Direito Civil Atual

Responsabilidade civil do Estado por crime praticado por fugitivo (parte 2)

Autor

  • Guilherme Henrique Lima Reinig

    é professor adjunto da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e advogado sócio da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

3 de julho de 2017, 8h01

O Supremo Tribunal Federal oferece uma rica casuística acerca do problema da responsabilidade civil do Estado na hipótese de crime praticado por fugitivo, como foi exposto na primeira parte deste artigo. O tema voltará a ser debatido por ocasião do julgamento Recurso Extraordinário 608.880, oportunidade na qual a corte deverá solucionar algumas dúvidas e incertezas relativas à sua própria jurisprudência. O objetivo desta segunda parte é contribuir com essa tarefa.

A nosso ver, nem a ocorrência de fugas reiteradas nem o fato de o crime haver sido cometido sem a concorrência de outros criminosos justifica, por si, a responsabilização do Estado.

Apesar de os julgados mais recentes apontarem no sentido contrário, a manutenção da orientação inicial do STF, iniciada com o RE 130.764, deveria ser reafirmada. Ela oferece uma solução adequada ao problema.

A reiteração de fugas, embora traduza uma acentuada ineficiência do Poder Público, não justifica, em si, a responsabilização. A falha do Estado, ainda que frequente, lamentável e grave, consiste num problema de natureza coletiva que afeta a todos genérica e indistintamente. Portanto, não se legitima uma dispersão social do risco concretizado mediante a concessão de indenização à vítima, para o que é necessário um critério de imputação mais específico.

Caso contrário, haveria uma responsabilização irrestrita e sem limites, de sorte que não seria possível, por exemplo, negar indenização à vítima na hipótese, muito frequente, de demora na captura de condenado primário que ainda não fora conduzido ao estabelecimento prisional. Haveria responsabilização até mesmo quando comprovado que o Poder Público simplesmente falhou em sua missão de ressocialização, não obstante o integral cumprimento da pena.

Utilizando a formulação da teoria do escopo (de proteção) da norma,[1] defendida, no Brasil, por Fernando Noronha[2] e por Patrícia Faga Iglecias Lemos[3], poder-se-ia afirmar que, nessas situações, não há a concretização do risco que a norma visa a evitar. Não há dever de indenizar se o fugitivo comete o delito anos após a evasão, ou mesmo se, por ocasião da fuga, rouba um buquê de rosas de um florista, pensando no reencontro com a namorada; o ato não facilitou a fuga nem era necessário à sua realização, e estas condutas não são as que a norma de vigilância violada visa a evitar. Todavia, o Estado responde se o fugitivo invade a casa da vítima para se esconder de agentes penitenciários que o perseguem ou se furta veículo para utilizá-lo na fuga.

A dificuldade de compreender essa limitação resulta, em grande medida, da linguagem empregada pelo STF. É metafórico afirmar que houve ou não “ruptura do nexo de causalidade”, recomendando-se o abandono de tal expressão. Ela induz a um erro: pensar que o problema aqui tratado é resolvido com critérios puramente “naturalistas”, quando, em verdade, é necessária uma orientação que conduza as cortes a revelarem as verdadeiras razões de suas decisões.[4]

Todavia, isso não significa que a causalidade deixou de ser um elemento da responsabilidade civil. Essa ressalva é importante, evitando-se o grave risco de que critérios úteis a uma melhor concretização e especificação dos argumentos jurídicos sejam indevidamente empregados como “fórmulas vazias”. Com efeito, como leciona Otavio Luiz Rodrigues Junior, a responsabilidade civil no direito brasileiro tem recebido contribuições que enfatizam a flexibilização de seus elementos, especialmente o da causalidade.

O autor destaca, dentre outros aspectos, que, “em países pobres, o sancionamento de ilícitos delituais converteu-se, para além de sua função estritamente jurídica, em uma resposta involuntária do sistema jurídico a toda uma sorte de deficiências regulatórias na prestação de serviços públicos e privados”.[5]

Nesse contexto, o elemento da causalidade é muitas vezes considerado um obstáculo à funcionalização da responsabilidade civil, perspectiva que pode conduzir a um “método de imputação de responsabilidade por presunção”, notadamente, conforme a crítica de Otavio Luiz Rodrigues Junior, naquelas situações em que se invoca a ideia de nexo causal probabilístico.[6]

Em verdade, porém, tanto a teoria da causalidade adequada, a qual, segundo Karl Larenz, em obra pioneira sobre a imputação objetiva, “não se deixa fundamentar como uma teoria da causalidade, mas como uma teoria da imputação”,[7] quanto a teoria do escopo da norma objetivam “restringir” o critério da equivalência das condições. Destarte, a causalidade “natural” não é substituída, mas complementada por outros critérios de imputação.

Aplicando essas premissas ao problema da responsabilidade do Estado por crime praticado por fugitivo, verifica-se, inicialmente, se a omissão é conditio sine qua non da lesão sofrida pela vítima, para, em seguida, definir-se a natureza do risco concretizado. A fim de que não se transbordem os limites do sentido e do alcance do direito da responsabilidade civil ou, mais especificamente, da norma que impõe o dever do Estado de custodia dos encarcerados, em princípio o Estado somente responde se a reiteração da fuga ou a demora na recaptura implicar elevação de um risco específico, não sendo suficiente o risco genérico de ser vítima de crime praticado por fugitivo de estabelecimento penitenciário.

Dessa forma, como regra geral somente devem ser imputados os crimes praticados no contexto da fuga. A reiteração de evasões não justifica, por sua vez, a responsabilização, o que, todavia, não impede que outros critérios sejam levados em consideração.

Cite-se, como exemplo, a solução adotada no RE 136.247, no qual o STF reconheceu a responsabilidade do Estado por crimes cometidos por fugitivo condenado por homicídio.[8]

Além da “imediação temporal”, o acórdão destacou que os delitos e a própria fuga foram premeditados e motivados por vingança. Nesse sentido, assinalou que o criminoso não fugiu para longe; o seu intento principal não era escapar do Poder Público, mas executar um plano de vingança contra o advogado que atuara em sua acusação e também contra outras pessoas, como o seu sogro e os superiores hierárquicos da empresa da qual fora demitido.

Todavia, ao contrário do afirmado no acórdão do RE 136.247, não se trata de qualificar os homicídios praticados após a fuga como resultantes ou não de “concausas sucessivas”.[9] O decisivo é a especificidade do risco concretizado: os delitos não foram simplesmente possibilitados pela fuga; resultaram de plano de vingança cuja execução motivou a própria fuga. Eis a razão para a responsabilização.

Como visto acima, o STF também decidiu pela responsabilização no RE 409.203. A decisão indica uma possível tendência de ampliação da responsabilização para os casos de reiteração de fugas. Entretanto, é preciso observar que não houve, propriamente, evasão.

O apenado estava no regime aberto e, por diversas vezes, não retornara à noite ao estabelecimento prisional, sem que fosse tomada qualquer providência. O estupro foi praticado numa dessas ocasiões, podendo-se presumir que não se tratava exatamente de um fugitivo, mas de um apenado que, por omissão do Estado, continuava a realizar sua atividade delituosa durante o seu período de custódia.

Como se verifica, a casuística do STF acerca de crimes praticados por fugitivos é muito rica. O RE 130.764 estabeleceu as bases para uma jurisprudência coerente, mas que, em razão das decisões mais recentes, precisa ser reafirmada, sendo o julgamento do RE 608.880 uma excelente oportunidade para isso.

* Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).

 


[1] Sobre a teoria cf. REINIG, Guilherme Henrique Lima. O problema da causalidade na responsabilidade civil: a teoria do escopo de proteção da norma (Schutzzwecktheorie) e sua aplicabilidade no direito civil brasileiro. Tese (Doutorado) – Faculdade de Direito da USP, 2015.

[2] Direito das obrigações, 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 639 e ss.

[3] Meio ambiente e responsabilidade civil do proprietário: análise do nexo causal, 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 151 e ss.

[4] De fato, o critério da proximidade ou o da relação direta ou indireta da fuga com a lesão sofrida pela vítima também não oferecem uma clara orientação para a decisão Sobre a teoria do dano direto e imediato cf. nosso artigo aceito para a publicação na Revista de Direito Civil Contemporâneo, cujo título é “A teoria do dano direto e imediato no direito civil brasileiro: análise crítica da doutrina e comentários à jurisprudência do STF sobre a responsabilidade civil do Estado por crime praticado por fugitivo”.

[5] Nexo causal probabilístico: elementos para a crítica de um conceito. Revista de Direito Civil Contemporâneo, vol. 8, ano 3, p. 115-137, jul.-set. 2016, p. 116.

[6] Ibidem, p. 124.

[7] Cf. LARENZ, Karl. Hegels Zurechnungslehre und der Begriff der objektiven Zurechnung: ein Beitrag zur Rechtsphilosophie des kritischen Idealismus und zur Lehre von der “juristischen Kausalität”. Lucka i. Th.: Reinhold Berger, 1927, p. 81 e ss:“[d]ie ‘Theorie der adäquaten Verursachung’ lässt sich so nicht als Kausalitätstheorie, wohl aber als Zurechnungstheorie begründen”

[8] STF, 1ª T., RE 136.247, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 20/06/2000, DJ de 18/08/2000, p. 798.

[9] No julgado é afirmado que “entre [a evasão] – que a instância ordinária reputou imputável à negligência da guarda penitenciária – e os delitos que, dada a predisposição do fugitivo, constituíram desdobramento natural da evasão, não há falar de concausas sucessivas, sequer relativa”.

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