Cem Anos de Solidão: a desconstrução da verdade no processo penal
7 de abril de 2019, 8h05
Não que o país houvesse sido, em algum momento da nossa história, um paraíso tropical de plenas realizações de direitos, ou que os processos penais efetivamente encontrassem sempre a verdade dos fatos. Nossa Macondo verde e amarela é um lugar violento, com desigualdades acentuadas, de questionável liberdade para escolhas pessoais e restrita efetividade das prestações públicas.
O Brasil ainda se notabiliza pela avançada corrupção e a sua forma de entronizar o “jeitinho brasileiro”, de braços dados com a normalização da “lei do Gerson”, permite a filosofia de boteco do “Mateus, primeiro os teus”. Na realização dessa característica, a primeira vítima é sempre a verdade.
Vê-se muito facilmente como a impunidade campeou e como a má formação da mentalidade do administrador gerou tantos desvios e tantos crimes contra a administração pública.
Entretanto, a lógica utilizada pelos corruptos arrisca se repetir do outro lado do balcão, quando juristas e autoridades institucionais tendem a justificar as suas teses moralmente corretas a partir do jeitinho processual e da negação da própria verdade.
Quando o que há de concreto deixa de importar, ou deixa de ter valor no processo penal, e tudo passa a ser discurso retórico, terminamos misturados por correntes de WhatsApp e renegados a uma pré-modernidade. A legitimação do processo como demonstrativo de realidade cede à avalanche de existir tão somente como reprodução de discurso.
Agora que estamos imersos nessa linguagem — a do combate à corrupção — que serviu de mola propulsora para mergulhar a sociedade numa catarse de limpeza e numa neurose por higienização do Estado e da sociedade, juristas são chamados a separar realidade de fantasia.
É preciso estabilizar a verdade, pois são muitos os que começaram a confundir a urgente e necessária punição por prática de atos de corrupção com o uso da sua justificativa para legitimar quaisquer atitudes e, também, perseguir os inimigos políticos, afastar os divergentes ideológicos e isolar os adversários sociais inventados. O comportamento evoluiu para o maniqueísmo, que gerou ódio, que mergulhou a todos nós no pânico moral por medo de um inimigo etéreo, criado a partir de uma narrativa construída por outros, e que nega o conhecimento, ignora a verdade e ofende a racionalidade.
Uma de tantas facetas que surgiram desse transe doméstico e coletivo foi a elitização da magistratura, o discurso judicial da superioridade moral do juiz, a negação do seu papel de servidor público e o consequente protecionismo da própria autocompreensão do magistrado e, portanto, de sua posição na sociedade dividida.
Nos tempos que correm, o Brasil se tornou uma espécie de Macondo, onde o realismo fantástico sai a todo momento de dentro da literatura e se muda, de armas e bagagens, para as salas de audiência. Os pergaminhos de Melquíades se refletem nas sentenças aborrecidas, que se postam muito distantes do sangue, do suor e das lágrimas dos humanos. Não faltam Mamães Grandes nem Olhos de Cão Azul.
A verdade morreu! A Crônica é de Morte Anunciada!
Ela não importa mais!
Foi superada pela retórica vazia!
As coisas do mundo fantástico são tão recentes que carecem de nome, e para delas falar é preciso apontá-las, lembra Gabo, batizado Gabriel. E repetindo o realismo fantástico colombiano, a nossa realidade de novas ondas gera movimentos que carecem de nomes, e têm suas essências usurpadas por uma fantástica realidade retórica, digna do Amor e de Outros Demônios.
Sob a justificativa de combater a corrupção, muitos flagelos invadem o cotidiano. Vale lembrar que muitas indignidades históricas foram cometidas sob esta mesma justificativa: o nazismo, o estalinismo, o fascismo, o chavismo e todos os “ismos” arrogantes e autoritários, assassinos e populistas, tiveram origem neste mesmo discurso. Revelaram-se, com o tempo, atrozes e dominados pela sua própria antítese.
O discurso do combate à corrupção nos manda ficar “insones para vigília contra o mal”, e esse discurso retórico já se consolida como seita: com seus altares, ídolos, rezas e inquisições!
A consequência inevitável do mal da insônia, realisticamente inventado por Gabriel García Márquez, é a perda da memória. Nessa vigília desmemoriada, vão-se os comparativos históricos que não nos permitem errar duas vezes. Ao desconhecer o passado, os juristas repetem os seus erros. Mesmo que muitos penalistas repitam a sina de José Arcádio Buendía — de colar papelotes dando nomes aos institutos para que deles não nos esqueçamos —, a comunidade, por sua maioria, tende a esquecê-los, dominada pela narrativa que se ritualiza e se sacraliza. Esquecem o crime de tortura; esquecem as mortes nas periferias; esquecem as injustiças e as perseguições. Esquecem as fraudes e as corrupções que existiram em todos os regimes e em todos os tempos.
Ignorar fatos e institutos é prática corrente na vivência da vigília insone.
Olvidam as hipóteses legais para prisões; olvidam a argumentação jurídica necessária para sustentar fatos e provas. Já não se lembram da modernidade existente na igualdade entre os sexos, entre as raças e entre as religiões. Já não se lembram da modernidade de professar uma ideologia e de pensar e se expressar livremente. Esquecem até mesmo a necessidade de educação, de livros e de cultura — pois “a internet proverá”.
É preciso refazer o movimento do alvorecer dos tempos dos Buendía: apontar com o dedo para dizer em alto e bom som o que as coisas realmente são.
O mal da insônia traz o esquecimento e assola a terra brasilis. Junto com o esquecimento vem o culto sem pudores à ignorância e ao desconhecimento, construindo uma nova e deprimente narrativa.
Tudo parece esquecido e assim permanecerá até que os ciganos retornem com suas essências e nos permitam sair do torpor!
A todos nós — juristas de uma terra cada vez mais espelhada em Macondo — resta negar equívocos narrativos e escrever para reentronizar a verdade, pois as estirpes condenadas a cem anos de solidão não terão uma segunda chance sobre a terra.
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