Cai um iluminista

Morre Otavio Frias Filho, pioneiro do novo jornalismo brasileiro

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21 de agosto de 2018, 7h57

Morreu na madrugada desta terça-feira (21/8) Otavio Frias Filho, diretor de Redação da Folha de S.Paulo, aos 61 anos de idade. Vítima de câncer no pâncreas, descoberto há 11 meses, Otavio reagia bem ao tratamento, mas cedeu diante de complicações verificadas na semana passada.

Agência Senado
Otavio Frias Filho delineou um modelo de jornalismo que foi perseguido por quase toda a imprensa brasileira.
Agência Senado

Formado em Direito na Faculdade do Largo São Francisco (USP) e não em jornalismo, Otavio modernizou seu jornal e delineou um modelo que foi perseguido por quase toda a imprensa brasileira. Este site, por exemplo. Paralelamente, foi dramaturgo e ensaísta.

Otavio deixa a mulher, Fernanda Diamant — que dirige a revista literária Quatro Cinco Um —; duas filhas, Miranda e Emília; e os irmãos Luiz, que dirige o Grupo Folha, Maria Cristina, editora da coluna Mercado Aberto, e Maria Helena, médica.

Ao assumir o comando da Folha, em 1984, aos 27 anos, Otavio encontrou forte resistência dos jornalistas. Ele encabeçou a elaboração de um Manual da Redação que batia de frente com as práticas de então. O guia impunha a busca de um “jornalismo crítico, apartidário e pluralista”. Reduziu o subjetivismo dos redatores ao forçar textos descritivos e precisos. Adotou mecanismos de controle interno, como o número de erros cometidos por profissional, instituiu o cargo de ombudsman e mesmo inquéritos para apurar notícias erradas.

Existiam dois Otavios. Um discreto, meio carrancudo, reservado e avesso à exposição de sua vida pessoal; outro vigoroso, desinibido, criativo e radical  — traços presentes em seus textos, sejam editoriais, nas peças de teatro ou ensaios.

ConJur
Os jornalistas Elio Gaspari, André Petry (diretor de redação da Veja), André Lahóz (diretor de redação da Exame), Fábio Altman (redator-chefe da Veja), Marcelo Damato e Juca Kfouri durante o velório de Otavio Frias Filho, nesta terça.
ConJur

Inicialmente, na década de 80, teve de enfrentar a rebelião dos jornalistas da Folha, mas teve o apoio de seu pai (leia aqui a transcrição do debate). A velha guarda não admitia que alguém com a idade de Otavio, com pouca vivência na profissão, pudesse lhe dizer como fazer jornalismo. E nasceu a geração dos apelidados “menudos”, jovens jornalistas também pouco experientes que passaram a substituir os velhos profissionais em cargos-chave no jornal. Parecia impossível que desse certo. Mas deu. A Folha transformou-se no principal jornal do país.

Com um estado-maior singular, formado originalmente por Caio Túlio Costa, Carlos Eduardo Lins da Silva, André Singer e Matinas Suzuki, Otavio começou por trocar jornalistas que, além do emprego no jornal, recebiam salários dos órgãos públicos que cobriam como setoristas (repórter encarregado de produzir notícias sobre um setor determinado).

Octavio Frias de Oliveira em pé, no centro, com o filho Luiz no colo, enquanto Otavio entrega flores à mãe, Dagmar, em Congonhas. Atrás dele, Maria Cristina.
Acervo Pessoal

Parecia ser uma cruzada moral. Não era, como explicou “Otavinho” (apelido que seus desafetos usavam para diminuí-lo, o que o irritava). O problema, explicou em um depoimento em 1989, era estrutural. Analogia que, mais de 30 anos depois, ele viria a repetir para analisar o país. Apesar de comandar o jornal alinhado com os demais na exposição sistemática de escândalos e acusações, ele não achava que o problema central do Brasil seja a corrupção. “A desgraça é a ineficiência”, disse ele.

Leia o depoimento de Otavio Frias Filho sobre o problema da corrupção no jornalismo, em 2 de fevereiro de 1989:

A diferença entre o jornalismo, o jornal de Brasília e o jornalista e jornal de São Paulo é estrutural. São Paulo tem um mercado de característica capitalista. Em Brasília não há mercado. Em lugar disso há o governo federal. As distorções decorrem daí. Onde o mercado é fraco, o estado ocupa o espaço. E o jornalista é vulnerável. Acaba ocorrendo uma comunhão de interesses, do ponto de vista dos hábitos e uma afinidade pessoal. E isso influencia o produto final, ou seja, o noticiário, que tende a sair de Brasília contaminado de um viés oficialista.

Imagino que houve uma imbricação entre os jornalistas e os políticos do Congresso, primeiro por uma razão política — a oposição ao regime militar — depois por questões de comodidade com a “Nova República” uniu-se o útil ao agradável.

Os jornalistas são mal remunerados e mal preparados para a profissão. Quando o jornalista busca emprego junto a uma fonte que ele deve — em tese — fiscalizar, cria-se um ciclo vicioso. O natural é que se pague menos a um profissional que não goze de confiabilidade técnica.

(Sobre a lei do silêncio que cobre fatos em que jornalistas estejam envolvidos): “Há um medo excessivo da reação da categoria. Os maiores exemplos de covardia moral não se verificam pelo medo dos poderosos, mas diante da opinião média da categoria. A FSP foi o primeiro jornal a tocar nesse tema. Hoje, outros jornais adotam o mesmo comportamento.

Há um movimento em toda a imprensa em direção ao profissionalismo. Uma preocupação com o desenvolvimento técnico, a objetividade. As empresas jornalísticas se voltam para o mercado e abandonam o obsoleto. A FSP teve uma atitude pioneira nisso. Outros jornais estão procedendo a uma série de providências ou métodos que a FSP adotou.

Agora, não há dúvida de que, onde o mercado é fraco, o jornalista acaba apelando. Por isso a imprensa do Piauí é pior que a de Minas, a de Minas pior que a de São Paulo e a de São Paulo pior que a dos Estados Unidos. O pano de fundo é o mercado ser mais ou menos desenvolvido.

Há casos em que mesmo quem não leva vantagem financeira protege a fonte. E que há muitas moedas nesse mercado. E a contabilidade do prestígio é tão valorizada quanto a contabilidade do dinheiro, pela dimensão pública dessa área.

Aqui em São Paulo, nos grandes jornais — no circuito Abril, Estadão, Folha eu considero o padrão de moralidade dos jornalistas invejável. Muito bom mesmo.

A FSP prescinde de favores. Não tem qualquer tipo de acordo ou negócio com ninguém, governo ou empresas. O Estadão, eu concordo com o Mino, poupa o ACM de críticas por causa das listas telefônicas que publica. A rodoviária, enquanto pertenceu à Folha era privada — um empreendimento. Agora, a rodoviária foi fechada há seis anos. Foi vendida para um grupo coreano e se tornou um shopping popular.

Acho que se o Mahatma Gandhi fosse dono de um jornal do Nordeste ou ele vendia as posições do jornal ou sucumbiria, ao passo que se o Al Capone tivesse um jornal em NY ele não precisaria fazer acordos com ninguém. Em suma, não é uma questão moral, mas estrutural. E questão de o mercado ter um desenvolvimento menor ou maior. Mas a categoria vê tudo de um ponto de vista moral. Ela é muito moralista.

A imprensa brasileira são duas. A dos quatro grandes jornais e a Veja — que é um segmento relativamente autônomo (e, no caso da Folha, radicalmente autônoma). Todo o restante configura o segundo bloco, subordinado ao poder do estado, à mercê de todo tipo de concessões. O jornalista que tem dois empregos em SP tem muito mais responsabilidade e culpa, que o jornalista de Brasília.

Depois que a sucursal de Brasília da Folha expeliu seus jornalistas chapas-brancas, a diferença no produto final foi muito pequena. Isso porque essa questão e apenas uma componente do quadro. No global, o despreparo profissional é muito grande. Desde a formação escolar precária, à irresponsabilidade na publicação de notícias, a falta de zelo, o pré-julgamento etc. Mais insistente que a influência do jornalista chapa-branca é o problema político. A maioria acha que está a serviço de uma causa — ou a revolução social, a liberdade, o avanço do proletariado e tudo o mais — isso acaba resultando num mau jornalismo porque é um equívoco. O jornalismo, o jornalista, está a serviço do público. E a tendência acaba sendo a de esquecer esse público, que é a classe média. A classe média que é quem paga o jornal. Mas não. O repórter trabalha com uma quimera, uma ilusão, um submarxismo que se difunde na faculdade, uma postura romântica.

Passei um dia no Guardian de Londres. Lá eles não têm manual de redação, pauta nem toda essa papelada, essa burocracia, tanto controle, estatística, avaliação. Por que não tem? porque não precisa ter. Esse processo que estamos vivendo aqui hoje, eles viveram há cem anos. Você não precisa dizer ao jornalista de lá que é preciso sempre ouvir todas as partes envolvidas em cada caso, não precisa ensinar ortografia a quem chega numa redação para trabalhar. O Brasil não vai chegar a esse ponto tão rápido quanto se imagina. Aqui, por exemplo, nós demos um salto artificial. Difícil fazer as pessoas compreenderem que esse processo é provisório, mas acho que já atingimos 60% dos nossos objetivos. Avançamos na qualidade técnica. Hoje a informação está mais voltada para o mercado, para o leitor.

O papel da imprensa é dar acesso ao leitor às informações que lhe dizem respeito. Evitar que assuntos públicos fiquem no sigilo. E acho que a meta, o objetivo dessa imprensa deve ser o de melhorar tecnicamente, investir no seu próprio desenvolvimento.

(Quanto á responsabilidade do governo na cooptação de jornalistas) “Não adianta iniciar uma cruzada moral, uma catequese. Tem que se criar condições objetivas para estabelecer uma relação profissional. É natural que cada um queira adotar o caminho mais rápido e fácil para atingir seus objetivos. Instalada uma mentalidade de mercado vai ser mais difícil. Enquanto for factível o senador Humberto Lucena fazer o que faz, ele fará. No momento em que os jornalistas forem bem pagos e a imprensa for autônoma, os Humberto Lucena irão desaparecer normalmente.

No fundo, o que eu digo é muito parecido com o que o Gorbatchóv fala. Quanto ao sindicalismo, é inevitável que ele caminhe para a modernização também. No momento, ele está muito preso a pequenos interesses. Pouco radical e muito conservador, sofre de uma certa miopia. Só vê a curto prazo. Os líderes sindicais jogam mais com o medo de perder o voto dos jornalistas na próxima eleição do que com o desenvolvimento da profissão. Se tomassem atitudes mais radicais, estariam contribuindo para isso.

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