Tribuna da Defensoria

O Marco Legal da Primeira Infância sob a ótica da Defensoria Pública

Autor

  • Elisa Cruz

    é professora doutora de Direito Civil da FGV-RJ defensora pública da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e autora do livro "Guarda Parental: Releitura A Partir do Cuidado" (2021).

22 de março de 2016, 8h00

A promulgação da Lei 13.257, de 8 de março de 2016, representa a consolidação da doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes, adotada no ordenamento jurídico pátrio, conforme se verifica do artigo 227 da Constituição da República e da Convenção de Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil e incorporada por meio do Decreto 99.710, de 21 de novembro de 1990.

Decorrente do Projeto de Lei 6.998/2013 (número originário na Casa Legislativa) e do Projeto de Lei da Câmara 14/2015, a lei sobre primeira infância tem por objetivo “estabelecer maior sintonia entre a legislação e o significado do período da existência humana que vai do início da gestação até o sexto ano de vida”, pretendendo “responder à relevância dos primeiros anos na formação humana, na constituição do sujeito e na construção das estruturas afetivas, sociais e cognitivas que dão sustentação a toda a vida posterior da pessoa”.

Tomando por base a nova realidade familiar do país e a consolidação da inserção da mulher no mercado de trabalho, a lei visa a definir princípios, diretrizes, direitos, programas, serviços e projetos direcionados a crianças de até 72 meses.

Os artigos iniciais da lei destinam-se essencialmente a indicar sua base ideológica, bem como fixar as regras de partilha das competências administrativa, legislativa e orçamentária entre os entes federativos.

A concretização dos princípios e diretrizes da lei surge a partir de seu artigo 18, quando se inserem artigos de alteração da redação de dispositivos, ou inclusão de novos, na Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), na Consolidação das Leis Trabalhistas e no Código de Processo Penal.

Das modificações feitas, destacam-se a inserção em texto legal de políticas de saúde que se encontravam normatizadas no âmbito infralegal pelo Ministério da Saúde e secretarias de Saúde, ou ainda que eram praticadas em alguns equipamentos da saúde independentemente de orientação normativa, tais como a instrução a gestantes e mães sobre aleitamento materno, alimentação infantil, crescimento e desenvolvimento etc., além da obrigatoriedade de esclarecimento da mãe sobre a unidade básica de atendimento de saúde e a contrarreferência.

Esses direitos são expressamente assegurados também às mulheres em privação de liberdade.

O artigo 19 passa a contar com nova redação que, ao incorporar o conteúdo de Nota Técnica Conjunta do Ministério da Saúde 01/2015[1], e excluir a expressão “ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”, retira a situação de rua ou drogadição como causa impeditiva ao exercício da maternidade ou da paternidade, fortalecendo a sistemática do ECA de que é a capacidade de exercício dos deveres parentais de cuidado o critério a ser analisado para restringir ou impedir o direito à convivência com a família natural.

O artigo 23 passa a contar com dois parágrafos, sendo que o segundo impede a decretação da perda do poder familiar apenas por condenação criminal transitada em julgado, salvo na hipótese de condenação por crime doloso, sujeito à pena de reclusão, contra o próprio filho, regra essa que já existia no Código Penal (embora mais extensa nesse diploma legal por incluir também tutelados ou curatelados, conforme se observa do artigo 92, II).

A inclusão dos parágrafos 5° e 6° asseguram a gratuidade dos registros, certidões e da averbação que viabilize o reconhecimento de paternidade ou a inclusão do nome paterno no registro civil da criança, a qualquer tempo, e da nova certidão de nascimento. Cuida-se de medida favorável que retira impedimentos de caráter financeiro para o exercício da paternidade responsável.

Embora a inovação surja com o Marco da Primeira Infância, o posicionamento dessa norma no ECA faz com que essa alteração, e as demais antes citadas, sejam aplicáveis a toda e qualquer criança e adolescente, ampliando sua eficácia.

A modificação provocada na CLT poderia ter sido mais expressiva, se o aumento do prazo de licença paternidade não estivesse condicionado a adesão do empregador ao Programa Cidadão. Perdeu a lei a oportunidade de se alinhar as doutrinas que já reconhecem os benefícios da convivência entre pais e filhos e a melhoria no desenvolvimento destes a partir do fortalecimento dos vínculos.

A compreensão quanto a importância do convívio entre pais e filhos aparece com mais força, talvez, nas alterações promovidas no Código de Processo Penal.

A fim de evitar prejuízo ao desenvolvimento infantil ou impedir a inexistência de pessoa encarregada da assistência, o que poderia importar em acolhimento e despersonalização dos cuidados, a nova redação do artigo 318 do Código de Processo Penal autoriza o deferimento de prisão domiciliar à gestante, à mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos ou ao homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 anos de idade incompletos.

Essa norma foi aplicada pelo ministro Rogério Schietti Cruz, do Superior Tribunal de Justiça, um dia após a publicação da lei para decidir o HC 351.494-SP e deferir prisão domiciliar em favor de jovem mãe grávida da segunda gestação, tendo o primeiro filho dois anos de idade[2].

Segundo o ministro, a “novel legislação, consolida, no âmbito dos direitos da criança e do adolescente, a intersetorialidade e corresponsabilidade dos entes federados” em favor de crianças e adolescentes, destacando “a posição central, em nosso ordenamento jurídico, da doutrina da proteção integral e do princípio da prioridade absoluta, previstos no artigo 227 da Constituição Federal, no ECA e, ainda, na Convenção Internacional dos Direitos da Criança, ratificada pelo Decreto Presidencial 99.710/90”.

Contudo, a norma vai além e, ao determinar que passe a constar do inquérito policial informações sobre gravidez e a existência de filhos da pessoa presa, ou, ainda, que esse questionamento ocorra por ocasião do interrogatório, sugere que a existência de prole (ainda que por nascer) deve ser considerada na determinação da pena a ser cumprida em caso de condenação.

Embora a lei não preveja, há de ter utilidade o conhecimento desses dados, e essa informação, utilizando-se da principiologia legal, deve ser direcionada a preservação dos direitos e interesses das crianças e adolescentes.

Entende-se, assim, que a existência de filhos ou de gravidez pode representar a mitigação das normas penais de fixação da pena, estabelecimento de regime prisional ou ainda na consideração de benefícios desencarceradores ou despenalizadores, tudo para cumprir a prioridade constitucional e legal.

Percebemos apenas que a lei olvidou-se do processo de apuração de atos infracionais e que adolescentes também podem ser pais ou mães. Assim, por interpretação analógica, esses mesmos questionamentos devem ser feitos a adolescentes que estejam sendo acusados da prática de ato infracional, e a existência de filhos ou de gravidez deve ser sopesada, inicialmente, pelo Ministério Público para oferecimento de remissão ou, pelo juiz, na delimitação da medida socioeducativa a ser cumprida em caso de procedência da representação.

Em conclusão, a Lei 13.257/2016, que institui o Marco Legal da Primeira Infância, constitui mais um avanço na proteção dos direitos de crianças e adolescentes do país ao instituir políticas que, direta ou indiretamente, favorecem ao seu crescimento e desenvolvimento saudável e uma maior participação dos pais na assistência material e afetiva de seus filhos.

Autores

  • é defensora pública do estado do Rio de Janeiro, mestra e doutoranda em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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