Ex-procurador da "lava jato" escancara na TV: t(iv)emos lado político
29 de agosto de 2019, 8h00
O ex-integrante da "lava jato" Carlos Fernando Lima, agora jubilado no Ministério Público Federal, participou do Globo News em Pauta. Um dos participantes, o advogado Walfrido Warde “meio que” fez uma armadilha e o exaltado e nervoso ex-procurador nela caiu. E contou tudo.
Carlos contou que, de fato, eles tinham partido político na "lava jato". Disse que seria difícil acreditar no que aconteceria se Haddad vencesse. E tascou: Vivemos um maniqueísmo e um dilema: Entre a cruz e a caldeirinha, entre o diabo e a coisa ruim [sic]. Pronto. E a força-tarefa fez a escolha por Bolsonaro. Só não disse se Bolsonaro era o diabo ou a coisa ruim. E se Haddad era a coisa ruim ou o diabo.
O que importa é que um dos chefões da "lava jato" confessou que tinham lado (vejam matéria de Reinaldo Azevedo). Todos já sabiam. O Intercept revelou conversas de Dallagnol em que isso ficava claro. Aliás, até nos twitters dos integrantes da força-tarefa da "lava jato" ficava evidente essa partidarização.
Diz Carlos Lima: a opção por Bolsonaro era óbvia [sic]. Ele confessou. Haddad representava o contrário do que eles pensavam. Bem imparcial isso, não?
(i) As consequências jurídicas da escolha política
Por que estou escrevendo sobre isso? Não escrevo para discutir politicamente o assunto. Não há problema de se votar em Bolsonaro. Não há problema de um procurador escrever que vota em Bolsonaro. O problema é quando esse lado escolhido contamina o processo. Por isso, quero discutir o lado jurídico dessa opção política da "lava jato". Escrevo, pois, para falar do papel do Ministério Público. Posso falar disso porque lá estive por quase 30 anos (não que quem não tenha estado não possa falar; apenas conheço o assunto digamos assim, “por dentro”).
Até que ponto chegamos… Um integrante, conforme revelações do dia 26 último, chegou a pagar um outdoor para promover a força-tarefa da "lava jato". E o corregedor do MPF sabia de tudo (aqui). Mas tudo ficou secreto. Na iminência de ser investigado e quiçá, afastado, o procurador responsável (ou que simplesmente assumiu, por todos, a autoria do outdoor) pediu afastamento por doença, com atestado com efeito ex tunc de um dia.
Em outras circunstâncias, o MP denunciaria um ato desse tipo, investigando inclusive o esculápio. Isso sem considerar o estranhíssimo fato de que o outdoor foi pago por uma pessoa que disse que não pagou e que de nada sabia. Ou seja, surge uma nova categoria: o laranja de outdoor.
O tal outdoor permaneceu quase 30 dias. “Ninguém” sabia quem pagara… Nem o cara que pagou! Pois é. Foi “ninguém”. Lembro, aqui, da Odisseia, livro IX: "foi Ninguém".
Insisto: Que tipo de processo penal pode exsurgir se o órgão acusador confessa que teve lado? Misture-se a confissão de Carlos Lima com os demais elementos já revelados e teremos uma tempestade perfeita.
(ii) Qual é o papel do MP? Pode ele tomar lado político? Vejam o Estatuto de Roma espelhado no direito norte-americano, alemão e italiano
Qual é o papel do MP? Vou dizer pela enésima vez. MP não pode fazer agir estratégico. Se o fizer, se igualará a qualquer parte. E se se igualar, não precisará de garantias. Simples assim.
Insisto: na Alemanha, para evitar o agir estratégico, o CPP estabelece, no artigo 160, que o MP deve trazer à lume, sempre, todas as provas que obtiver, inclusive às que favorecem à defesa (já escrevi quase uma dezena de textos sobre isso). Mutatis, mutandis, trata-se de uma blindagem criada pelo legislador contra o agir político do MP. E se não apresentar as provas, pode ser processado por prevaricação (Rechtsbeugung), conforme artigo 339 do CP.
Já na Itália, depois da operação Mãos Limpas, para se prevenir contra arbitrariedades da magistratura do Ministério Público, a Corte Constitucional, em 1991, entendeu, por meio da sentença 88/91, que o Ministério Público, em razão de seu inegável poder para conduzir a investigação criminal, é “obrigado a realizar investigações (indagini) completas e buscar todos os elementos necessários para uma decisão justa, incluindo aqueles favoráveis ao acusado (favorevoli all'imputato).
E no Estatuto de Roma, já incorporado no direito brasileiro desde 2002, consta no artigo 54: “A fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o presente Estatuto e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa.” Preciso falar mais? Esses elementos não bastam para uma tomada de posição?
(iii) Os anteparos ao agir político-estratégico; a vedação constitucional
Já escrevi aqui sobre isso, dizendo que era muito fácil alterar a legislação e fazer esses calços ao agir estratégico de quem tem poderes de magistratura. Sim, MP deve agir como magistrado (bom, no caso de Curitiba, o juiz agiu como MP, mas, bem, deixa pra lá). Mas o leitor entendeu o que quero dizer. Ou bem o MP é parte e assume ônus de ser parte, ou bem se porta como um órgão imparcial.
Isso é um aspecto do problema. Há um outro, que exsurge da confissão de Carlos Lima. Nitidamente, os integrantes a força-tarefa fizeram política partidária. Isso é vedado pela CF. “Como assim?”, perguntarão.
Respondo: uma coisa é o agente do MP ou do Poder judiciário dar opinião acerca da política na esfera privada. Foi o caso dos juízes do Rio de Janeiro processados por fazer política partidária a favor do PT. Em parecer que fiz, sustentei que isso funciona como nos dois corpos do rei. Assim, desde que a preferência partidária não ingresse na esfera dos processos judiciais, trata-se de livre manifestação.
Todavia, quando a manifestação está dentro de um processo judicial ou de procedimentos investigatórios, já aí o busílis é outro. Foi o caso. A escolha entre o diabo e o coisa ruim (sic) mostra, pela confissão nervosa de Carlos Lima, que essa escolha comprometeu o agir processual. E isso é vedado pela Constituição. Ou alguém acha que, diante do que Carlos disse, o agir do MPF foi imparcial?
É o resultado de não sabermos separar os dois corpos do rei (ler aqui). Enquanto ainda vivermos sob uma democracia, todos têm a liberdade de, moralmente, preferirem o que for; ainda que haja critérios para se determinar a objetividade da resposta — penso que há, pois não sou um emotivista —, os disagreements (desacordos morais) fazem parte do exercício democrático.
E o ponto é que o que regula esses disagreements é exatamente…o Direito. E é por isso que, em sua vida pessoal, os procuradores e os juízes podem ter a preferência que lhes pareça melhor diante das circunstâncias. Dentro da institucionalidade, não. Porque é o Direito que filtra a política (e a moral, e a economia). Nunca o contrário.
(iv) Desdenhar o direito ao luto de um acusado não é parcialidade jurídica? Esse escárnio da dor alheia tem nome?
Quem atua em nome do Estado tem a responsabilidade política de suspender os próprios pré-juízos e agir por princípio, nunca por política. Carlos Lima confessou que não fizeram essa suspensão de pré-juízos. Ao contrário. Lutaram, com unhas e dentes, para impedir a vitória daquele que lhes era tido como adverso. As instituições devem levar o Direito a sério; em não o fazendo, não levam a sério a si próprias. Não separando os dois corpos do rei, contrariam exatamente aquilo para o que elas existem em primeiro lugar: para resolver o que a moral, a política e a economia não resolvem. Mas o Direito, pelo jeito, importava bem menos do que os juízos morais dos protagonistas.
Pouco importa se, no âmbito do “corpo físico” (vida privada), o procurador ou o juiz escolhe entre a cruz ou a caldeirinha, entre o diabo ou a coisa ruim. Só que, no âmbito da esfera pública, têm a responsabilidade de decidir, nunca de escolher. A decisão é em nome do Direito; a escolha, sempre discricionária. E, conforme se viu do que disse Carlos, aliado àquilo que Deltan falava (ironicamente, ele falava da omertà petista), nem de longe estava presente a parte “espiritual” do corpo do rei. Uma procuradora da FT da Lava Jato chamou os petistas de mafiosos, quando do episódio da proibição de o ex-presidente Lula conceder entrevista. Para se ver o clima de “imparcialidade” que ali rolava…! A procuradora Laura Tessler confirma a confissão de Carlos Lima: indignada com a decisão do STF que autorizara a entrevista, temeu pela eleição de Bolsonaro (ou pela vitória de Haddad, o que dá no mesmo). Dizer o quê?
Alguém acredita que o processo contra Lula foi imparcial, depois de sabermos que, em um diálogo de trabalho, enquanto um procurador entendia que Lula tinha direito de ir ao enterro do seu neto, um colega diz: "O safado só queria passear e o Welter com pena". Já uma Procuradora, já conhecida nos meios de imprensa, arremata, concordando com a frase desumana dita pelo interlocutor: "O foco tá em Brumadinho…logo passa…muito mimimi". Ou seja, desdenharam da morte. Desdenharam do luto. Desdenharam da alma. O mais universal dos direitos – o de enterrar os seus mortos e por eles chorar — foi ironizado por agentes políticos do Estado. [1] Que feio isso, não? A pergunta que não cala: Como seria o ânimo deles lidando com as provas contra o ex-presidente? Cartas para a coluna.
E os diálogos sobre a morte da esposa de Lula? Melhor não lerem. Fiquei com dor n’alma ao tomar conhecimento. A acusação de um dos procuradores de que a morte de Mariza Letícia seria uma eliminação de testemunhas é algo que merece um estudo psicanalítico. É um case. Diz o agente ministerial: "Estão eliminando as testemunhas". Que tese, não? E outro brincou dizendo que Lula, com a morte da esposa, estaria livre para a gandaia.
Outra procuradora confessa a veracidade dos diálogos: no Twitter, admitiu o erro. Depois se deu conta do que que dissera e tentou desviar o assunto, dizendo que reconhecia apenas em parte… Está bem. Pelo menos reconheceu a parte ruim dos diálogos.
Será que os procuradores não sabem que um dia todos morreremos? Finitude. Oh, palavra definitiva. Eis a palavra fundamental. Sic transit gloria mundi (toda glória do mundo é transitória). O que o Brasil diz de tudo isso? Perdemos a nossa capacidade de indignação? Nem no luto cessa o ódio? Bem disse Pedro Serrano: “poucas atitudes são mais moralmente insensíveis do que desdenhar de quem perde um ente querido”. E Eugênio Aragão foi na pleura: “Esse desvio de vocês é nosso fracasso. Temos de dormir com isso”.
Resta saber o que as Corregedorias do MP ou do CNMP farão. Não, as corregedorias não precisam ensinar aos procuradores o respeito aos mortos e aos vivos. Isso não se aprende. Isso está na alma de cada vivente. O que as corregedorias devem investigar são as condutas relacionadas à falta de imparcialidade e à — confessada — tomada de lado político em procedimentos investigatórios e processos judiciais.
Quem foi que colocou o outdoor em Curitiba? Quem fez opção partidária? Já sei. Foi “ninguém”.
(Talvez seja hora de um outdoor dizendo: obedeçam às placas! Esse outdoor é o Direito.) A questão agora é: o que vamos dizer aos alunos nas salas de aula? Joguemos fora os livros. E os códigos de ética. Já de nada valem. Talvez o CNMP ou o próprio MPF nos surpreendam. E o STF também. Ou não. Haverá, ainda, um minimum indignatio?
Ah, para não esquecer a frase de um certo juiz (ups, foi Moro quem falou), “não importa quão alto você esteja, a lei ainda está acima de você”. Que frase sábia!
Post scriptum: Sobre o papel do Ministério Público, tudo o que venho dizendo de há muito está no caso Brady v. Mariland (373 U.S. 83 (1963). O precedente é exatamente esse: a acusação é obrigada a entregar à defesa eventuais evidências que possam exonerar o réu. Bom, o Estatuto de Roma e o CPP da Alemanha dizem exatamente isso!
Nas palavras do Justice Douglas, “a sociedade vence não apenas quando os culpados são condenados, mas quando os processos criminais são justos.”
[1] Sobre a (i)licitude da captura dos diálogos, já falei aqui na ConJur à saciedade sobre isso, mostrando que valem a favor do réu objeto dos diálogos.
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