Direito Civil Atual

Responsabilidade civil do Estado por crime praticado por fugitivo (parte 1)

Autor

  • Guilherme Henrique Lima Reinig

    é professor adjunto da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e advogado sócio da Menezes Niebuhr Sociedade de Advogados. Membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

26 de junho de 2017, 10h47

“As perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato”. A previsão, reproduzida no art. 403 do Código Civil de 2002, encontrava-se no art. 1.060 do Código Civil de 1916, dispositivo este invocado pelo STF no Recurso Extraordinário 130.764, julgado em 1992, para concluir que “a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal”.[1]

O aresto versava sobre a responsabilidade civil do Estado por crime praticado por fugitivo. Trata-se de uma decisão paradigmática, o que se deve não apenas ao profundo saber jurídico de seu relator, o ministro Moreira Alves, mas também ao interesse teórico que a questão desperta e à relevância prática desta ante a precariedade do sistema penitenciário brasileiro. Além disso, a atualidade dessa discussão jurídica é confirmada pelo fato de o STF haver reconhecido a sua repercussão geral no RE 608.880, relativo a um caso de latrocínio cometido por fugitivo alguns meses após a sua evasão, contando o criminoso com histórico de reiteradas fugas seguidas da prática de delitos.[2]

O RE 130.764 cuidava de pedido de indenização formulado em face do estado do Paraná. Um grupo composto por oito criminosos assaltou a residência dos autores e, em seguida, o seu estabelecimento comercial. Dentre os integrantes da quadrilha, um escapara de penitenciária estadual havia 21 meses. O fugitivo era de elevada periculosidade, mas não fora devidamente vigiado ao ser transferido a um hospital para tratamento de saúde. O Tribunal de Justiça do Estado do Paraná reconheceu a “falha na missão de guarda do preso” e sua relação direta como os prejuízos demonstrados pelos autores, destacando, quanto a esse aspecto, que o fugitivo agira na “qualidade de mentor, líder ou chefe do bando”.

O STF deu provimento ao Recurso Extraordinário com base na ausência de nexo de causalidade entre a omissão atribuída ao Estado e o dano sofrido pelos autores. Com apoio nas lições de Wilson de Melo da Silva e de Agostinho Alvim, o ministro Moreira Alves entendeu ser a teoria do dano direto e imediato, “também denominada de teoria da interrupção do nexo causal”, a adotada no ordenamento pátrio, e decidiu que o dano “resultou de concausas, como a formação da quadrilha, e o assalto ocorrido cerca de vinte e um meses após a evasão”, no que foi acompanhado pelos demais ministros.[3]

A solução adotada recebeu o apoio de importantes doutrinadores, como, por exemplo, Gustavo Tepedino. Para ele, a causa indireta, qual seja, a omissão do Estado, não se vincula ao resultado lesivo por um liame de necessariedade. Ainda de acordo com Gustavo Tepedino, “outros fatos contribuíram para o assalto, interrompendo o nexo de causalidade em relação à fuga dos detentos”; e mesmo que se cuidasse de cadeia causal necessária, “a interferência de inúmeras causas relevantes mais próximas, em conexão direta com o dano, imporiam a isenção de responsabilidade do Estado réu”, arremata o jurista.[4]

Essa solução foi repetida em outras decisões do STF. No RE 172.025, o tribunal afastou a responsabilidade do Estado por latrocínio praticado por foragido meses após a sua fuga.[5] No RE 369.820, decidiu que o Estado não responde por latrocínio praticado por fugitivo quatro meses após a sua evasão e em coautoria com outras três pessoas não foragidas.[6]

Todavia, o STF nem sempre indica as circunstâncias decisivas para não responsabilizar o Estado, ensejando insegurança quanto à orientação jurisprudencial.

Por exemplo, no AgRg no AI 463.531 não fica claro se o roubo praticado foi realizado “dentro dos contornos da fuga”, como alegado pelos autores da ação. De fato, a fundamentação deste julgado é concisa, cingindo-se à referência a precedentes.[7]

O cenário jurisprudencial revela-se ainda mais complexo em razão da existência de alguns arestos, mais recentes, no sentido da responsabilização do Estado.

No RE 409.203, oriundo do Rio Grande do Sul, decidiu-se, por maioria, haver responsabilidade por estupro cometido por fugitivo.[8] O voto vencedor demonstra acentuada cautela quanto à diferenciação das circunstâncias desse litígio em relação aos enfrentados nos julgados citados acima: “Na maioria dos casos em que é afastada a responsabilidade estatal, há sempre um elemento sutil a descaracterizar a causalidade direta: ora o elemento tempo, ora a circunstância de ter sido o crime praticado por condenado fugitivo em parceria com outros delinquentes fugitivos”.

O criminoso encontrava-se submetido ao regime aberto, mas à noite não retornou à prisão, quando, então, invadiu a casa das vítimas, exigindo-lhes dinheiro. Não atendido em sua exigência, passou a ameaçá-las, terminando por estuprar uma criança de 12 anos de idade.

Após consignar que o apenado encontrava-se “em situação de fuga”, o STF entendeu que o nexo de causalidade seria “patente”: “Se a lei de execução penal houvesse sido aplicada com um mínimo de rigor, o condenado dificilmente teria continuado a cumprir a pena nas mesmas condições que originalmente lhe foram impostas. Por via de consequência, não teria tido a oportunidade de evadir-se pela oitava vez e cometer o bárbaro crime que cometeu, num horário em que deveria estar recolhido ao presídio”.

Não fica claro, todavia, se a circunstância das reiteradas evasões, sem alteração do regime prisional, foi determinante para a responsabilização, pois foi registrado no acórdão que o apenado estava “em situação de fuga”, o que também consta na ementa do acórdão recorrido.

Portanto, ao menos em princípio poder-se-ia supor que, isoladamente, essa circunstância não justificaria a responsabilização. No entanto, no AgRg no RE 573.595, também oriundo do Rio Grande do Sul, o STF citou o RE 409.203 para responsabilizar o Estado por latrocínio cometido por fugitivo após terceira fuga.

A decisão do agravo regimental também leva em consideração a inércia das autoridades policiais e o curto espaço de tempo (25 dias) entre a evasão e o crime. Diferentemente, entretanto, do ocorrido no RE 409.203, dessa vez fica evidente que o delito não foi praticado no contexto da fuga.[9]

No entanto, seria precipitado concluir por uma alteração da jurisprudência do STF. Com efeito, não se constata uma transposição argumentativa segura e consciente entre o RE 409.203 e o AgRg no RE 573.595, pois este aresto invoca o primeiro como fundamento sem, todavia, deixar claro que no RE 409.203 o crime havia sido praticado “em situação de fuga”.

Espera-se, portanto, que a dúvida seja afastada com o julgamento do RE 608.880, cuja repercussão geral foi reconhecida pelo STF, como apontado acima. Também seria importante que, nessa mesma decisão, fosse esclarecido se o fato de o crime ser cometido sem a concorrência de outros criminosos consiste num fator suficiente para a responsabilização do Estado, ainda que o delito não se realize no contexto da fuga. Na segunda parte deste artigo serão feitas algumas considerações teóricas objetivando contribuir com o aprimoramento da jurisprudência do STF sobre o tema.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFBA e UFMT).


[1] STF, 1ª T., RE 130.764, Rel. Min. Moreira Alves, j. em 12/05/1992, DJ de 07/08/1992.
[2] STF, Repercussão Geral no Recurso Extraordinário 608.880, Rel. Min. Marco Aurélio, j. em 03/02/2011, DJe de 17/09/2013. A decisão recorrida é do Tribunal de Justiça de Mato Grosso: 3ª Câm. Cível, Ap. 24267/2009, Rel. Des. Evandro Stábile, j. em 17/08/2009, DJE de 27/08/2009.
[3] O caso voltou a ser apreciado pelo STF em ação rescisória ajuizada pelos autores, os quais alegavam, segundo relatório do acórdão que a julgou, afronta ao art. 5º, LV, da Constituição Federal, pois não lhes foi dada oportunidade para demonstrar nos autos que “não apenas um, mas a maioria dos assaltantes era de foragidos do sistema penitenciário do Estado do Paraná”. O STF entendeu pela inocorrência de erro de fato, não se verificando no acórdão qualquer desenvolvimento específico quanto à questão da causalidade. Cf. STF, Tribunal Pleno, AR 1.376, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 09/11/2005, DJ de 22/09/2006, p. 28.
[4] Notas sobre o nexo de causalidade, p. 80-81. In: Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. t. II, p. 63-81. No mesmo sentido cf. TEPEDINO, Gustavo. Nexo de causalidade: conceito, teorias e aplicação da jurisprudência brasileira, p. 115. In: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; MAMEDE, Gladston; ROCHA, Maria Vital (Orgs.). Responsabilidade civil contemporânea: em homenagem a Sílvio de Salvo Venosa. São Paulo: Atlas, 2011, p. 106-119.
[5] STF, 1ª T., RE 172.025, Rel. Min. Ilmar Galvão, j. em 08/10/1996, DJ de 19/12/1996.
[6] STF, 2ª T., RE 369.820, Rel. Min. Carlos Velloso, j. em 04/11/2003, DJ 27/02/2004.
[7] STF, 2ª T., AgRg no AI 463.531, Min. Rel. Ellen Gracie, j. em 29/09/2009, DJe de 22-10-2009 (= in RT 891/224).
[8] STF, 2ª T., RE 409.203, Rel. Min. Carlos Velloso, Rel. p/ o Acórdão Min. Joaquim Barbosa, j. em 7/3/2006, DJ de 20/4/2007.
[9] STF, 2ª T., AgRg no RE 573.595, Rel. Min. Eros Grau, j. em 24/06/2008, DJe de 14/08/2008. O AgRg no RE 573.595 é citado, por sua vez, no AgRg no RE 607.771, 2ª Turma, Rel. Min. Eros Grau, j. em 20/04/2010, DJe de 13/05/2010, em cuja ementa consta que “a negligência estatal no cumprimento do dever de guarda e vigilância dos presos sob sua custódia, a inércia do Poder Público no seu dever de empreender esforços para a recaptura do foragido são suficientes para caracterizar o nexo de causalidade”.

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