Observatório Constitucional

STF exerce influência decisiva no sistema tributário, mas nem sempre positiva

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4 de novembro de 2017, 10h00

Spacca
Especificamente quanto à concretização dos direitos fundamentais, poucas atividades do Estado são tão relevantes como a prestação jurisdicional. De fato, a proteção judicial efetiva e a independência judicial revelam-se determinantes na concretização de direitos fundamentais,[1] uma vez que o mais extenso rol de direitos e garantias previstos na Constituição poderia ter mero caráter simbólico na ausência de meios e formas de serem exigidos pelos cidadãos. É clássica a exposição de Ferrara no sentido de que o magistrado é o responsável último por traduzir o comando abstrato na disposição concreta que afeta as relações particulares, ou seja, “o juiz é o intermediário entre a norma e a vida”.[2]

Além disso, nosso sistema constitucional tributário está impregnado de expressões flexíveis e disposições gerais, vagas e plásticas, cuja consistência é definida e precisada pelo Judiciário no momento da aplicação de cada norma.[3] Considerando esta como resultado da interpretação dos textos normativos,[4] ou, nas palavras de Peter Häberle,[5] tendo em vista que não existe norma jurídica, apenas existe norma jurídica interpretada (“Es gibt keine Rechtsnormen, es gibt nur interpretierte Rechtsnormen”), a aplicação dos dispositivos constitucionais pelo Poder Judiciário é ponto indispensável para averiguar sua densidade normativa.

É certo que o protagonismo do Judiciário tem levantado inquietações pertinentes,[6] fundadas na desconfiança dos juízes e em clássicas advertências, como a de Edouard Lambert,[7] a respeito do governo de juízes (gouvernement des juges), ante a identificação dos magistrados com elementos antidemocráticos e conservadores, a ponto de utilizar o tratamento pejorativo de “aristocracia de toga” (l’aristocratie de la robe), e de René Marcic,[8] que identificava a transformação do Estado de Direito para Estado de Juízes (Vom Gesetzesstaat zum Richterstaat).

Registre-se que a concretização dos direitos fundamentais não se confunde com a decisão em prol do contribuinte. Não se olvide que o Estado moderno é essencialmente um Estado Financeiro (Finanzstaat), porque necessita de recursos públicos para realizar quaisquer atividades, inclusive a efetivação dos direitos fundamentais, especialmente quando caracterizados como direitos a prestações materiais. O dever fundamental de pagar impostos constitui, por sua vez, a contribuição financeira indispensável para suporte do Estado exigida constitucionalmente de todos os membros da comunidade na medida de suas capacidades. Os tributos, em especial os impostos, têm relevantíssima missão constitucional: possibilitar o custeio dos direitos fundamentais.

Assim, a tributação se relaciona com os direitos fundamentais em razão das garantias do contribuinte, bem como do seu importante papel no financiamento de todas as atividades do Estado, inclusive na promoção e concretização dos direitos fundamentais.

Nesse contexto, questiona-se se a jurisprudência do STF tem contribuído, ou não, com a concretização dos direitos fundamentais ao interpretar e aplicar as normas do sistema constitucional tributário.

Na vigência da CF/1988, é preciso registrar que o STF foi prudente e responsável ao declarar a inconstitucionalidade de parte de, pelo menos, três emendas constitucionais que tratavam do sistema tributário nacional (EC 3/1993; EC 10/1996 e EC 41/2003) e ao reconhecer com severidade a violação de cláusulas pétreas. No caso da EC 3/1993,[9] o STF reconheceu a possibilidade de criação de novo tributo, mas não menosprezou garantias fundamentais como a prevalência da anterioridade e a manutenção das imunidades. Nesses casos, adequou-se perfeitamente ao Estado Fiscal, ao adotar postura cautelosa, fundada na proteção de direitos dos contribuintes e na liberdade de instituição de novas competências de tributos não vinculados. [10]

O controle de constitucionalidade de normas gerais e normas instituidoras revelou fecundo campo de debate institucional entre o STF e o Congresso Nacional e atribuiu amplo conteúdo pedagógico às decisões judiciais, orientando a edição de leis mais adequadas aos comandos constitucionais, principalmente em proteção dos contribuintes.

No entanto, a demora em apreciar leading cases, dado o número de pedidos de vista e a mudança de composição, bem como a oscilação da jurisprudência prejudicaram bastante o papel do STF de dar segurança jurídica a contribuintes e autoridades tributárias, o que, de certa forma, tem sido amenizado pelo emprego de técnicas de decisão, como a modulação de efeitos.

Às limitações formais ao poder de tributar tem sido conferida ampla força normativa pelo STF em prestígio da segurança jurídica e do Estado Fiscal. Por outro lado, a Corte tem aplicado com cautela as limitações materiais ao poder de tributar, evitando estender isenções, nos casos de omissão parcial ou dar limites mais objetivos aos efeitos confiscatórios, principalmente com relação aos impostos.

De forma geral e em regra, o STF tem mantido perfil extremamente institucional, procurando posições intermediárias e “soluções salomônicas” que privilegiam o Estado Fiscal e a concretização dos direitos fundamentais, tanto pela proteção do contribuinte quanto pela higidez do sistema – de modo a permitir a União, estados e municípios arrecadar, principalmente por meio de impostos, os recursos necessários para a implementação dos direitos fundamentais.

O tribunal teve acórdãos memoráveis e paradigmas que mudaram o panorama do direito tributário e, até, do controle de constitucionalidade no País, como (i) a ADI 939/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 18.3.1994, primeira vez em que o STF declarou a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, para considerar como cláusulas pétreas garantias individuais dos contribuintes e imunidades; (ii) a ADI 3.105/DF, Red. para o acórdão Min. Cezar Peluso, Pleno, DJ 18.2.2005, em que proferida decisão demolitória com efeitos aditivos para manter isonomia quanto ao mínimo existencial dos inativos do serviço público em paridade com os filiados ao RGPS, ao mesmo tempo em que se validou a instituição de nova competência tributária essencial para o equilíbrio financeiro do Estado Fiscal; e (iii) a ADI-MC 2.247/DF, Rel. Min. Ilmar Galvão, Pleno, DJ 10.11.2000, que, apesar de sucinto, examinou e reconheceu a violação da legalidade tributária sob os aspectos formal (edição de mera portaria para instituir taxa) e material, rejeitando a vagueza e imprecisão das especificações da hipótese de incidência da regra matriz da taxa.

Infelizmente, isso não significa que a corte não tenha tido momentos problemáticos no exercício de suas importantes atribuições, seja pela demora em pacificar importantes controvérsias, seja pela ausência de clareza na decisão, muitas vezes como resultado da dispersão dos votos no Tribunal. Com efeito, exemplo desse fenômeno é a ADI 2.588/DF,[11] cujo julgamento durou mais de dez anos e o resultado proclamado deixa dúvidas até hoje. No caso, debatia-se a constitucionalidade do artigo 74 da MP 2.158-35/2001, que tributava os lucros auferidos por coligadas e controladas sediadas no exterior. No meio da discussão, o local da sede das empresas – se paraíso fiscal ou não – é adotado como critério para definição da constitucionalidade do dispositivo. Ao final, havia seis votos pela constitucionalidade da tributação no caso de controladas sediadas em paraíso fiscal e seis pela inconstitucionalidade no caso de coligadas sediadas fora de paraíso fiscal, sem definição sobre a incidência do tributo nos demais casos. Apenas com a edição da Lei 12.973/2014 a questão passou a ganhar algum tratamento sistematizado.

Além disso, apesar dos esforços da corte, ainda são comuns as declarações de inconstitucionalidades de leis tributárias revogadas ou vigentes há mais de uma década, como exemplo do caso do Funrural, no RE 363.852/MG,[12] em que lei tributária de 1992 foi apenas em 2010 reconhecida como inconstitucional.

De fato, o STF tem exercido influência decisiva no desenho e no funcionamento do sistema constitucional tributário, mantendo papel fundamentalmente institucional na apreciação das questões constitucionais e na concretização dos direitos fundamentais. Todavia, essa influência nem sempre é positiva, principalmente na demora em pacificar as controvérsias tributárias. Cada vez mais, o papel institucional do STF será desafiado por novas e inevitáveis controvérsias judiciais.

 


[1] MENDES, Gilmar Ferreira. “Proteção judicial efetiva dos direitos fundamentais”. In: LEITE, George Salomão; & SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos Fundamentais e Estado Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 372 (374).

[2] FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. 4. ed. Tradução de Manuel A. Domingues de Andrade. Coimbra: Arménio Amado, 1987,. p. 111.

[3] A propósito, cf. ANDRADE, Manuel Augusto Domingues de. Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis. 4. ed. Coimbra: Arménio Amado, 1987. p. 47.

[4] GRAU, Eros Roberto. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. p. 289.

[5] HÄBERLE, Peter. “Zeit und Verfassung” In DREIER, Ralf & SCHWEGMANN, Friedrich (org.). Probleme der Verfassungsinterpretation. Nomos: Baden-Baden, 1976. p. 293 (312).

[6] Entre tantos, a propósito, cf. GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos Juízes (a interpretação/aplicação do direito e os princípios). 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2013. RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010.

[7] LAMBERT, Edouard. Les Gouvernement des Juges et La Lutte contre la Législation Sociale aux États-Unis. Paris: Marcel Giard, 1921.

[8] MARCIC, René. Vom Gesetzesstaat zum Richterstaat. Wien: Springer-Verlag, 1957.

[9] ADI 939/DF, Rel. Min. Sydney Sanches, Pleno, DJ 18.3.1994

[10] Esses e outros precedentes são analisados de forma mais aprofundada e pormenorizada em FUCK, Luciano Felício. Estado Fiscal e Supremo Tribunal Federal. São Paulo: Saraiva, 2017.

[11] Red. para o acórdão Min. Joaquim Barbosa, Pleno, DJe 11.2.2014.

[12] Rel. Min. Marco Aurélio, Pleno, DJe 23.4.2010.

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  • Brave

    é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público, doutor em Direito pela Universidade de São Paulo, mestre pela Ludwig-Maximilians-Universität de Munique (Alemanha) e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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