Contas à Vista

Maioridade da LRF se vê no "Novo Regime Fiscal" da EC 95 como repetição farsesca

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22 de maio de 2018, 8h02

Spacca
O aniversário de 18 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal nos provoca dúvida razoável acerca de sua ineficácia ou fraqueza, sobretudo se a contrastarmos com o reforço normativo do seu congênere “Novo Regime Fiscal”, trazido pela Emenda 95/2016.

A efeméride da “maioridade” alcançada recentemente pela Lei Complementar 101, de 4 de maio de 2000, não mereceu registro significativo de comemorações, porque seu legado prático — verificado nas contas públicas dos diversos entes da federação — é de caos fiscal[1]. Nesse contexto, há quem clame sabiamente por sua resiliência[2].

O inegável mal-estar da noção de responsabilidade fiscal na realidade brasileira em que presentemente vivemos decorre da nossa incapacidade de mensurar, executar e fiscalizar o cumprimento tempestivo de metas fiscais e sociais que promovam conjugadamente o equilíbrio intertemporal das contas públicas em face dos objetivos fundamentais fixados constitucionalmente para a nossa república.

Antes de qualquer limitação intelectual ou metodológica, o déficit é, sobretudo, republicano: não distribuímos equitativamente os bônus e os ônus das escolhas públicas entre qual carga de tributos cada qual de nós paga e qual conjunto de despesas governamentais — feitas direta ou indiretamente (a exemplo de subsídios ou incentivos fiscais) — pode ser assumido coletivamente em nosso nome. Por inexistir equacionamento primário acerca da gestão democrática dos escassos recursos públicos, comprometemos o futuro, acirramos desigualdades cavalares, flertamos com a inflação e nos endividamos sem termos parâmetros acerca do custo de oportunidade dessas escolhas.

Obviamente, tal cenário abre espaço para diversas tentativas e, muitas das vezes, para consumadas estratégias de apropriação privada do interesse público, porque a legalidade orçamentária, em nosso país, é ainda absolutamente frágil para filtrar, de forma democraticamente legítima, os diversos conflitos de interesse. Há aqui considerável cota de responsabilidade dos órgãos de controle, cuja omissão e/ou conivência ativa permitiram o esvaziamento interpretativo do regime jurídico não só da responsabilidade fiscal[3], como também das cláusulas constitucionais de financiamento adequado dos direitos sociais[4].

À pergunta de “como chegamos até aqui?”[5], Zeina Latif, Marcos de Barros Lisboa e Carlos Alberto de Mello ofereceram, como resposta nuclear, o fato de que deixamos de enfrentar nosso déficit de higidez institucional ao negligenciarmos a busca pelo seu aperfeiçoamento contínuo:

Douglass North propôs o termo “Matriz Institucional”, que inclui as crenças e os códigos de conduta, que são elementos balizadores das tomadas de decisão dos indivíduos. O respeito a procedimentos previstos, a menor tolerância com inflação e a credibilidade da política são, por exemplo, aspectos de uma matriz institucional eficaz.

Desde 1990, a produção acadêmica passou a estudar os impactos do desenho das diversas instituições sobre o desenvolvimento econômico, como o respeito ao direito de propriedade, a eficiência do Judiciário e as regras para os mercados de crédito e os setores regulados. A melhor evidência empírica disponível corrobora a conclusão de North: “Instituições são mais importantes para o desenvolvimento econômico do que descobertas científicas”.

Nos últimos anos, o Brasil menosprezou a tarefa de constante aperfeiçoamento institucional. Imaginou-se, incorretamente, que o salto dado com o Plano Real fosse o bastante; que a estabilidade econômica havia se consolidado como valor da nação; que a racionalidade econômica se estabelecera como parâmetro da vida social e da política.

[…] As conquistas se mostraram frágeis frente à política de ocasião. As regras fiscais foram sistematicamente desrespeitadas e o regime de metas de inflação foi enfraquecido. As contas de diversos governos estaduais foram aprovadas pelos Tribunais de Contas, apesar do virtual estado de insolvência das contas públicas. Houve retrocesso na microeconomia, com intervenções discricionárias do Poder Executivo; ingerência sobre tarifas públicas, bancos públicos e empresas estatais; e distribuição de privilégios para empresas e setores selecionados à margem de uma deliberação democrática informada sobre os custos e benefícios esperados. Enquanto isso, agências reguladoras foram fragilizadas ao ponto de se tornarem pouco relevantes, reduzindo o contraditório, essencial para a democracia. Cresceram as políticas pró-negócios, conduzidas de forma discricionária pelo Executivo, em detrimento de instituições pró-mercado, na distinção feita por Luigi Zingales.

A retomada do populismo resultou na distribuição disseminada de benefícios aos diversos grupos, incompatíveis com os recursos da sociedade, no crescente endividamento do poder público e na recessão com inflação elevada – surpreendente em um período de queda do preço do petróleo. Tudo isso sem reação adequada e tempestiva dos Poderes Legislativo e Judiciário. Com poucas exceções, os órgãos de controle foram apáticos, e a oposição, omissa. A crise decorre da ausência do ajuste que a campanha assegurou desnecessário.

Não houve o equilibrado contraponto dos poderes e a independência de diversos setores públicos e privados ao Poder Executivo de plantão. Protesta-se contra o aumento de tarifas de transporte como se o reajuste fosse culpa do gestor público, e não da inflação, a velha dama que ressurge. O emprego está ameaçado, e os sindicatos, financiados por recursos compulsoriamente arrecadados da sociedade, pressionam por ajustes salariais inconsistentes com os ganhos (inexistentes) de produtividade, aumentando o desemprego, a informalidade e os empregos em tempo parcial. Empresas enfrentam crise financeira e muitas fecham, enquanto Brasília se mantém distante do Brasil e refém da política pequena. […] Será que resgataremos a agenda de fortalecimento das instituições democráticas, que garantam a transparência e estimulem o contraditório? A democracia se beneficiaria de regras e procedimentos que estabeleçam princípios para a intervenção pública, em particular a relação com os grupos de interesse, e as suas implicações sobre as novas gerações.

Nesse contexto, urge que reflitamos o aniversário de 18 anos da LRF exatamente à luz da Emenda 95, na medida em que o “Novo Regime Fiscal” contido nesta acaba por evidenciar e comprovar, em última instância, a debilidade de eficácia normativa daquela.

Remeter o problema estrutural acerca do complexo equacionamento intertemporal entre metas fiscais e sociais à falsa promessa de um teto global de despesas primárias no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias é apenas e tão somente adiá-lo, o que tende a agravar sua complexidade e seus efeitos danosos.

Paradoxalmente, a maioridade da LRF se vê através do espelho do “Novo Regime Fiscal”, introduzido pela Emenda 95/2016, não só como tragédia da nossa incompetência em regrar o equilíbrio das contas públicas de forma aderente ao propósito da máxima eficácia dos direitos fundamentais, mas, sobretudo, como uma repetição farsesca[6] do déficit democrático e republicano que cerca a matéria.

Para comprovarmos nossa percepção, aqui retomamos a fragilidade das estimativas de impacto das escolhas governamentais sobre a geração de renúncias fiscais e de despesas obrigatórias de caráter continuado, bem como o quase inexistente fluxo de controle acerca desse fato. Vale a pena comparar, por oportuno, a literalidade do artigo 113 do ADCT, ali inserido pela EC 95, com os artigos 14 e 17 da LRF: enquanto o primeiro dispositivo exige que a proposição legislativa seja acompanhada da estimativa de impacto orçamentário e financeiro (em esforço de co-obrigar o legislador), as duas normas da LRF que regem, respectivamente, a renúncia de receita e a despesa obrigatória de caráter continuado abordam o tema em redação formalmente mais detida, mas finalisticamente idêntica ao comando do “Novo Regime Fiscal”. É o que lemos a seguir:

“Art. 113. A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.

“Art. 14. A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:
I – demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do art. 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;
II – estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição.
[…] § 2º Se o ato de concessão ou ampliação do incentivo ou benefício de que trata o caput deste artigo decorrer da condição contida no inciso II, o benefício só entrará em vigor quando implementadas as medidas referidas no mencionado inciso […]”.

“Art. 17. Considera-se obrigatória de caráter continuado a despesa corrente derivada de lei, medida provisória ou ato administrativo normativo que fixem para o ente a obrigação legal de sua execução por um período superior a dois exercícios.
§ 1º Os atos que criarem ou aumentarem despesa de que trata o caput deverão ser instruídos com a estimativa prevista no inciso I do art. 16 e demonstrar a origem dos recursos para seu custeio.
§ 2º Para efeito do atendimento do § 1º, o ato será acompanhado de comprovação de que a despesa criada ou aumentada não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo referido no § 1º do art. 4º, devendo seus efeitos financeiros, nos períodos seguintes, ser compensados pelo aumento permanente de receita ou pela redução permanente de despesa.
[…] § 4º A comprovação referida no § 2º, apresentada pelo proponente, conterá as premissas e metodologia de cálculo utilizadas, sem prejuízo do exame de compatibilidade da despesa com as demais normas do plano plurianual e da lei de diretrizes orçamentárias.
§ 5º A despesa de que trata este artigo não será executada antes da implementação das medidas referidas no § 2º, as quais integrarão o instrumento que a criar ou aumentar […]”.

Ora, repetir uma norma já vigente, trazendo-a para o escopo do ADCT, não tem o condão de assegurar automaticamente seu pleno cumprimento. A realidade do pós-Emenda 95/2016 já contradisse a ilusão de que bastaria alterar a estatura normativa do dever de apresentação de estimativas de impacto orçamentário e financeiro para que fosse possível, em tese, controlar os desajustes significativos na concessão de renúncias fiscais. A repetição normativa em comento se revela infelizmente como farsa, haja vista a existência de propostas em debate no Congresso que superam a casa dos R$ 660 bilhões até 2020[7]. A ilusão contida na promessa de ajuste fiscal linear simplesmente não se sustenta diante da notícia de que, em 2017, as renúncias fiscais somaram cerca de R$ 400 bilhões e superaram os pisos de custeio da saúde e educação[8].

A história se repete também no que concerne às punições aplicáveis ao gestor que, porventura, venha a se afastar do regime (antigo ou novo) de responsabilidade fiscal. Desde 2000, falamos em limites formais de despesas e em controle por meio de estimativas de impacto financeiro-orçamentário, mas não executamos suficientemente as sanções cabíveis pelo seu descumprimento. Sintomático, a esse respeito, é o fato de que a leitura do artigo 109 do ADCT — incorporado pela Emenda 95 — em quase nada inova no seu congênere conjunto de sanções e vedações descrito nos artigos 22 e 23 da LRF.

No balanço acerca da “maioridade” normativa da Lei Complementar 101/2000, impera o pessimismo acerca dos necessários avanços institucionais quanto ao sistema de freios e contrapesos capaz de reequilibrar intertemporalmente as contas públicas à luz da Constituição, e não a despeito dela.

Quiçá não seja mesmo possível falarmos em maioridade real, porque, a bem da verdade, somos uma sociedade infantilizada e capturada pelo trato patrimonialista e paternalista dos orçamentos públicos em sua relação com o Estado e na relação desse com o mercado.

O único legado digno de nota nesse aniversário reside na perda das ilusões, o que — com boa vontade e esforço pedagógico — pode vir tendencialmente a ampliar a consciência do quanto somos todos corresponsáveis pela irresponsabilidade fiscal em que as contas públicas se encontram no Brasil.


[1] Como se pode ler em https://oglobo.globo.com/brasil/lei-de-responsabilidade-completa-18-anos-com-maioria-dos-estados-em-alerta-fiscal-22280414.
[2] Em artigo disponível em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/os-sertoes-da-lei-fiscal/, Valdecir Pascoal bem nos alimenta o dever de defesa republicana da LRF: “Passados 18 anos, não obstante os avanços alcançados, a LRF enfrenta desafios de gente adulta e, desta feita, não há como olvidar a figura do sertanejo descrito por Euclides da Cunha, 'antes de tudo, um forte', que precisava ser resiliente e florescer na aridez. Como na saga do personagem euclidiano, são muitos os sertões-adversidades que afligem a LRF. […] No momento em que a irresponsabilidade fiscal e a corrupção, a despeito de todos os bons combates já travados, ainda vicejam em nosso país, propostas equivocadas, que enfraquecem a LRF, os Tribunais de Contas e o controle público da gestão, revelam-se um verdadeiro presente de grego. A rigor, as instituições de controle e os instrumentos voltados à efetividade da responsabilidade fiscal enfrentam, paradoxalmente, seus maiores desafios desde a redemocratização: precisam ser aprimorados e, ao mesmo tempo, lutarem, com a determinação e o desassombro do sertanejo, contra as reiteradas tentativas de desertificação institucional. A sociedade precisa, antes de tudo, continuar sendo forte e vigilante”.
[3] A esse respeito, oportuno é o debate sobre as diversas burlas existentes sobre o limite de despesa de pessoal e sua admissibilidade por alguns tribunais de contas: http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,tribunais-de-contas-deram-aval-a-maquiagens-dos-governos-estaduais,10000088564.
[4] Como se pode ler, por exemplo, em http://www1.folha.uol.com.br/educacao/2017/06/1891210-para-cumprir-lei-alckmin-inclui-ate-aposentadoria-em-gasto-de-educacao.shtml, http://www.prmg.mpf.mp.br/imprensa/noticias/saude/mpf-afirma-que-mais-de-r-14-bilhoes-deixaram-de-ser-aplicados-na-saude-em-mg, https://www.conjur.com.br/2018-mar-09/mp-pezao-perca-cargo-aplicar-piso-saude e http://www.correiodopovo.com.br/Noticias/Politica/2017/10/632064/MPCRS-entrega-parecer-desfavoravel-as-contas-do-governo-Sartori.
[5] Artigo publicado em http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,como-chegamos-ate-aqui,10000017488.
[6] Tal como Karl Marx vaticinava em sua obra 18 de Brumário de Luis Bonaparte: “Hegel observa em uma de suas obras que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”.
[7] Como se lê em http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,projetos-de-renuncia-fiscal-podem-ter-impacto-de-r-667-bilhoes-ate-2020,70002269981.
[8] Disponível em https://g1.globo.com/economia/noticia/renuncia-fiscal-soma-r-400-bi-em-2017-e-supera-gastos-com-saude-e-educacao.ghtml.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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