e doutor em Direito Tributário (USP); Juiz do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo; juiz do Conselho Municipal de Tributos da Prefeitura de São Paulo; e sócio de Takano e Przepiorka Advogados.

  • é sócio do Vieira, Drigo e Vasconcellos Advogados, mestre em Direito Tributário (FGV Direito/SP); especialista em Direito Tributário Internacional (IBDT) e em Direito Tributário brasileiro (PUC-COGEAE), professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário e membro efetivo da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB – Seção Central de São Paulo e Subseção de Pinheiros.

  • é sócio do Vieira, Drigo e Vasconcellos Advogados, professor do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT), mestrando em Direito Tributário pela FGV-SP, especialista em Direito Tributário pela PUC-SP, bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e membro efetivo da Comissão Especial de Direito Tributário da OAB – Seção Central de São Paulo e Subseção de Pinheiros.

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