Academia de Polícia

A problemática da integração dos órgãos públicos na fronteira

Autor

  • Rodrigo Carneiro Gomes

    é delegado da Polícia Federal mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

7 de agosto de 2018, 8h05

Spacca
1. A necessária integração entre órgãos de defesa nacional e de segurança pública
A integração entre órgãos de defesa nacional e de segurança pública é um dos temas de alta relevância no atual cenário político-institucional.

Abstraídos outros requisitos essenciais para o funcionamento, aperfeiçoamento e engrandecimento das instituições, como remuneração adequada, seleção e provimento de recursos humanos e logísticos sem contingenciamentos anuais, a integração entre órgãos de defesa nacional e de segurança pública, inclusive na área educacional, é uma missão nacional imprescindível para a regular atuação das forças públicas e com baixo impacto orçamentário-financeiro.

Essa integração de forma coordenada e com compartilhamento de estrutura física e recursos humanos otimiza o emprego de recursos públicos e o resultado das ações, aproxima as instituições e o exercício da tolerância, permite o fluxo regular de informações, por meio de sistemas informatizados, mitiga o problema do secretismo e da “feudalização” de dados e informações por um órgão ou por uma unidade dele e evita a sobreposição de atuação e de ações.

A almejada integração entre órgãos de defesa nacional e de segurança pública acontece, atualmente, de forma pontual, na concretização de ações governamentais e operações conjuntas, das quais temos como exemplos as operações conjuntas das forças policiais estaduais e federais com as forças armadas no Rio de Janeiro, ainda antes da intervenção federal[1], a experiência da Secretaria Extraordinária de Segurança para Grandes Eventos na Copa do Mundo de futebol em 2014, nas Olimpíadas[2], articulação conjunta para acolhimento e enfrentamento do fluxo migratório venezuelano a partir de Roraima e nas demais operações conjuntas de fronteiras.

2. A inteligência de Estado como instrumento para integração interinstitucional em faixa de fronteira
A Inteligência de Estado surge no cenário integracional com o objetivo de levantar e analisar informações as mais diversas que subsidiem não apenas o gestor, mas a atuação de cada um dos órgãos públicos que ajam na faixa de fronteira e detenham competência e mandato legal para defesa nacional, proteção da soberania pátria, de controle migratório e de repressão ao crime organizado transnacional, entre outros. Para tal missão, é fundamental o aporte da inteligência para mitigação de riscos e vulnerabilidades, além de poder orientar uma melhor alocação e administração dos parcos recursos disponíveis, bem como subsidiar o planejamento estratégico de atuação conjunta.

Para FERRO e DANTAS (2007, p.4[3]) “A sobrevivência das organizações contemporâneas depende cada vez mais da capacidade de se construir um modelo de gestão do conhecimento, com estratégia, infraestrutura, decisão e identidade, apto a responder a um contexto cada vez mais complexo e instável da sociedade”.

Sobre rede de conhecimento e informações, FERRO JÚNIOR (2007, pp. 34-35[4]) alerta que:

O desempenho investigativo das organizações policiais precisa ser melhorado. Isto se processa por meio de inteligência da organização, apoiando as atividades desenvolvidas e uso de tecnologias que permitam criar um modelo organizacional em rede de conhecimento, onde todos os componentes e atores são disseminadores de informações, participam do processo de criação do conhecimento e funcionam como se fossem neurônios.

A Inteligência de Estado pode atuar diretamente na integração das instituições com representação na faixa de fronteira mediante fornecimento de informações estratégicas, proteção do conhecimento nacional, ações de contrainteligência inibidoras de investidas alienígenas, análises de riscos e projeções de cenários, orientações quanto à mobilização de recursos humanos e à melhoria da segurança orgânica, por exemplo.

Também serve a Inteligência de Estado para fomentar e idealizar um modelo de gestão pública de recursos humanos e logísticos, duradouro, saudável e institucionalizado.

Note-se que há uma diferença entre a atividade de inteligência de Estado e a atividade de inteligência policial. Enquanto a primeira prima pelo assessoramento das autoridades de Governo, no processo decisório, a segunda busca a produção de provas da materialidade e da autoria de crimes. A Inteligência Policial é, em suma, voltada para a produção de conhecimentos a serem utilizados em ações e estratégias de polícia judiciária, com escopo de identificar a estrutura e áreas de interesse da criminalidade organizada, por exemplo.

Lamentavelmente, as ações estratégicas e eficazes de integração entre órgãos de defesa nacional e de segurança pública não têm seu potencial explorado pelo poder público à saciedade, o que importa em subdimensionamento do papel da inteligência de Estado.

Muitos fatores são determinantes para essa desestruturação na contramão da lógica tais como cortes orçamentários, falta de cultura organizacional, resistência interna dos órgãos e de seus integrantes, desgaste natural das relações pessoais e interinstitucionais no convívio duradouro, disputa de espaço e atribuições, entre outros.

Portanto, deve integrar a estratégia de implementação de uma Inteligência de Estado a previsão de contramedidas para coibir ou mitigar a carência de investimento ou o contingenciamento orçamentário, a resistência interna à proatividade e novos projetos, e as dissidências interinstitucionais que sabotam as iniciativas de parceria, cooperação e integração.

3. A integração de órgãos públicos em faixa de fronteira
O art. 1º da Lei nº 6.634/79 define que “É considerada área indispensável à Segurança Nacional a faixa interna de 150 Km (cento e cinquenta quilômetros) de largura, paralela à linha divisória terrestre do território nacional, que será designada como Faixa de Fronteira”, além de admitir que “toda vez que existir interesse para a Segurança Nacional, a União poderá concorrer com o custo, ou parte deste, para a construção de obras públicas a cargo dos Municípios total ou parcialmente abrangidos pela Faixa de Fronteira” (art. 9º[5]).

Os órgãos federais encarregados da defesa nacional, da segurança pública, do controle aduaneiro e de inteligência tem bem exercido seus papéis no âmbito da missão institucional e da legislação regente de cada instituição.

Evidencia-se a importância da atuação legal e regimental de cada órgão público em faixa de fronteira, bem como na articulação de objetivos estratégicos, metas, planos de ações, e de resultados obtidos (qualidade e quantidade) de forma integrada.

O enaltecimento das parcerias interinstitucionais em região de fronteira depende do escorreito recrutamento e formação dos servidores públicos. Há que se buscar a importante habilidade social de trabalhar conjuntamente, para resolução de conflitos de forma natural e sem causa mal-estar, com respeito às individualidades, às culturas organizacionais e às atribuições de cada órgão. Não se deve descuidar de outro importante aspecto que é a formação profissional integrada de servidores públicos que atuam em fronteiras, por intermédio de cursos integrados que simulem a atuação simultânea e célere.

Há considerável impacto da parca integração e pouco empenho na atuação conjunta fronteiriça, sendo a mais clara a vulnerabilidade da segurança orgânica das instalações, da segurança pessoal dos servidores lotados em região de fronteiras, bem como da própria fronteira seca e marítima, em questões migratórias, de soberania e de entrada de drogas, armas e produtos contrabandeados.

O problema da integração da atuação de órgãos públicos em faixa de fronteira é antigo e, recentemente, foi objeto de solicitação de providências[6] pelo Tribunal de Contas da União (TCU):

AUDITORIA OPERACIONAL. AVALIAÇÃO DE GOVERNANÇA DE POLÍTICAS PÚBLICAS. FORTALECIMENTO DA FAIXA DE FRONTEIRA. ANÁLISE SISTÊMICA DAS OPORTUNIDADES DE MELHORIA CONSTATADAS. RECOMENDAÇÕES AOS ÓRGÃOS RESPONSÁVEIS.

No acórdão, destacaram-se os itens 55 e 56[7] da instrução procedida pela Secretaria de Controle Externo do estado do Mato Grosso do Sul (Secex/MS):

No campo da segurança houve avanços, haja vista a criação de mecanismos que incentivam a integração entre os órgãos, no âmbito do Plano Estratégico de Fronteiras.

Todavia, seja pela falta de cultura e experiência para realização de trabalhos conjuntos ou por obstáculos de ordem legal, política ou institucional, sequer foi elaborado um modelo de atuação coordenada, para uso diário e específico em operações, de forma a evitar lacunas e seguir critérios conhecidos e aprovados pelos envolvidos.

A auditoria operacional do TCU destacou pontos que convergem para um mantra repetido há anos por gestores e estudiosos da área de defesa nacional e de segurança pública, no sentido de que se deve buscar “primeiramente, aproximar os órgãos envolvidos e criar condições para o aperfeiçoamento dos processos de planejamento, execução e monitoramento das ações conjuntas” (p.47) e que os órgãos com atuação na fronteira devem estabelecer:

Uma rotina de procedimentos de compartilhamento de infraestrutura, equipamentos e informações, independente da relação pessoal entre servidores de agências distintas, fato que propiciará maior integração entre as agências, serviço de inteligência mais forte, abrangente e seguro, com resultados mais efetivos (p.61).

As vicissitudes de um mundo globalizado na era da informação não deixam qualquer espaço para disputa de espaços e conflitos orgânicos e nos levam a trabalhar focados numa palavra de ordem que é a “integração”.

A construção de um cenário em que as estruturas do serviço público brasileiro sejam consideradas como um único corpo, de emprego sistêmico, é essencial para complementar a atuação isolada de um ou mais órgãos.

4. O Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF)
Instituído no final do ano de 2016, pelo Decreto nº 8.903/16, o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF) foi criado para buscar o fortalecimento da prevenção, do controle, da fiscalização e da repressão aos delitos transfronteiriços e tem como diretrizes a cooperação e integração com os países vizinhos e a atuação conjunta e coordenada dos órgãos de segurança pública, dos órgãos de inteligência, aduana e defesa nacional.

O PPFIF substituiu o antigo Plano Estratégico de Fronteiras instituído pelo revogado Decreto nº 7.496/2011 e lhe compete promover uma série de medidas de integração:

I – ações conjuntas de integração federativa da União com os Estados e Municípios situados na faixa de fronteira, incluídas suas águas interiores, e na costa marítima;

II – ações conjuntas dos órgãos de segurança pública, federais e estaduais, da Secretaria da Receita Federal do Brasil e do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas;

III – compartilhamento de informações e ferramentas entre os órgãos de segurança pública, federais e estaduais, os órgãos de inteligência, a Secretaria da Receita Federal do Brasil e do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas;

IV – implementação de projetos estruturantes para o fortalecimento da presença estatal na região de fronteira;

V – integração com o Sistema Brasileiro de Inteligência – Sisbin; e

VI – ações de cooperação internacional com países vizinhos.

Percebe-se que há um forte discurso legal legitimador da integração dos atores públicos responsáveis pelas áreas de aduana, defesa nacional, inteligência, relações exteriores e segurança pública, amparado pelo legislador pátrio, por órgãos de controle e fiscalização, expertos, e gestores dos órgãos envolvidos.

Sabe-se que a integração dos órgãos públicos em faixa de fronteira é apenas uma das medidas necessárias para o fortalecimento da prevenção, do controle, da fiscalização e da repressão aos delitos transfronteiriços.

A importância dessa integração transcende a seara da segurança pública, pois é um inconteste catalisador de ações que envolvem questões de soberania, defesa nacional, proteção do patrimônio público e da população, desenvolvimento social, saúde e vigilância sanitária.

5. Considerações finais
O maior desafio para a integração dos órgãos públicos em faixa de fronteira e dos seus sistemas de informação é o fato de que os setores responsáveis pelo gerenciamento dos dados respectivos interagem aquém da necessidade, com resposta em velocidade menor do que a requerida diante do caos na segurança pública e de ameaças externas, inclusive terrorista, o que gera uma enorme quantidade de dados perdidos e pouco trabalhados.

Para aprimoramento dos sistemas de inteligência e de combate ao crime organizado, o Estado tem que promover o compartilhamento de dados com estabelecimento de canais formais de comunicação e seu respectivo fluxo, com adoção de protocolos integrados.

Neste contexto, o Programa de Proteção Integrada de Fronteiras (PPIF) apresenta-se como uma solução legislativa integracional apropriada para análise, avaliação, proposição e aplicação de medidas que ajam no problema de integração das instituições públicas em faixa de fronteira.

Com a identificação dos fatores que depõem contra a eficácia da atuação conjunta, torna-se factível o delineamento de propostas e ações corretivas que minimizem os entraves logísticos e humanos e os riscos em faixa de fronteira, e que potencializem os resultados no interesse público e maior da nação.

É incontestável e premente a maior interação entre os órgãos responsáveis pela defesa nacional, órgãos policiais e de segurança pública do Estado, com a comunicação em tempo real de possíveis ameaças ao Estado e neutralização de ações criminosas, bem como mitigação da exacerbada compartimentação e neutralização de ameaças externas e das investidas do crime organizado na região fronteiriça.


[1] Decreto nº 9.288, de 16/02/2018, que autorizou a intervenção federal, no estado do Rio de Janeiro, com o objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública até 31 de dezembro de 2018.
[2] Criada pelo Decreto nº 7.538/2011 e sucedida pela Secretaria Nacional de Segurança Pública, com o advento do Decreto nº 9.150, de 4/09/2017, que revogou o Decreto nº 8.668, de 11/02/2016.
[3] FERRO JÚNIOR, Celso Moreira; DANTAS, George Felipe de Lima. A descoberta e a análise de vínculos na complexidade da investigação criminal moderna. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1441, 12 jun. 2007. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/10002>. Acesso em: 17 abr. 2018.
[4] FERRO JÚNIOR, Celso Moreira. Inteligência organizacional, análise de vínculos e a investigação criminal: um estudo de caso na Polícia Civil do Distrito Federal. Dissertação apresentada no programa de pós-graduação em Gestão do Conhecimento e Tecnologia da Informação da Universidade Católica de Brasília. Brasília: UCB, 2007, 138 p.
[5] O auxílio financeiro para municípios da faixa de fronteira foi regulamentado pelos arts. 37 a 41 do Decreto nº 85.064, de 26/08/80).
[6] Acórdão nº 2252/2015, nas TC 014.387/2014-0 e TC 009.062/2015-7, nos quais foram analisados os seguintes componentes de governança: institucionalização, e planos e objetivos; participação, capacidade organizacional e recursos, e coordenação e coerência.
[7] TC 014.387/2014-0, peça 2014.

Autores

  • é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília, especialista em segurança pública e defesa social e professor da Academia Nacional de Polícia. Foi assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça e da Secretaria da Segurança Pública do Distrito Federal.

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