Direitos Fundamentais

Corte europeia diz que assassinos não têm direito de serem esquecidos

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20 de julho de 2018, 8h05

O assim chamado direito ao esquecimento, objeto já de colunas anteriores, segue atraindo intensa atenção e suscitando controvérsias, seja no Brasil, seja no exterior. Cuidando-se de um direito que, embora já tenha sido reconhecido em várias ordens jurídicas, ainda não é consagrado, salvo quanto a algumas de suas dimensões, pela maioria dos ordenamentos jurídicos, o papel dos juízes e tribunais assume ainda maior relevância, visto que essencial para a compreensão e aplicação do direito ao esquecimento nos casos concretos, em especial no que diz com seu conteúdo e limites e critérios para o seu reconhecimento caso a caso.

No Brasil, o direito ao esquecimento já tem sido recorrentemente invocado em todas as esferas judiciárias e instâncias, registrando-se diversas decisões proferidas sobre o tema pelo STJ e o reconhecimento da repercussão geral da matéria pelo STF, o qual, contudo, ainda não se pronunciou sobre o mérito.

Além disso, embora o direito ao esquecimento possa ser compreendido num sentido mais amplo, abarcando situações não vinculadas ao ambiente digital (internet) — como bem ilustra, dentre outros exemplos, a jurisprudência do STJ nos casos Aida Curi e Chacina da Candelária —, é na internet que o tema assume maior impacto e atrai ainda maiores controvérsias e perplexidades.

Isso, contudo, não significa que inexistam elementos e problemas comuns às duas situações, em especial o fato de que em todos os casos está em causa o antigo, mas sempre atual debate acerca dos conflitos entre as liberdades de informação e de expressão (incluindo o direito de acesso à informação) e a dignidade da pessoa humana e/ou os direitos de personalidade e mesmo outros bens de hierarquia constitucional.

Ainda no campo da internet, mormente já se reconheça um direito a requerer a exclusão de dados (no sentido de um direito ao apagamento), como se dá tanto na Lei do Marco Civil da Internet, no Brasil, quanto no artigo 17 do Novo Regulamento de Proteção de Dados da União Europeia, a abrangência de tal direito resta controversa. Mas nem a Lei do Marco Civil da Internet nem o novo regulamento europeu dispõe expressamente acerca de um direito à desindexação de determinados links dos mecanismos de busca mantidos pelos provedores de pesquisa, a exemplo do Google, que não é o único, mas segue sendo o mais poderoso em termos da quantidade de usuários e instrumentos e facilidades que lhes são postos à disposição “gratuitamente”.

Nesses casos, que envolvem os provedores de pesquisa e respectivos mecanismos de busca na internet, o que se busca não é a eliminação dos conteúdos tidos como prejudiciais pelos seus utentes, mas, sim, dificultar sobremaneira o acesso às informações, opiniões, charges etc. que tenham o condão de impactar os direitos de personalidade e outros bens jurídicos de estatura constitucional.

Como, todavia, se cuida, em regra, de colisões entre direitos fundamentais, em tais situações imperativo lançar mão da metódica da ponderação (para quem preferir, sopesamento, balanceamento), que, por sua vez, demanda pela identificação de critérios aptos a balizarem as decisões judiciais e resolverem os problemas do dia a dia.

A identificação de critérios consistentes, suficientemente diferenciados para atenderem situações e casos concretos distintos, tem sido tarefa levada a efeito não raras vezes de modo errático, sem as diferenciações indispensáveis e mediante contradições e incongruências diversas. Com efeito, mesmo com a decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) no famoso caso Google vs. Agência Espanhola de Proteção de Dados e Mario Costeja Gonzalez, não se logrou por ora sedimentar ainda a matéria e menos ainda os critérios adotados naquele caso.

O que se percebe, de lá para cá, já transcorridos mais de quatro anos (a decisão no caso Google, acima referido e que data de maio de 2014), é que estamos ainda longe de alcançar níveis satisfatórios de segurança jurídica nessa seara. Pelo contrário, ainda que a literatura sobre o direito ao esquecimento e o número de decisões acerca do tema no Brasil e no exterior tenham já sido de algum impacto, o fato é que se está longe de estabelecer níveis adequados de convergência e consistência.

Nesse contexto calha lançar o olhar sobre recentíssima decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (doravante CEDH) no caso M.L. e W.W. vs. Germany, julgado em 28 de junho, onde se negou aos recorrentes o reconhecimento de um direito ao esquecimento, nos termos por eles invocados. Para que se possa compreender e avaliar a decisão, segue uma breve apresentação do mesmo.

Os recorrentes M.L. e W.W. foram condenados pela Justiça alemã pelo assassinato de um famoso ator (W.S.) em 1993. Tendo obtido liberdade condicional em 2007 e 2008, ajuizaram ação em face da emissora de rádio Deutschlandradio no Tribunal de Hamburgo, buscando resguardar seu anonimato quanto aos seus dados pessoais e das informações que os vinculavam ao caso, disponíveis ao público na página da internet da referida empresa de comunicação. De acordo com o Tribunal de Hamburgo, que acolheu o pleito, os requerentes teriam o direito de não serem mais confrontados com o seu passado, prevalecendo tal interesse sobre o direito de ser informado do público. Na sequência, chegando o caso ao Supremo Tribunal de Justiça da Alemanha (Bundesgerichtshof – BGH), este cassou a decisão do Tribunal de Hamburgo, entendendo que não teriam sido suficientemente levados em conta a liberdade de informação da emissora de rádio e o direito de acesso à informação de seus ouvintes. O Tribunal Constitucional Federal alemão (Bundesverfassungsgericht), por sua vez, uma vez acionado, manteve a decisão do Supremo Tribunal de Justiça.

Não satisfeitos com o resultado do seu périplo na Justiça alemã, os autores dos processos originários recorreram à CEDH (2010), invocando violação do disposto no artigo 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, pelo fato de a Justiça alemã não ter interditado as empresas de comunicação social (as ações também foram promovidas contra o periódico Der Spiegel e o jornal Mannheimer Morgen) de seguir divulgando em seus portais da internet informações sobre seu julgamento e condenação sem preservação do seu anonimato, de modo a violar o seu direito à privacidade.

A CEDH, procedendo à ponderação entre o direito à privacidade dos reclamantes e as liberdades de informação e do respectivo interesse público de ser informado, considerou que os mecanismos de busca apenas amplificam a interferência na esfera da vida privada mediante o acesso às informações disponibilizadas pelas páginas da internet que as disponibilizaram ao acesso público. Levando em conta a relevância da liberdade de informação para uma ordem democrática, a CEDH entendeu que a remoção dos elementos de identificação dos reclamantes poderia ter um efeito inibidor em relação à liberdade de expressão, ainda que a anonimização da notícia seja menos gravosa que sua remoção.

Além disso, a teor do disposto no artigo 10 da CEDH, os meios de comunicação podem mencionar os nomes completos de pessoas no âmbito de relatos jornalísticos, mormente quando os fatos e as respectivas decisões judiciais foram descritos de modo objetivo e sem intenção de constranger a imagem ou reputação dos reclamantes, referindo-se a acontecimentos de elevada gravidade e ampla repercussão social. Soma-se a isso o fato de que o acesso às informações sobre os fatos e a identidade dos reclamantes seria restrito aos assinantes ou pagantes eventuais dos respectivos meios de comunicação. Por tais razões, aqui trazidas em apertadíssima síntese, a CEDH não deu guarida ao recurso, considerando que as autoridades judiciárias alemães sopesaram adequadamente os direitos e interesses em causa, tendo atendido às exigências dos deveres de proteção em relação ao direito à privacidade dos recorrentes e à liberdade de informação.

Sem que se pretenda aqui realizar uma análise mais aprofundada, o que se percebe é que a CEDH aparentemente atribuiu uma posição mais elevada à liberdade de informação do que o fez o TJUE no caso Google, de 2014, assim como se deu no caso Lebach I, julgado pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha em 1973, onde, embora não estivesse em causa um direito ao esquecimento na internet (e nem se fizesse referência a tal direito), também se tratava de assegurar a não divulgação de notícias sobre assassinatos com referência a detalhes do caso e identidade de um dos seus autores que estava em vias de obter seu livramento condicional.

De outra parte, impõe-se a observação de que, no caso Google, o TJUE levou em conta, para o efeito de assegurar um direito à desindexação, a baixa relevância informacional e o respectivo interesse público no que diz respeito às antigas dívidas de Gonzalez para com a seguridade social espanhola e os inconvenientes que o acesso a tais informações lhe causavam ou poderiam causar.

A gravidade dos fatos e sua repercussão (no caso o assassinato de um ator renomado) parece, portanto, ter tido um particular peso na ponderação levada a efeito pela CEDH, cuidando-se, além disso, de uma lesão criminalmente sancionada de bens jurídicos fundamentais que não pode ser pura e simplesmente subtraída ao conhecimento do público e nem sua divulgação vedada aos meios de comunicação social. Aliás, note-se que também o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, no caso Lebach II, já havia adotado tal linha de orientação, negando, naquela ocasião, o pedido de não divulgação de um documentário televisivo reconstituindo os fatos.

No que diz com a jurisprudência do STJ brasileiro, todavia, o reconhecimento — instrumentalizado mediante concessão de uma indenização na esfera da responsabilidade civil — de um direito ao esquecimento no caso Chacina da Candelária, onde o autor da demanda na origem tinha sido absolvido da acusação, soa algo inquietante, porquanto — inexistindo distorção dos fatos retratados, a intervenção restritiva na liberdade de informação acaba por ter um impacto maior e o argumento manejado no voto condutor no sentido de que se deveria ter suprimido a identidade do autor da ação perde significativamente sua força.

De qualquer sorte, cuida-se de casos distintos, em contexto distintos e julgados por tribunais pertencentes a instâncias judiciárias diferentes, o que não pode ser simplesmente escamoteado em qualquer análise mais precisa.

Isso, por outro lado, não elide a circunstância de que existem categorias dogmáticas e critérios que possam ser, mediante a devida filtragem, compartilhados, e cada vez mais sugere a importância de um olhar para o lado e a virtude de se adotar uma perspectiva comparatista e pautada pelo diálogo entre jurisdições que têm por objetivo comum a proteção e promoção dos direitos humanos e fundamentais.

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