Limite Penal

A verdade a ver navios
com o pragmatismo alienado

Autor

16 de setembro de 2016, 8h00

Spacca
É muito engraçado que estejam do mesmo lado
os que querem iluminar e os que querem iludir
É muito engraçado que todo mundo tenha armas capazes
de tudo de todo mundo acabar no dia "D" na hora "H"
— 
A Verdade a ver Navios (Humberto Gessinger)

A proliferação dos sujeitos que julgam diante da ampliação do Poder Judiciário fez com que se perdesse o apontar do juiz. Do magistrado reconhecido pela comunidade, com a qual, de regra, não possuía vínculos (senão o de se saber quem era, e ter por hábito o silêncio de sua vida privada), passou-se à multidão. Perdeu-se, por assim dizer, a noção de referência. Embora fosse decorrente de um lugar, trazia a singularidade como mecanismo de legitimidade.

Passemos ao paradigma da magistratura iluminada: não basta julgar. É preciso ver e ser visto. Divulgar seus atos, mostrar que se está cumprindo sua função imaginária para com a sociedade, gozando (esse é o termo, psicanaliticamente) pelo e no exercício do cargo. O gozo escópico é o seu mote (o do olhar).

Talvez o mais difícil seja justificar, de fato, a presença do sujeito no turbilhão do direito sem amarras, à deriva do novo modo de decidir, a saber, o semblante de decisão. Enfim, é necessário que o sujeito possa se fazer aparecer na decisão: que sua presença seja percebida, ou seja, que compareça subjetivamente na decisão. Não porque pode dizer o que bem entender, e sim porque aplica o direito autenticamente (Lenio Streck).

A crise na decisão judicial de hoje situa-se num lugar peculiar, em um anônimo bater das máquinas, algo como uma linha de produção: salvo raros atos decisórios, a maioria independe de quem assina. O dispositivo funciona como se a decisão estivesse previamente formatada e o sujeito apenas aderisse ao contexto decisório, sem que a faça aparecer. A presença do sujeito é soterrada pelo já dito que ocupa o lugar da decisão que poderia vir a ser.

Prevalece o triunfalismo do pragmatismo alienado que se nega a pensar suas vicissitudes – na linha de produção em que histórias mal contadas por inúmeros acasos fazem perecer verdades e pessoas. Pensa-se na moderna visão gerencial, em produção eficiente de resultados, com a pequena diferença da iniciativa privada (a que orgulhosamente se adere), de que nosso produto não são coisas, e sim pessoas, equilíbrio de relações e Justiça.

Nesse contexto, a decisão é o meio da estabilidade buscada pelo direito, como se a singularidade não fosse condição de possibilidade de se pensar os deslizes totalitários do mundo uniforme. O universalismo da resposta isonômica esconde as singularidades fáticas, como se os fatos, os detalhes (que normalmente só a sensibilidade pode apurar) não mais fizessem questão. A negação dos fatos traz consigo o regozijo do igual e do presente; do fácil, em que trilhamos os mesmos caminhos e abordagens mentais para um sem número de diferenças. O presente toma o lugar da tradição, ocupando o espaço vazio deixado pela modernidade e a capacidade do sujeito de fazer objeção, via compreensão. O lugar da compreensão é tomado pelo real do presente que aterra a diferença ontológica dos lugares e registros.

Ocupar o lugar da crítica, do chato que insiste em dizer que até pode ser assim, mas é preciso compreender o ato decisório, esbarra no conforto do já dito. Insistir no lugar de quem não se seduz facilmente pode e deve ser visto como ineficiente. Lugar sempre de incômodo e de desventuras. Talvez de ódio da aparente normalidade. A crítica é tida como uma traição à eficiência, ao economicamente correto. Há uma crise do lugar-juiz e suas máscaras.

Os teóricos perderam o espaço da moda para solucionadores de problemas estruturalmente postos, capazes de abarcar a complexidade do mundo da vida mediante fórmulas, estratégias gerenciais. Perdeu-se a autonomia da decisão.

A banalidade tomou conta de um aspecto motriz da construção da realidade. O mundo do Direito passou a ser cada vez mais linear no mundo em desordem. Como se a desordem pudesse ser equacionada em pequenos verbetes e a metalinguagem jurídica fosse reduzida a novas capitanias adjudicadas a representantes de discursos de outra ordem, especialmente econômicos. Com esse esvaziamento de sentidos, que repercutem na forma de se trabalhar, na visão gerencial, pergunta-se se, também, como está retratado no filme Dr. Jivago, não serão, a exemplo do personagem título, perseguidos todos aqueles que ousarem manter a subjetividade em meio à dominação — apenas aparentemente plural – das visões de mundo e de vida, em que somos compungidos, sempre, a vestir os sentidos e pensamentos dominantes em voga?

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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