Direitos Fundamentais

É necessário questionar a polêmica execução provisória da pena

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30 de setembro de 2016, 8h07

A discussão em torno da execução provisória da pena, objeto de reviravoltas na jurisprudência do STF e que agora segue sendo alvo de intenso debate, tanto no próprio STF, quanto no âmbito da jurisprudência das instâncias ordinárias (nem todos os juízes e órgãos fracionários de tribunais estão, por ora, aplicando a medida), e, em especial, no meio acadêmico-profissional-jurídico, segue valendo a pena, até mesmo pelo fato de que não é líquido que o STF confirme seu julgado (por maioria) anterior, mas também pelo fato de que o próprio STF, como já ocorreu, poderá mais adiante alterar seu posicionamento ou mesmo diferenciar as situações concretas de sua aplicação.

Assim, mesmo sem a pretensão de esgotar quantitativa e qualitativamente os argumentos que têm sido esgrimidos em sentido favorável e contrário, calha inventariar avaliar sumariamente os principais. Ademais disso, e convém sublinhar tal aspecto, o tema situa-se precisamente na moldura da coluna anterior, sobre os limites do Estado de Direito, tangenciando a querela em torno do desafio posto pelo necessário combate à impunidade e o respeito aos parâmetros exigidos pelos direitos e garantias fundamentais.

Adiante-se que não se compartilha de algumas manifestações chamando de fascistas os que defendem a execução provisória da pena, visto que democracias importantes a reconhecem, mas que do ponto de vista do Direito Constitucional Positivo Brasileiro cuida-se de medida no mínimo problemática, senão manifestamente inconstitucional, sempre respeitando a elevada autoridade moral e jurídica de conhecidos e qualificados juristas que a advogam, invocando relevantes razões em prol da tese.

Como as diversas posições e argumentos são amplamente conhecidos e tem sido objeto de intensa difusão, bem como considerando o perfil de uma coluna, não nos prenderemos aqui a citações doutrinárias e jurisprudenciais.

Do ponto de vista não estritamente jurídico-constitucional (embora a ele associado), mas prevalentemente sistêmico e institucional, argumenta-se, em prol da execução provisória, que a comprovada e inegável impunidade que grassa no país atinge majoritariamente os assim chamados crimes do “colarinho branco”, cujos autores são em geral atores da elite política e econômica, deve-se, em grande medida, além da leniência legislativa quanto a tais delitos (especialmente em relação a outros delitos patrimoniais), ao cipoal processual e ao imenso número de recursos, que, manejados por advogados especializados (somado à morosidade convencional do Poder Judiciário!), leva os casos eventualmente submetidos ao crivo judicial em grande medida à prescrição.

Dito de outro modo, por razões sistêmicas, institucionais e processuais, a execução provisória da pena é necessária para assegurar a punição daqueles condenados no segundo grau de Jurisdição. Tal argumento, embora substancialmente correto quanto ao diagnóstico, apresenta fragilidades evidentes.

Uma delas, quem sabe a mais importante, indica que em vez de se implantar e acelerar reformas, algumas das quais dependentes apenas de uma atitude proativa dos tribunais (alteração regimental e mudança de alguns entendimentos, priorizar os feitos etc.), passa a ser preferível, de uma perspectiva pragmática — ainda que bem intencionada —, relativizar a ratio e o telos da garantia constitucional da presunção da inocência, tal qual plasmada no texto da Constituição Federal de 1988.

Outra linha argumentativa favorável à execução provisória sustenta que esta permite que se estabeleça uma maior isonomia entre a grande massa de pessoas que abarrota os nossos estabelecimentos carcerários em condições geralmente indignas (o que o STF enfaticamente reconheceu em decisões paradigmáticas!) e os criminosos da elite política e econômica, que, mesmo quando condenados (e isso normalmente em tempo muito maior do que o corriqueiro) muito raramente acabam cumprindo a pena imposta.

Novamente, embora a situação assim se configure em termos majoritários, ousamos questionar o quanto isso realmente serve aos propósitos de uma isonomia. Com efeito, embora sedutor o argumento, haveria como objetar que justamente quem será mais afetado com a execução provisória seguirá sendo a grande massa da população mais pobre, pois ainda que todos os criminosos do colarinho branco sejam processados, julgados e, quando culpados, condenados, sempre seguirão representando parcela da parcela menor da população. Dito de outro modo, corre-se o risco de se igualar “por baixo”, novamente em possível detrimento de garantia constitucional expressa.

Do ponto de vista estritamente jurídico-constitucional-normativo um dos (se não o!) argumentos favoráveis de maior peso é o de que a garantia da presunção de inocência na Constituição Federal foi veiculada por norma-princípio, ou seja, que exige a ponderação (ou balanceamento, se preferirmos) com outros direitos ou bens constitucionais.

Ora, não se cuida de negar a existência de um princípio da presunção de inocência, mas de questionar o quanto tal classificação condiz com os limites textuais da nossa Constituição Federal, que, salvo melhor juízo, indicam que se trata de uma regra, que proíbe uma determinada conduta, pois, apenas para relembrar, o artigo 5º, LVII, estabelece, categoricamente, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”.

Se regras por definição não se submetem a um juízo de ponderação, ao menos não (para os que admitem a possibilidade de superação das regras) no sentido habitual atribuído aos princípios, um aspecto que restaria é discutir o que se pode legitimamente entender por trânsito em julgado. Ainda que se possa aduzir que se cuida de uma definição legal, já que a Constituição Federal assegura a sua blindagem como garantia fundamental sem enunciar uma definição, o conceito haverá de estar em sintonia com a Constituição, ademais de ser interpretado — mormente em sede criminal e em caso de condenação à pena privativa de liberdade — de modo extensivo, ou seja, reforçado, já que do contrário se estaria a romper com o critério de que restrições a direitos e garantias devem ser restritivamente interpretadas.

Além disso, se por trânsito em julgado se entende sentença irrecorrível, da qual não cabe mais recurso, parece problemático sustentar que uma vez respeitado o duplo grau de jurisdição e não cabendo mais recurso com efeito suspensivo, mas cabendo, sim, ainda que em caráter excepcional, algum recurso, se possa falar propriamente em trânsito em julgado. Aliás, é de se questionar inclusive a própria constitucionalidade da generalizada (portanto, sem exceção) ausência de efeito suspensivo, em especial quando se trata de privação da liberdade.

Outro argumento favorável que busca reforçar a tese de que a execução provisória estaria a preservar tanto a garantia plena do duplo grau de jurisdição quanto o núcleo essencial do princípio (para nós, regra) da presunção de inocência, vai no sentido de que, no STF, a cota de êxito dos Recursos Extraordinários em matéria criminal é ínfima, menos de 1%, o que reduziria ainda mais um suposto impacto desproporcional causado pela execução provisória.

Mas aqui novamente (assim como no caso do argumento relativo ao sistema que induz à impunidade) há de se perguntar se a execução provisória de pena de reclusão ainda se justifica mesmo que um em cem (ou mesmo menos) casos julgados pelo STF resultem em absolvição ou anulação do processo ou mesmo em redução de pena que afaste a prisão? E se no STJ, onde, de resto, se julgam bem mais recursos criminais do que no STF, o percentual for bem maior?

Assim, mesmo que aqui só tenhamos apresentado esquematicamente os principais argumentos favoráveis e contrários, já pensamos ser possível questionar, assim como já o fizerem alguns dos Ministros do STF, a legitimidade constitucional da execução provisória da pena e isto mesmo em se considerando que a presunção de inocência é princípio e não regra.

Com efeito, admitindo-se, ad argumentandum, que viável um juízo de ponderação, será mesmo proporcional (ou razoável, para quem preferir seguir essa linha) apostar na execução provisória?

Não seria mais correto reconhecer, como possível alternativa, que uma vez confirmada decisão condenatória a pena restritiva da liberdade em regime fechado (no caso dos demais regimes e na ausência de estabelecimento apropriado há de se admitir a prisão domiciliar e outras medidas cautelares), reforçada e mesmo em regra — portanto, cabível exceção — justificada a decretação (quanto mais a manutenção) da prisão preventiva quando a condenação for em sede de duplo grau?

O que nos parece de fato inadmissível é, existindo alternativas (desde modificações não tão difíceis de caráter institucional e processual até reforçar a necessidade da segregação preventiva uma vez ocorrida condenação no segundo grau de jurisdição), adotar a execução provisória da pena e com isso admitir que se possa considerar culpado alguém que teve recurso admitido e que, mesmo que em caráter excepcional, poderá ter revertida a sua situação. 

Além do mais, não se estará perigosamente começando a forçar limites textuais da Constituição em detrimento de direitos e garantias fundamentais, o que, embora possa parecer pouco para alguns, se revela de importante significado simbólico.

Assim, qualquer medida que desnecessariamente, portanto de forma desproporcional, importe em relativização de direitos fundamentais, não pode ser aplaudida e há de ser vista com extrema reserva, por mais relevantes que sejam os valores invocados como justificativa, ainda mais existindo alternativas plausíveis, previstas na própria Constituição. Esta, é bom frisar, não impede a prisão provisória, presentes os requisitos, mas proscreve a execução provisória sem trânsito em julgado da sentença condenatória.

De qualquer sorte, sabedores que o tema é polêmico e que qualquer posição, contrária ou favorável à execução provisória, não deixará de ser alvo da crítica, esperamos que com a presente coluna tenhamos contribuído para o necessário e saudável debate.

Autores

  • é professor titular da Faculdade de Direito e dos programas de mestrado e doutorado em Direito e em Ciências Criminais da PUC-RS. Desembargador no RS e professor da Escola Superior da Magistratura do RS (Ajuris).

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