Opinião

Brasil vive um "dia dos mortos", que celebra um perturbador Estado de "não Direito"

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3 de fevereiro de 2018, 6h30

Se a Suprema Corte, de fato, dialogasse com o Congresso e com o chefe do Executivo federal, provavelmente seria algo similar ao dia dos mortos, no México, numa espécie de “Balada dos Esqueletos Constitucionais”:

Disse o Esqueleto Presidencial

Eu não sancionarei o projeto de lei

Disse o Esqueleto Presidente da Câmara

Sim, você irá!

Disse o Esqueleto Deputado

Eu protesto!

Disse o Esqueleto da Suprema Corte

O que você esperava?

Este é o fragmento inicial da poesia “Ballad of The Skeletons”, de Allen Ginsberg, musicada por Paul McCartney na década de 1990, invocando certo desconforto com o clima político norte-americano naquele período, capturado na entrevista, concedida ao Los Angeles Times, e contra o qual o poeta se insurgiu: “Eu comecei porque [de] todo esse ‘touro inflado’ sobre os valores familiares, o contrato com a América, Newt Gingrich e todas as coisas ditas em voz alta, no rádio, e Rush Limbaugh e todos aqueles outros caras. Parecia desagradável e estúpido e sub-contraditório, então imaginei escrever um poema para derrubá-lo do ringue” (veja aqui).

O imaginário esquelético de Ginsberg foi inspirado pelo feriado mexicano, do “Dia dos Mortos”, no qual o poeta brincou com a vaidade dos desejos humanos, sendo, antes, “um velho truque”, como reconheceu o Ginsberg em outra entrevista, concedida a Steve Silberman, algo como “vestir personagens arquetípicos como esqueletos: o bispo, o papa, o presidente, o chefe da polícia. Há um pintor mexicano – Posada – que faz exatamente isso”.

Em nossa realidade constitucional brasileira, há um caldo de cultura que se encaixa no imaginário destes mesmos“esqueletos constitucionais”. O presidente da República diz que vai nomear uma pessoa, que ostenta condenações trabalhistas“desagradáveis”, para o cargo de ministro do Trabalho. A base oposicionista, parte da população e alguns juízes federais, rechaçaram a ideia: “não pode!” Um ministro do STJ, na contramão, num plantão judicial de um sábado deliciosamente ensolarado, permite: “vai tomar posse sim!”; a presidente do Supremo Tribunal Federal, na madrugada de segunda, reage: “Não, não vai!”.

Parte da academia também reagiu (contra a reação): Lenio Streck[i], Djefferson Amadeus[ii], Ruy Espíndola[iii], Clarissa Tassinari e Ziel Lopes[iv]. Dentre os vários e excelentes argumentos que foram esgrimidos, de fato, é possível observar um esvaziamento da “legalidade constitucional” em detrimento de uma espécie de “espirito da moralidade coletiva seletiva”, que se resume à vontade de poder (de impedir a posse), numa espécie de “esqueleto constitucional nonsense da moralidade”.

Mais do que um sinal dos tempos, é produto de uma verdadeira disparidade de armas, de um longevo Estado “não democrático” de “não direito”, que pode ser visto, inicialmente, desde as lentes do falecido jurista baiano J. J. Calmom de Passos, em uma palestra proferida na sede baiana da Associação Juízes para a Democracia, em 2008, no “4º Espaço Diálogo e Alteridade”, quando, falando para um público composto majoritariamente por juízes, fez algumas provocações atemporais.

Calmon recordou, de saída, que “o moralista é um cínico, que quer considerar como perfeição os defeitos dele”. Lembrou, também, que a “fronteira entre a dominação legítima, e a resistência legítima, é o Direito”, e o magistrado seria o soldado fiel que ficaria responsável pela preservação desta fronteira. Nem poderia deixar que o “dominador” dominasse“menos”, pois isso pertenceria a política, e nem que ele dominasse “mais”, pois seria corrupção ou covardia.

A palestra, apresentada em forma de provocação aos magistrados, foi permeada pelas seguintes perguntas: Por que só o homem precisa do Direito? Que é, então, o Direito? É possível dissocia-lo do monopólio do uso legítimo da força? Sendo assim, como pensar o Direito como conformador da convivência social? O que produz a boa sociedade: a qualidade de suas instituições ou a qualidade de suas leis?

Ao ser questionado por uma magistrada sobre o Direito ser uma ferramenta de manutenção do status quo e sobre a necessidade de tomar as rédeas da transformação social, Calmon repeliu a possibilidade, com a serenidade de seus quase 90 anos, ao ressaltar que o juiz é impotente a nível macro, e que ao agir com generosidade (ou medo de ir para o inferno), passa a ser um agente perturbador, e não um agente transformador.

Outra juíza, se dizendo aterrorizada, disse que é preciso resistir a partir do “constitucionalismo paradigmático”, tendo como referencial a dignidade da pessoa humana, relatando inúmeros problemas sobre o conflito entre o social e o capital. Novamente, Calmon responde que tudo que a referida juíza acabara de dizer era uma espécie de “religião”, e, fundamentando sua resposta em metáforas religiosas, disse que os juristas (ele, que foi procurador-geral de Justiça do MP e presidente da OAB-BA, e os juízes, incluídos) são o grande instrumento de inviabilização da atividade política, pois se julgam “Nossa Senhora da Conceição”, “Senhores do Bonfim”, “Santo Antônio”, como se fossem milagreiros capazes de resolver o problema social.

Para responder a esse problema, fixemos também os pensamentos de Stephen Holmes e Adam Przeworski, respectivamente em seus importantes textos sobre as “Linhagens do Estado de Direito”[v] e sobre o “Por que de Partidos Políticos obedecerem os resultados das eleições”[vi], tendo em vista o Brasil de 2018, com toda a carga de sua herança (funesta) de uma disseminada “cultura de não obediência ao Estado de Direito” e de apostas em “heróis” e “salvadores da pátria”, que nos tornam o que somos, temos sido (e, infelizmente, ao que parece, iremos ser)[vii].

Stephen Holmes se inquieta com dois dos pilares do Estado de Direito: a previsibilidade e a igualdade, realizando uma abordagem que contraria o tratamento convencional. Holmes tenta esclarecer as “razões pelas quais poderosos atores políticos podem resistir furiosamente ao (ou acolher calorosamente o) Estado de Direito”, partindo da premissa de que não seria possível “explicar por que o Estado de Direito surge ou não, num contexto histórico específico”, invocando-se nada além dos cálculos estratégicos de poderosos atores políticos, embora “as razões auto-interessadas pelas quais os membros poderosos de uma sociedade podem incentivar ou desencorajar tal desenvolvimento [que é], sem dúvida, relevante e merece um tratamento focado”.

Holmes pergunta, em primeiro lugar, por que os governos, com os meios de repressão em suas mãos, podem ser induzidos a tornar seu próprio comportamento previsível? Na resposta a esta pergunta, volta suas lentes para Maquiavel, especialmente em sua conhecida tese sobre os governos serem levados a tornar seu próprio comportamento previsível por uma mera questão de cooperação, pois tendem a se comportar como se estivessem “atados” à lei, ao invés de usarem a lei imprevisivelmente como um obstáculo para disciplinar a população, menos por causa do temor contra a rebeldia, e mais por causa de possuírem objetivos específicos (tais como tentar evitar que invasores estrangeiros se apoderem de seu território), algo que exige um alto grau de cooperação voluntária de grupos sociais específicos (soldados dispostos a matar ou morrer) e ativos financeiros (tributo).

Na linha de seu raciocínio, Holmes supõe que o “governante político” é internamente coerente, sendo capaz de atuar a partir de cálculos racionais, com total controle dos meios de repressão e, embora seja assumidamente uma simplificação, merece uma percepção mais ampla, pois com essa suposição, examina-se a afirmação de que o “governante político” submete-se inicialmente a restrições regularizadas quando percebe “benefícios” em fazê-lo, algo que deixa de ser trivial quando se percebe que o Estado de Direito surgirá (ou não), será fortalecido (ou enfraquecido), ampliado (ou restringido) à medida que as metas, cálculos, e prioridades do “governante político” mudem.

Por sua vez, Adam Przeworski nos faz refletir sobre o fato de que, para que uma democracia seja estável, “os cidadãos devem adotar uma visão compartilhada do que constitui ações ilegítimas pelo Estado e devem estar preparados para agir contra as transgressões desses limites, caso ocorram”. Acontece, entretanto, que parecemos adotar no Brasil uma crença compartilhadaem heróis e salvadores da pátria.Estes salvadores, por sua vez,são levados a crer que podem violar os limites Constitucionais se os fins justificarem os meios. Não há rebelião contra a violação, antes o contrário. Há celebração coletiva.

Neste sentido, seja com Calmon de Passos, Stephen Holmes, Adam Przeworski ou Allen Ginsberg, é possível concluir que seremos “derrubados do ringue” porque vivemos um esquelético dia dos mortos, todos os dias, que celebra um perturbador Estado “não democrático” de “não direito”. Quando a obediência às regras do jogo é afastada, ninguém mais se sentirá obrigado a permanecer no jogo, que pode levar, a médio e a longo prazo, a um reinicio do próprio jogo, num contexto em que já estamos em plena 7ª Carta Magna de regras do “jogo Constitucional”.

Quando a moral substitui o Direito e a política, passamos a reviver um eterno “Estado Novo”, que – assim como hoje – criminaliza os partidos, a política e os políticos, com o slogan “os partidos não representam”, embora estejamos substituindo uma representação por outra, menos democrática, num permanente giro substitutivo que anima ingênuos incautos ou maliciosos de plantão, que desconsideram a história, a função e o papel das instituições, num contexto em que a verdadeira mudança política deve ser travada perante o parlamento, com pressão sobre os políticos na arena democrática, uma vez que se a luta for travada em qualquer outro campo estaremos diante de um permanente teatro de guerra.

Temos por aqui uma longeva mistura explosiva, na mescla entre desrespeito pelo Estado de Direito, a desconsideração da elementar noção de Constitucionalismo e desprezo pelas regras da Democracia. Por isso muitas Constituições, muitos “heróis”, muitos velhos Estados “Novos”. Até quando? Se Allen Ginsberg fosse chamado a opinar, diria: “O que você esperava”…

[i] STRECK, Lenio. Judiciário quer nomear ministros: sugiro para a Saúde um não fumante! ConJur de 11.01.2018.

[ii] AMADEUS, Djefferson. Cristiane Brasil e os cidadãos de segunda classe. ConJur de 10.01.2018.

[iii] ESPÍNDOLA, Ruy. Constituição está com sério déficit de compreensão e concretização. ConJur de 09.01.2018.

[iv] TASSINARI, Clarissa; LOPES, Ziel. Brasil espera seu resgate por uma frota de barquinhos pesqueiros. ConJur de 20.01.2018.

[v] HOLMES, Stephen. Lineages of the rule of law. Democracy and the rule of law. Em: José Maria Maravall Adam Przeworski (org.). Cambridge: Cambridge University Press, 2003

[vi] PRZEWORSKI, Adam. Why Do Political Parties Obey Results of Elections? Em: José Maria Maravall Adam Przeworski (org.). Cambridge: Cambridge University Press, 2003

[vii] Em junho de 2000 foi realizado no Instituto Carlos III-Juan March de Ciências Sociais (IC3JM), um importante seminário tendo como pano de fundo o tema: “Estado de Direito” (Ruleof Law), que rendeu a publicação de um livro seminal, organizado por Adam Przeworski e por José María Maravall (Democracy and the Rule of Law).

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