Limite Penal

Dez mandamentos para provocar o jurista na selvageria hermenêutica

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

17 de agosto de 2018, 8h05

Spacca
A cada semestre se renova a esperança de que alguma coisa fisgue os alunos de graduação, mestrado e doutorado. Para além do interesse acadêmico em suas pesquisas, surge a necessidade de ampliar os horizontes, estudar coisas diferentes, fora da caixa jurídica. O desafio se revela complexo em face da demanda por aprovação em provas (OAB, por todas). Como, então, não formar um acadêmico oabtizado, e sim um potencial jurista? No nosso caso, em processo penal.

Por certo temos que ensinar a legislação, embora não entendamos a necessidade de repetir o texto normativo, já que deveria ser pressuposto. Afinal de contas, se o acadêmico sabe que irá cursar processo penal, deveria ao menos ler a Constituição e o Código de Processo Penal. Mas nem sempre a realidade encontra gente que investe tempo em sua formação antecipada. Isso porque com o domínio normativo restaria mais tempo para apontar a necessidade de compreender a teoria do processo, o impacto das novidades legislativas, especialmente porque não temos mais um processo penal único, e sim vários. Em cada comarca, juízo ou tribunal, vemos uma “selvageria hermenêutica” em que sentidos impensados surgem por unanimidade.

O nosso desafio, então, é indicar alguns pressupostos (verdadeiros 10 mandamentos para orientar o semestre):

1) punir faz parte do jogo democrático, sendo necessário enquanto recusa a barbárie, embora saibamos que a função oculta do Direito Penal é de controle social da pobreza, em geral;

2) o processo é, como regra, o caminho necessário para se chegar à pena (nulla poena sine iudicio). Contudo, é preciso compreender que essa regra geral está sendo relativizada por uma nova ordem processual: a ampliação dos espaços de consenso, pela via da justiça negociada. É um caminho sem volta, que precisa ser estudado e compreendido para que o aluno saiba jogar esse novo jogo, sob pena de exclusão;

3) punir e garantir não são excludentes, todo o oposto, devem coexistir na equação garantir para punir e punir garantindo. Logo, respeitar regra do jogo não é sinônimo de impunidade. Agora, violar as regras do jogo, sim, pode ser causa de impunidade;

4) respeitar as categorias jurídicas próprias do processo penal é postulado básico para que se faça uma recusa à teoria geral do processo e as inadequadas importações de conceitos e institutos do Direito Processual Civil. São fenomenologias distintas que precisam ser respeitadas, exigindo imensa cautela na hora de fazer analogias que devem sempre ser excepcionais;

5) o processo penal de uma nação funciona como um termômetro dos elementos autoritários ou democráticos de sua Constituição (Goldschmidt). É, portanto, o Código de Processo Penal que precisa se adequar e conformar à Constituição e à Convenção Americana de Direitos Humanos, e não o contrário. Frente a uma Constituição democrática como a nossa, é preciso democratizar o processo penal através do fortalecimento do indivíduo, por meio da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais;

6) a forma processual é a garantia de que se e somente se consolidadas podem conferir legitimidade à sanção. Processo penal é ritual de exercício de poder e todo poder tende a ser autoritário. Por isso, o processo penal é um instrumento de contenção, de controle do poder, através da forma que é sinônimo de legalidade. Se as regras não são cumpridas, há nulidade, porque, se descumprir regras não leva à declaração de nulidade, há o fomento para que se descumpra; e hoje vemos o descumprimento floreado pelo acolhimento da teoria das nulidades relativas para tudo, até porque a categoria prejuízo é amplamente manipulada;

7) o papel do juiz no processo penal é o de julgador, não de perseguidor/inquisidor. Deve ser o garantidor da máxima eficácia dos direitos e garantias fundamentais (regras do jogo), e não o salvador da pátria, responsável pelo combate a impunidade. Deve corresponder às expectativas jurídicas e constitucionais de julgador, e não às expectativas populares ou midiáticas de inquisidor. A imparcialidade do julgador é o princípio supremo do processo. Somente se pode admitir, no marco constitucional vigente, um processo penal de caráter acusatório (e não inquisitório) fundado no princípio dispositivo em que a gestão/iniciativa das provas está nas mãos das partes (decorrência, ainda, do ne procedat iudex ex officio). Somente em um sistema acusatório é que se criam as condições de possibilidade de termos um juiz imparcial. A iniciativa probatória de ofício do juiz é absolutamente incompatível com o sistema acusatório e fere de morte a imparcialidade. Por fim, neste terreno, é preciso que finalmente se compreenda que juiz prevento é juiz contaminado, que não pode julgar, assegurando-se a "originalidade cognitiva" do julgador (a partir da compreensão, entre outras, da teoria da dissonância cognitiva, do efeito primazia etc., que tanto já tratamos aqui nesta coluna);

8) o contraditório é o coração do processo e devemos solidificar a eficácia de ser ouvido, influenciar e ser influenciado, superando a noção de que o juiz conhece o Direito, justamente porque o juiz que só quer fatos é uma fraude democrática. A decisão precisa ser construída em contraditório, sem surpresas nem arroubos voluntaristas. É preciso superar de vez o mofo do narra mihi factum dabo tibi ius;

9) presunção de inocência é uma regra de tratamento e também de julgamento, fruto do nível de evolução civilizatória de um povo. Infelizmente, diante da cultura punitivista brasileira, está se tornando um ornamento no processo penal. Portanto, na distorção prática operada, é melhor que o defensor imagine que o acusado já larga condenado na imensa maioria dos foros, cabendo um papel decisivo e matador do advogado em entender isso desde o início e saber produzir uma boa prova. Compreenda-se: obviamente, não pactuamos com isso, mas é melhor estar preparado para essa dura e distorcida realidade quando se está no papel de advogado de defesa;

10) vigora uma lógica “hermenêutica talibã”, como diz Thiago Fabres de Carvalho, de condenação de todos que estão juntos, perto ou com antecedentes criminais, principalmente em tráfico de drogas (mulheres, filhos, parentes etc.); na dúvida, consulte-se os antecedentes.

Poderíamos indicar muitos pressupostos, mas, para os fins do artigo, todavia, cabe distinguir a necessidade de fomentar a curiosidade democrática e epistemológica, e não uma curiosidade mórbida e perversa que projeta no outro toda sua impotência e despreparo, podendo querer consertar o mundo em vez de olhar para seus fantasmas.

Enfim, desenvolver a curiosidade perceptiva, em tempos de aceleração, exige novas estratégias de ensino e pressupõe a curiosidade do acadêmico. Sem ela, repetimos as mesmas lições que hoje não mais empolgam. Antigamente, mostrávamos julgados extravagantes, bizarros, mas hoje eles viraram, infelizmente, produtos do cotidiano. Reinventar o inesperado continua sendo o desafio de cada semestre, quem sabe convidando a ver o mesmo problema de distintas perspectivas, identificando melhor as sutilezas do jogo processual penal como ele é; não como queríamos que fosse. É quase um apelo à curiosidade que contagia. E se, ao final do semestre, fizermos nossos alunos compreenderem pelo menos esses 10 pressupostos, a missão terá sido cumprida com êxito, pois teremos constituído a base para a formação de um jurista consciente do lugar constitucionalmente demarcado para o processo penal. Boas aulas.

Autores

  • é doutor em Direito Processual Penal, professor titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e professor de Processo Penal na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e na Universidade do Vale do Itajaí (Univali).

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