Opinião

Cristiane Brasil e os cidadãos de segunda classe

Autor

  • Djefferson Amadeus

    é advogado mestre em direito e hermenêutica filosófica pela Unesa pós-graduado em filosofia pela PUC-Rio pós-graduado em processo penal pela ABDCONS-RJ membro da FEJUNN e do Movimento Negro Unificado (MNU).

10 de janeiro de 2018, 14h22

A expressão “cidadãos de segunda classe” é de Lenio Streck. Segundo o jusfilósofo: “Os cidadãos de segunda classe, em vez de reivindicarem seus direitos no campo da política, apostam no paternalismo jurisdiscista”[1].

Para além da questão do ativismo judicial, interessa-me aqui, entre outras coisas, aquilo que denominei de “fator Cristiane Brasil”, isto é: quem ganha, perde. Explico.

Nesta terça-feira (9/1), a ConJur noticiou que o Tribunal Regional Federal da 2ª Região manteve suspensa a posse de Cristiane Brasil ao Ministério do Trabalho[2]. Por não vislumbrar “risco à ordem”, o desembargador Guilherme Couto de Castro manteve a decisão do juiz Leonardo da Costa Couceiro, da 4ª Vara Federal em Niterói (RJ), que havia concedido a liminar, sob o fundamento de que “este magistrado vislumbra fragrante desrespeito à Constituição Federal no que se refere à moralidade administrativa…”[3].

Entristece — e muito — a Democracia, quando nos deparamos com decisões como estas. Da proteção à moralidade, em primeira instância, a proteção à ordem, em segunda instância, a pergunta que fica é aquela feita por Agostinho Ramalho: quem protege o direito da bondade dos juízes bons?

Talvez por isso, aliás, Eros Grau, que foi juiz no Supremo Tribunal Federal, tenha escrito um livro cujo título é: Por que tenho medo dos juízes. Nele, ciente dos perigos do ativismo judicial, o ex-ministro do STF afirmou o seguinte:

“É necessário afirmar bem alto: os juízes aplicam o direito, os juízes não fazem justiça! Vamos à Faculdade de Direito aprender direito, não justiça. Justiça é com a religião, a filosofia a história. (…). Assim é o juiz: interpreta o Direito cumprindo o papel que a Constituição lhe atribui”[4].

A isso se dá o nome de legalidade constitucional (Elias Diaz).

Mas daí alguém poderia indagar: se o juiz, no caso da ministra Cristiane Brasil Francisco, a tivesse mantido no cargo, seguindo a legalidade constitucional, teríamos uma decisão legal, mas imoral, certo? Errado! E por um simples motivo: não faz mais sentido dizer: “— isso é legal, mas imoral.” Afinal: se há uma “cooriginariedade entre o Direito e a moral” (Streck), é evidente que há uma ética pressuposta na legalidade, motivo pelo qual algo somente será legal se for… moral. Eis por que Habermas vai dizer — e a ele não posso deixar de me referir — que “Não é mais preciso limitar os discursos jurídicos através de uma restrição lógica dos conteúdos morais. (…) Eles são, ao invés, referidos naturalmente ao direito gerado democraticamente e institucionalizados juridicamente”[5].

Mas, o que isto tem a ver com cidadãos de segunda classe? — é a pergunta que, naturalmente, o leitor deve estar se fazendo. Muito (para não dizer: tudo!), afinal de contas, ao transformarmos o Judiciário numa espécie de ágora, como se lá devesse ser o lugar para discutir os assuntos da pólis, caminharemos a passos largos para uma juristocracia, isto é: governo dos juízes.

Por isso, linhas acima, quando me referi ao fator Cristiane Brasil como sendo aquele no qual quem ganha… perde, o fiz com a intenção de demonstrar que a vitória na referida ação popular é uma derrota.

Derrota, porque — simbolicamente — representa um regresso ao estado de “minoridade”, isto é, “a incapacidade de se servir de seu próprio entendimento sem a tutela de um outro”[6]. Parafraseando Kant, ao comprazermos em permanecer por toda a nossa vida como menores, é que torna-se tão fácil aos outros (leia-se Juízes) instituírem-se como nossos tutores[7].

Daí porque aquilo que deveria ser motivo de vergonha, tal como o é a lei da ficha limpa, acaba sendo motivo de orgulho. É como se alguém nos dissesse: vocês, por serem “minores”, precisam de que o Poder Judiciário faça uma lista e — somente a partir dela — votem.

Assim, por faltar-lhes coragem de servir-se de si mesmo, o cidadão de segunda classe permanece, como diria Ernildo Stein, “com o olho no dedo do mestre, em vez de olhar para a lua”[8].

No caso do Direito, diria eu, anos de pusilanimidade e subserviência aos juízes, fizeram com que os olhos de muitos advogados estivessem voltados apenas à caneta dos magistrados, em vez de estarem voltados à Constituição.

E isto tem um preço. Caro. Afinal: aquele que se acostuma com o poder, ama-o. E é justamente isso que se criou com V. Excelência, Egrégia Corte, Colenda Câmara, magnífico Desembargador, venerável juiz etc. Um amor pelo poder. Eis por que qualquer tentativa de limitação do poder que dependa dos juízes está, a meu ver, fadada ao insucesso.

Por isso, embora não seja um kantiano, valho-me dele para clamar a todos os cidadãos de segunda classe: “Tenham a coragem de te servir de teu próprio entendimento, tal é, portanto, a divisa do Esclarecimento”[9]. Mas, atenção: isso não significa esteja eu a defender um solipsismo, afinal: “O estar-aí produz mundo: mas não como ato de constituição soberana — característica das teorias da subjetividade”[10].


[1] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica do direito. 10. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011, p. 64
[2] https://www.conjur.com.br/2018-jan-09/trf-mantem-suspensa-posse-cristiane-brasil-trabalho
[3] https://www.conjur.com.brhttps://www.conjur.com.br/wp-content/uploads/2023/09/juiz-suspende-posse-cristiane-brasil-2.pdf
[4] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6 edição refundida do ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 21.
[5] HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia. Entre facticidade e validade. Tradução de Flávio BenoSiebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, Vol, I, 1997, p. 292.
[6] https://www.pucpr.br/wp-content/uploads/2017/10/autonomia-immanuel-kant-o-que-e-o-esclarecimento.pdf
[7] https://www.pucpr.br/wp-content/uploads/2017/10/autonomia-immanuel-kant-o-que-e-o-esclarecimento.pdf
[8] STEIN, Ernildo. Paradoxos da Racionalidade. Porto Alegre. PYR Edições, 1987, p. 12.
[9] https://www.pucpr.br/wp-content/uploads/2017/10/autonomia-immanuel-kant-o-que-e-o-esclarecimento.pdf
[10] STEIN, Ernildo. Paradoxos da Racionalidade. Porto Alegre. PYR Edições, 1987, p. 40.

Autores

  • é mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica (UNESA-RJ), pós-graduado em filosofia (PUC-RJ), Ciências Criminais (Uerj) e Processo Penal (ABDCONST). Advogado eleitoralista e criminalista.

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