Diário de Classe

A Defensoria como player garantidor do contraditório e da ampla defesa

Autores

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • Jorge Bheron Rocha

    é defensor público do estado do Ceará professor mestre em Ciência Jurídico Criminais pela Universidade de Coimbra e doutorando pela Universidade de Fortaleza.

14 de outubro de 2017, 8h00

O Ministério Público tem assento cativo ao lado do corpo de julgadores dos tribunais (STF, STJ, TRFs e TJs) e é intimado para falar em todos os autos criminais que ali tramitem, sendo aguardada sua manifestação mesmo quando o prazo não é observado, ao que se chama na doutrina tradicional de “prazo impróprio”.

Essa “possibilidade de o Parquet se manifestar duas vezes no mesmo processo coloca a defesa em situação de desvantagem, quebrando a (não só desejável, mas indispensável) paridade de armas entre as partes, gerando uma vulnerabilidade jurídica que, na ambiência de um Estado Democrático de Direito em que o processo penal se rege pelo sistema acusatório, precisa ser sanada dentro dos limites e com os instrumentos postos pelo próprio ordenamento jurídico, em solução constitucionalmente consonante”[1].

Não obstante o Ministério Público em segundo grau se intitule fiscal da lei e aja sob o manto da função que se convencionou chamar de custos juris, trata-se de uma instituição com estruturas que influenciam seus próprios membros e que leva adiante a própria acusação, tendo como princípios a indivisibilidade e a unidade. Ao promover a denúncia, o parquet deduz uma afirmação que tem a presunção de justa causa, ou seja, reveste-se de verossimilhança que, entretanto, deverá ser cabalmente demonstrada com informações válidas, através do mecanismo democrático que consiste o processo penal, cuja finalidade é a verificação da confirmação ou falsidade da acusação.

Já à defesa incumbe “buscar novas linhas narrativas deve se dar pela possibilidade de diversificar o que está contido na indução acusatória”[2], e, conforme Ferrajoli, é sua missão garantir o amplo exercício do direito público de refutação da pretensão acusatória e de elaborar contraprovas aos fatos que lhe são imputados[3].

O “Processo Penal, assim, acontecerá a partir de jogadores em sentido amplo (juízes, promotores, procuradores, advogados, acusados, assistentes, mídia, família etc.), que estabelecerão o sentido das regras aplicáveis, especialmente pelo juiz, apurando-se as recompensas de cada um dos intervenientes (satisfação, dever cumprido, menos trabalho, conforto etc.) e somente então, em seu caráter dinâmico, as táticas e estratégias”[4].

Exige-se, assim, para a consecução plena do princípio do contraditório, que exista uma real, substancial e efetiva igualdade de tratamento entre as posições assumidas pela acusação e pela defesa durante todas as fases do processo penal, o que inclui, sem qualquer dúvida, o julgamento perante os órgãos colegiados.

No entanto, é muito comum que os julgamentos dos processos penais ocorridos no âmbito dos sodalícios — nomeadamente recursos e e Habeas Corpus — aconteçam sem a participação efetiva da defesa, tendo em vista as dificuldades que envolvem a presença do defensor privado, que precisa se deslocar até a sede do tribunal (ou por videoconferência) para poder fazer valer seu direito de ser ouvido por último, incrementando os custos da defesa eficaz de direitos de seu representado.

Para garantia mínima da equivalência de forças, surge a possibilidade de que, em casos cuja defesa seja patrocinada por defensor dativo ou mesmo por advogado constituído, diante de sua impossibilidade de comparecer ao julgamento perante os tribunais, em razão principalmente da vulnerabilidade econômico-geográfica, a Defensoria Pública possa ser acionada para, com assento nos respectivos colegiados, efetivar a paridade de armas argumentativas.

Afinal, a Defensoria Pública é, como expressão e instrumento do regime democrático, constitucionalmente responsável pela promoção dos direitos humanos (artigo 134, caput, CRFB), objetivando a proteção dos valores fundamentais que facultem o desenvolvimento pleno de cada pessoa[5], em especial dos necessitados (artigo 5º, LXXIV, CRFB), fazendo cumprir o objetivo de redução das desigualdades e erradicação da pobreza (artigo 3º, III, CRFB), garantindo a todos o acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV, CRFB), como forma de construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3º, I, CRFB), independentemente de origem, cor, raça, posição social, gênero ou orientação sexual, convicção filosófica, política ou religiosa e idades, dentre outros (artigo 3º, IV, CRFB)[6].

É evidente que, se não houver a plena possibilidade de que as razões sejam problematizadas por ambas as partes, a desvantagem da defesa se configure. Logo, algumas possibilidades de atuação podem ser tomadas, afim de que a Defensoria Pública — custos vulnerabilis[7] — compareça ao julgamento para mitigação dessa disparidade: (i) o advogado (constituído ou dativo) esclarece a circunstância de sua impossibilidade de comparecimento perante o tribunal em razão da vulnerabilidade (jurídica, econômica, social, organizacional, geográfica, circunstancia[8]) na petição, requerendo a intimação da instituição; (ii) o relator do processo, ante a verificação da vulnerabilidade do acusado, intima a instituição; (iii) o Ministério Público, custos juris, ao verificar a ocorrência da vulnerabilidade, manifesta-se, em seu parecer, pela intimação da Defensoria: (iv) a própria Defensoria Pública, de ofício ou a requerimento direto do interessado, se manifesta no processo requerendo sua intimação para acompanhar o feito.

A atuação da Defensoria Pública nessas hipóteses atende ao bem comum e aos fins sociais que determinaram pelo constituinte originário a criação de uma instituição voltada para a promoção dos direitos humanos e da assistência jurídica integral e gratuita, para a concretização da ampla defesa e de um contraditório substancial destinados à efetiva influência na decisão judicial, como corolários da garantia do acesso à ordem jurídica justa.

Pensar o contrário é manter a lógica autoritária pró-acusação.

Ademais, a Defensoria Pública apresenta vantagens organizacionais ao demandar, seja pela sua habitualidade de demandar junto aos tribunais, seja pela maior experiência na utilização de estratégias já testadas anteriormente, com determinados casos, de modo a garantir expectativa mais favorável em relação a casos futuros, seja pela oportunidade de desenvolver relações informais com os demais jogadores processuais[9], nomeadamente com o julgador que deve ser convencido, afinal importa saber “como ele pensa, quais seus autores prediletos e quais suas recompensas no contexto proposto — que podem ser da ordem de tempo, prestígio, aprovação de diversos outros atores ou instâncias, ideológicas, e até mesmo religiosas. Trata-se de verdadeiros hábitos mentais, percursos percorridos conforme aquelas premissas conscientes e inconscientes”[10].

A Defensoria Pública, como expressão e instrumento do regime democrático, deve assumir o mandamento constitucional, para transformar o processo unilateral em mecanismo dialético por oportunidade do julgamento e, assim, possibilite a paridade de armas entre os papéis de acusação, levada a termo pelo Ministério Público parte, e a defesa patrocinada pela advocacia privada, a fim de se obter o republicano equilíbrio entre os interesses da sociedade — Ministério Público Custos Juris e os interesses do indivíduo — Defensoria Pública Custos Vulnerabilis[11].


[1] ROCHA, Jorge Bheron. https://www.conjur.com.br/2017-ago-29/tribuna-defensoria-atuacao-defensoria-complementaridade-advocacia-privada
[2] MORAIS DA ROSA, Alexandre. https://www.conjur.com.br/2017-mar-31/limite-penal-entendercomo-funciona-jogo-processual-decisivo
[3] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão – Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais. 4ª Ed. 2014 . p. 144.
[4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. http://www.abracrim.adv.br/2016/12/08/para-entender-os-jogos-de-linguagem-no-processo-penal-por-alexandre-morais-da-rosa.
[5] ESTEVES, Diogo, SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios Institucionais da Defensoria Pública. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 356.
[6] ROCHA, Jorge Bheron. O Histórico do Arcabouço Normativo da Defensoria Pública: da Assistência Judiciária à Assistência Defensorial Internacional. In: Os Novos Atores da Justiça Penal. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2016, p. 266.
[7] Diferencia-se o atuar como custos vulnerabilis daquele efetivado como amicus curiae, porque neste a Defensoria Pública atua como amigo da corte, possui restrição recursal aos embargos de declaração e necessita comprovar a repercussão social da controvérsia, enquanto que, naquela, trata-se de atuação em prol do vulnerável, sendo também cabível interpor todo e qualquer recurso (até porque, muitas vezes, a própria instituição poderia ter ajuizado a demanda em nome próprio, como nos casos de ações civis públicas ou Habeas Corpus) e, ainda, porque a demanda pode ter cunho exclusivamente individual, relacionado à dignidade humana e aos direitos fundamentais da pessoa. In http://www.conjur.com.br/2017-mai-23/tribuna-defensoria-defensoria-custos-vulnerabilis-advocacia-privada
[8] TARTUCE, Fernanda. Igualdade e Vulnerabilidade no Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense. 2012. p. 237-238.
[9] CAPELLETTI, MAURO; GARTH, BRYANT. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Grace Northfleeet. Sergio Antonio Fabris Editor. 1988. Pag 21.
[10] MORAIS DA ROSA, Alexandre. https://www.conjur.com.br/2017-mar-17/limite-penal-inverter-linearidade-acusatoria-plot-point-interacao-narrativa
[11] ROCHA, Jorge Bheron. https://www.conjur.com.br/2017-ago-29/tribuna-defensoria-atuacao-defensoria-complementaridade-advocacia-privada

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

  • é defensor público do estado do Ceará, professor de Penal e Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sócio-fundador do Instituto Latino Americano de Estudos sobre Direito, Política e Democracia (ILAEDPD) e membro da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep) e da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).

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