Limite Penal

Não podemos ter uma posição frugal
nos destinos do Processo Penal

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14 de outubro de 2016, 8h00

Spacca
Em congressos, livros, palestras ou qualquer mesa de bar em que o tema do Processo Penal é discutido para além da superficialidade, encontramo-nos em situação de desamparo. Temos dificuldade de apontar, coletivamente, um caminho a ser seguido. Afinal de contas, com que cara ensinamos Processo Penal se o realismo jurídico selvagem rompe os limites de sentido da tradição por apenas um voto? No julgamento da prisão em segundo grau, prevaleceu a sua possibilidade pelo voto de um único ministro. Aliás, isso demostra a importância de se escolher (bem) um ministro da mais alta corte do país. De 1988 até 2009 podia-se prender na pendência de recursos (especial e/ou extraordinário), modificando-se a compreensão em face do mesmo material normativo, até 2016, quando novos ministros mudaram a compreensão. E podemos mudar novamente? Não se trata de descobrir o sentido verdadeiro dos textos, nem da vontade do legislador, como bem pontua Lenio Streck, mas de dinâmica de atribuição de sentido no tempo e no espaço, diante de contextos e casos penais.

O fato de se viver uma crise aguda no sistema processual penal não nos desonera da responsabilidade individual de participarmos do espetáculo da punição. Por mais que vivenciemos o eficientismo penal como nova faceta de compreensão, cabe-nos desvelar a lógica com a qual o sistema opera e não se escorar em “não é culpa minha, mas do sistema” — lógica essa, aliás, bem explorada por Hannah Arendt, e retratada na película O Leitor, decorrente do livro de Bernard Schlink.

A anestesia de responsabilidade promovida pelo sistema de controle social exige uma tomada de posição, de mudança de mentalidade (autoritária) e resgate da função precípua do Processo Penal como diretriz social da punição, mas fundamentalmente como mecanismo de garantia – sem que se confunda com a proposta de Ferrajoli, necessariamente. Talvez não tenhamos condições de modificar as normas jurídicas, mas podemos aproveitar as ferramentas postas de maneira a utilizá-las de maneira mais oportuna, afinal de contas, não podemos abdicar do Processo Penal.

Podem não ser reiterados os casos de reforma por parte do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal. A questão é a de que apenas um inocente que seja preso já seria suficiente para que estipulássemos mecanismos hábeis de processamento dos recursos especiais e extraordinários. Para isso há juízo de admissibilidade e agravo. Fechar a porta para todo e qualquer reclamo aos órgãos de cúpula demandaria a certeza de que Tribunais não erram. Ademais, bem sabemos, diante das diferenças regionais, alguns Tribunais são compostos por membros que simplesmente decidem diferente do STJ e STF.

Deixar nas mãos dos Tribunais a prisão, sem prévia análise da pertinência das razões recursais, é um acinte à democracia. Pode-se muito bem realizar o controle de acesso. O que não se pode fazer é aceitar que gente que não seria presa, principalmente pela intolerância à aplicação da insignificância – como se verificou recentemente no caso do sujeito preso em São Paulo preso desde agosto de 2015 pelo furto de um frasco de creme de pentear avaliado em R$ 7,95 (STF. HC 338.718-SP) – possa cumprir pena imediatamente. Não podemos ter uma posição frugal.  

Por isso tenho insistido na leitura via Teoria dos Jogos aplicada ao Processo Penal (Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos). É claro que muitos reconhecem as possibilidades da teoria dos jogos aplicada ao processo penal, mas somente no ambiente privado, já que no público continuam defendendo um modelo de ensino e prática incompatível com as vicissitudes do contexto atual, embora estejamos cada vez mais perto do abismo e da selvageria do realismo (de pior tradição) dos tribunais.

De certa forma a proposta é a de uma ovelha desgarrada, pois atrevi-me a dizer que o modelo ensinado é incompatível com as interações humanas, seus interesses, bem assim com um processo penal democrático. Recompor minimamente a função do Processo Penal é o desafio, sob pena de não precisarmos de mais nada para tudo. Será necessário se atrever e radicalizar algo que deveria servir como instância de garantia das arbitrariedades cotidianas e banalizadas.

Autores

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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