O que resta de amores nos 28 anos da nossa Constituição Federal
4 de outubro de 2016, 8h00
Foi promulgada em um clima de amplas esperanças, embora não tenha nascido em ambiente muito apropriado. A Assembleia Constituinte contou com senadores não eleitos para a finalidade (biônicos), que continuaram em atividade após os trabalhos de redação constitucional. Também não foram convocadas eleições gerais após o seu término. Sarney era e permaneceu presidente — a despeito de sua origem como vice. A rigor, não foi bem uma Assembleia Nacional Constituinte, mas um Congresso Constituinte — mas é o que foi possível na ocasião.
É uma Constituição que consagra amplas liberdades e busca a isonomia a todo custo. Luiz Alberto Davi Araújo costuma dizer que nossa Constituição espelha bem o povo brasileiro, pois não somos frios e impessoais. Os norte-americanos, por exemplo, quando se encontram dizem um singelo “how do you do”, ao que o outro responde com algo semelhante e, quando muito, eles “shake hands”. Nós, brasileiros, somos diferentes. Encontramos um conhecido na rua e logo o abraçamos e, quando cabe, já tascamos (pelo menos) um beijinho nas bochechas. Perguntamos pela família e o outro responde em detalhes. Nossa Constituição espelha isso. Um caráter largo, vasto, aconchegante. Não se cansa de repetir a mesma norma sob várias roupagens. Não basta dizer que “todos são iguais perante a lei”. É pouco. Sentimos a necessidade de acrescer: “sem distinção de sexo, raça, credo”. E isso é dito de várias formas em distintos lugares do texto. É como se desconfiássemos das pessoas que viessem a aplicar a norma — “escreve isso direito aí, com todas as letras e várias vezes, pois vai que esses caras leiam pela metade”.
Vinte e oito anos após, o que resta dos amores constitucionais, com tanta água passada por esse transatlântico chamado Brasil? Sei que essa análise já foi feita por outros autores, inclusive um português que usou o nome da mesma música francesa usada neste título.
Tratarei apenas dos aspectos financeiros, afinal esta coluna “Contas à vista”, trata desse ramo do direito. Aliás, a equipe ganhou reforço de peso com a chegada de Élida Graziane e de Júlio Marcelo. A coluna passará a ser semanal, compartilhada também com José Maurício Conti. Cumprimento a todos. Coluna plural, com pontos de vista diferentes e, algumas vezes, divergentes, sobre os mesmos fatos – quem ganha é o leitor.
A arrecadação permanece sobrecarregando a maioria da população, pois centrada em incidências sobre a circulação de bens e serviços, o que alcança a todos, e com baixa possibilidade de aferir a capacidade contributiva dos contribuintes, afinal, um quilo de feijão custa o mesmo, seja pobre ou rica a boca que o venha a mastigar. Depois vem a arrecadação decorrente de incidências sobre a folha de salários — como buscar o pleno emprego dessa forma, se os mesmo se tornam fiscalmente cada vez mais caros?
Por outro lado, o gasto público está cada vez mais centrado nos salários do funcionalismo. É a principal fonte de gastos do poder público no Brasil, quando se analisa todos os entes federativos. E isso com grandes distorções, pois existem aqueles que ganham mal para a importância da função que desempenham, sendo que ocorre o inverso em outros rincões. Lembro de um dirigente do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), autarquia federal, relatando que um servidor da área de pesquisa mineral, com mestrado em geologia e tudo o mais, ganhava pouco mais de R$ 6 mil/mês, e, sentido-se em uma carreira desprestigiada, resolveu fazer outro concurso, no qual foi aprovado ganhando R$ 20 mil/mês. O cargo? Ascensorista do Senado Federal. Passo a informação como ouvi.
Semana passada, no ensejo de mais um encontro do Fórum de Debates de Direito Financeiro, encontros idealizados por Heleno Torres e promovidos mensalmente pelos docentes que ministram essa disciplina na Faculdade de Direito da USP, tive a oportunidade de ouvir Luciano Ramos, que é membro do Ministério Público de Contas estadual, tal como os demais expositores (Elida Graziane e Rafael Neubern), que apresentou números e fatos inacreditáveis – dentre eles que alguns estados maquiavam suas contas para apresentação à Secretaria do Tesouro Nacional, e apresentavam outros números para fins internos, com o explícito intuito de não demonstrar a real extrapolação dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. (Se isso ocorresse no âmbito privado, seguramente dava cana aos empresários — imaginem só, uma conta para a Receita Federal, outra para a Secretaria de Fazenda e uma terceira para o sistema bancário… Sem comentários). Luciano Ramos também apresentou números referentes a estados onde são pagas gratificações rotineiras a título de “verba indenizatória”, pois assim afastam esses valores do teto salarial do funcionalismo público e dos limites impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Disse ele que o auxílio moradia, que o ministro Luiz Fux autoconcedeu ao Judiciário, vem sendo contabilmente apropriado como “verba indenizatória”, extrapolando os limites de responsabilidade fiscal, alcançando R$ 12 bilhões/ano. Enfim, a palestra de Luciano Ramos foi impactante — números à mostra. Parabenizo Estevão Horvath que organizou o encontro do mês de setembro.
Outro aspecto desses 28 anos foi que pagamos juros. Isso mesmo – pagamos juros e juros, e nossa dívida pública (bruta) está pouco acima de 70% do PIB (soube que na Espanha esse percentual é de 101%). Quando a Constituição foi promulgada, nossa dívida era enorme, superior ao PIB, e basicamente com credores estrangeiros. Nela foi incluído até mesmo um artigo nas disposições transitórias obrigando a realização de uma auditoria da dívida externa, que jamais foi realizada. Hoje nossa dívida é predominantemente interna. O fato é que a dívida determina o financiamento das políticas públicas brasileiras, por mais incrível que essa frase possa parecer. Pode faltar dinheiro público para tudo – gaze nos hospitais, canetas nas escolas, salários dos professores (que ganham mal e são completamente desvalorizados) – mas não pode faltar dinheiro para o pagamento do “serviço da dívida”. Observe-se que é a única verba pública que não é orçamentada e não é contingenciável – Ulysses Guimarães deve estar se revirando no túmulo.
Não é meu propósito fazer um inventário financeiros desses 28 anos, senão teria que tratar dos precatórios que permanecem sendo “pedalados” por estados e municípios, sem que nenhuma sanção lhes seja aplicada. Seria obrigado a analisar a raspagem do tacho dos depósitos realizados perante as Justiças Estaduais, em prol dos governos estaduais, sem data para devolução. Trataria das sucessivas DRUs e da PEC 241, do teto para o gasto público. Teria que falar das idas e vindas da CPMF, eterna ameaça sobre a população. Teria de tratar das renúncias fiscais incontroláveis e dos empréstimos a juros subsidiados para os amigos do poder. Falaria de transparência e opacidade fiscal, de dominação pelo orçamento (ministrei aulas em conjunto com Regis de Oliveira sobre esse tema; aprendi muito), de teoria da captura dos cofres públicos por quem está mais próximo do poder – seja do setor público ou privado, e por aí assim. E tratar de corrupção, um mal sem partidos ou bandeiras, que corrói as estruturas do poder há muitos anos em nosso país – muito mais que os 28 constitucionais.
Não se trata de fazer um inventário financeiro. A busca é saber o que resta de nossos amores constitucionais neste 28o ano da Constituição.
Resta pouco, porém de muito grande importância.
Em 28 anos foi reduzida a pobreza e a desigualdade no Brasil – basta ler os índices oficiais, nacionais ou internacionais, que isso será constatado. Diminuiu a mortalidade infantil, aumentou a quantidade de alunos nas escolas, aumentou a perspectiva de vida, aumentou a renda média, a classe média pode viajar ao exterior e conhecer o pato da Disney, reduziu isso, aumentou aquilo, etc. Os indicadores são inequívocos.
Não vale discutir se isso ocorreu mais amplamente no período do presidente/governador A ou B. Isso é fruto de uma trajetória de marchas e contramarchas que nos fez chegar até aqui, com uma democracia capenga – afinal, em 28 anos o povo elegeu quatro presidentes (Collor, FHC, Lula e Dilma), e o Congresso afastou dois, dando posse aos vices (Itamar e Temer). Temos inegavelmente problemas de Direito Eleitoral, sendo o Direito Financeiro Eleitoral um aspecto importante desse imbroglio. Comentei isso na coluna anterior (clique aqui para ler).
Mesmo ”limados” pela escorchante carga tributária, e dominados/capturados pelos donos (públicos e privados) do poder na realização dos gastos públicos, avançamos na redução das desigualdades sociais. Imagine o que teria sido feito sem esses entraves… A que ritmo essas desigualdades não teriam sido reduzidas?
Enfim, o que resta de nossos amores?
A esperança de conseguirmos fazer com que o sol brilhe para todos em Terra Brasilis, e não apenas para alguns, que usam os mecanismos orçamentários em proveito próprio. É preciso acabar a cultura do farinha pouca, meu pirão primeiro.
Se conseguirmos fazer isso durante os próximos 28 anos, teremos um país mais igual e melhor para todos. É essa esperança que remanesce como o amor constituinte que nos uniu.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!