Segunda Leitura

Foro privilegiado não combina com o atual estágio da sociedade brasileira

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

31 de julho de 2016, 11h26

Spacca
Sei bem que a expressão foro privilegiado não é tecnicamente correta, pois, na verdade, o que há é foro por prerrogativa de função e, consequentemente, ações penais originárias, ou seja, processos criminais cuja competência é de tribunais de segunda instância ou superiores e não dos juízes de primeira instância.

Ocorre que foro privilegiado é o nome que a sociedade conhece e adota. Dá-se aqui o mesmo que a colaboração premiada, que, contrariando o desejo da doutrina e da lei, é conhecida por delação premiada.

Nos idos de 2007 escrevi sobre o assunto nesta revista eletrônica[1] e agora, passados quase dez anos, vejo que a falta de efetividade persiste, quiçá em maior escala.

Tudo começou com a Constituição de 1824, que assim dispunha no artigo 99: “A Pessoa do Imperador é inviolavel, e Sagrada: Elle não está sujeito a responsabilidade alguma”. E nos artigos 163 e 164, inciso II, que ao Supremo Tribunal de Justiça cabia “Conhecer dos delictos, e erros do Officio, que commetterem os seus Ministros, os das Relações, os Empregados no Corpo Diplomatico, e os Presidentes das Provincias”. Portanto, ali o embrião do foro privilegiado.

Proclamada a República e editada a Constituição de 1891, o foro privilegiado permaneceu no artigo 57, parágrafo 2º. De lá para cá fortaleceu-se, engrossando as fileiras dos que respondem em instância diversa. Em 1988 a Constituição deu a prerrogativa a várias autoridades, conforme artigos 52, incisos I e II, 102, I, “b” e “c” e 105, I, “a”, artigo 108, I, “a”, que incluem não só representantes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário da União, como também os prefeitos municipais (artigo 29, inciso VIII).

Como se não bastasse, algumas Constituições Estaduais aumentaram a relação. Por exemplo, a do Rio de Janeiro concede privilégio de foro a defensores públicos, delegados de polícia, vice-prefeitos e vereadores (artigo 161, inciso IV, alínea ‘d’, itens 2 e 3). A da Bahia estende a prerrogativa a auditores militares inativos (artigo 123, inciso I, alínea ’a’). A de Tocantins inclui o comandante-geral da Polícia Militar (artigo 48, parágrafo 1º, inciso IV).

E mais. No Brasil a competência por prerrogativa de função não se restringe aos crimes praticados em razão da função pública. Ela alcança também os crimes comuns. Assim, se um desembargador causar um acidente de trânsito que resulte em lesões corporais culposas em alguém, a ação penal tramitará no Superior Tribunal de Justiça, em Brasília. Obviamente a colheita das provas será muito mais difícil, o risco de prescrição, maior, e a vítima sofrerá notório prejuízo.

Em alguns países não existe prerrogativa de foro por função (p. ex. Estados Unidos, Suécia, Holanda, Cabo Verde e Portugal), em outros ela é restrita (p. ex., Itália e Argentina) e há também os que se assemelham ao Brasil, com um extenso rol de autoridades a gozar do benefício (p. ex., Colômbia).

A ineficiência das ações penais originárias que tramitam nos Tribunais alcança um grau assustador. Neles, raramente algum processo criminal chega ao fim com decisão de mérito. Quase todas tramitam por anos e prescrevem.

Os tribunais são preparados para receber recursos e não para processar ações penais. Ministros e desembargadores não estão habituados a interrogar réus, ouvir testemunhas e conduzir a prova. Alguns nunca exerceram tal atividade. Às vezes na investigação estabelece-se o contraditório. Os regimentos internos dos tribunais não costumam disciplinar o assunto. A denúncia só pode ser recebida por órgão colegiado (Lei 8.038/90, artigo 6º), o que motiva pedidos de vista que podem retardar o ato em meses ou anos. 

Mas estas conclusões são tiradas de conhecimentos empíricos, muitas vezes por vias indiretas, pois quem se dispuser a pesquisar o assunto ficará frustrado. Simplesmente não conseguirá avançar na investigação, limitando-se a obter informações esparsas e circunstanciais em sites diversos da internet. Nunca através dos órgãos do Poder Judiciário. Vejamos.

O Conselho Nacional de Justiça, que presta um grande serviço ao divulgar dados estatísticos da Justiça brasileira (Justiça em Números), não fornece informações sobre as ações penais originárias.[2]

Buscas no site do Supremo Tribunal Federal não revelam local de informações sobre ações penais originárias. Quantas tramitam na corte? Desde quando? Com que relatores? Quantas prescreveram? Nada se encontrará. O que existe é apenas uma notícia sobre a agilização das ações penais originárias depois de que, em junho de 2014, o Regimento Interno foi alterado e se transferiu a competência da maior parte delas do Plenário para as turmas. Segundo a notícia, “em pouco mais de dois anos, as duas turmas já colocaram em julgamento um total de 133 inquéritos e 75 ações penais”. [3]

A notícia é boa, mas deve ser vista com cautela. Ela não faz qualquer referência sobre o resultado dos julgamentos. Por exemplo, foram julgadas 75 ações penais, mas quantas decisões foram de mérito?  Quantas definitivas? Quantas findaram em prescrição?

Vejamos um exemplo. A notícia diz que o deputado federal Roberto Goes, do Amapá, foi condenado  em maio deste ano, à pena de dois anos, oito meses e 20 dias de reclusão e 12 dias multa pela prática de peculato como prefeito de Macapá. Pois bem, consulta ao site, Ação Penal 916, Primeira Turma, setor “acompanhamento processual”, revela que o processo foi autuado em 12/3/2015 e distribuído ao ministro Luís Roberto Barroso. Pelos dados das informações do site, é possível presumir que já tramitava em outro órgão, provavelmente no TJ-AP. Então, se decisão definitiva houve, não se trata de precedente de ação penal comum, investigado e processado o acusado na Corte.

No Superior Tribunal de Justiça tramitam ações penais contra governadores de estados, ministros do Poder Executivo, desembargadores e outras autoridades. O site do STJ apresenta clara estatística processual de 2002 a junho de 2016,  informa mais do que o do STF. Mas não há referência explícita a ações penais originárias.[4] Para conseguir-se informações, deve ser feito pedido explícito à Ouvidoria, o que dificulta o acesso e a transparência desejável.

O Tribunal de Justiça de Minas Gerais possui estatística anual unificada, através da qual define o número de processos cíveis e criminais em suas variadas espécies. Seu site informa com clareza   os processos julgados.[5] Por exemplo, em 2015 foram decididos 64.321 recursos pelas Câmaras Criminais. Todavia, não há menção às ações penais originárias. É impossível saber quantas são, há quanto tempo tramitam, quantas prescreveram e outros dados.

O Tribunal de Justiça de São Paulo também não fornece indicações sobre as ações penais originárias. O site exibe estatísticas dos desembargadores da Seção Criminal, mas não dos julgamentos de ações penais originárias do órgão especial.[6] No âmbito federal, o Tribunal Regional Federal da 4ª. Região, que tem tradição de buscar o aprimoramento administrativo, também não fornece dados a respeito.[7]

Desta rápida passagem por alguns Tribunais do Brasil, é possível chegar-se à conclusão de que ninguém sabe ao certo os resultados das ações penais originárias. Mas é possível concluir que eles não são animadores, pelo simples fato de que a mídia raramente registra casos de absolvições ou condenações.

Casos graves que possam ensejar prisão também não fazem parte dos registros, o que faz presumir que não existem ou não são devidamente apurados. Um dos poucos encontrados refere-se ao prefeito Gil Arantes, do município de Barueri, SP, que, afastado pelo TJSP por ser acusado da prática de 63 crimes de lavagem de dinheiro e desvio de 26 milhões de reais, foi reintegrado ao cargo em março de 2015 pelo STF.[8]

Muitos agora dirão que não é bem assim, que na Ação Penal 470 do STF, conhecida por “Mensalão”, houve condenações. Mas esta ação é a exceção que confirma a regra. Ela tramitou com celeridade e resultou em condenações, é verdade. Mas isto aconteceu por força do empenho e energia do seu relator, ministro Joaquim Barbosa. Ele foi a causa única e exclusiva do resultado positivo.

Sendo esta uma das situações mais calamitosas do sistema de Justiça brasileiro, é preciso que se inicie um movimento de mudança. E esta deve começar pelo cumprimento do princípio da transparência dos atos de gestão pública, dando os Tribunais ciência à sociedade das ações penais originárias que neles tramitam. A manter-se como está, a situação gerará suspeita, que é infundada com certeza, de que se tem algo a esconder.

A mudança depende de  Emenda Constitucional no Congresso e não é de se esperar que ocorra tão cedo. Mas ela poderia ser editada, pelo menos para retirar os crimes comuns da competência originária dos Tribunais.

Enquanto esta alteração não vem, os Tribunais poderiam tomar medidas para divulgar e agilizar suas ações penais originárias, prestando assim um bom serviço à nação. Por sua vez o CNJ poderia impor aos Tribunais (exceto o STF)  que registrem a existência de ações penais originárias nas suas estatísticas.

Além disto, cada Tribunal, visando maior eficiência, poderia implantar gabinete de Polícia Judiciária, Federal ou Estadual a depender de cada um, para a realização de investigações. Atualmente, as investigações são feitas sem critério único ou caráter científico, muitas vezes conduzidas por um desembargador sem qualquer experiência no crime.

Da mesma forma poderiam atualizar seus regimentos internos de acordo com as alterações do Código de Processo Penal, vez que parte deles é omisso a respeito.

Ainda, onde não houver audiências por vídeo conferência, abandonar as cartas de ordem impressas, que mais lembram os tempos do Império, passando a designar juízes para o cumprimento da colheita das provas fora da capital, assim agilizando o andamento

E assim, quem sabe um dia, veremos nos sites os resultados positivos dessas ações penais originárias ou, quem sabe ainda, nem as veremos, pois passaram simplesmente para a primeira instância.


[1] Foro deve se limitar a crimes de responsabilidade. Em:  http://www.conjur.com.br/2007-jun-06/foro_limitar_crimes_responsabilidade?pagina=3, acesso 27.7.2016

[2]

[3] http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4725047, acesso 30.7.2016.

[4] http://www.stj.jus.br/webstj/Processo/Boletim/?vPortalAreaPai=183&vPortalArea=584, acesso 27.7.2016.

[5] http://www.cnj.jus.br/corregedoria/justica_aberta/?, acesso em 21 jul. 2016.

[6] http://www.tjsp.jus.br/Download/SecaoDireitoCriminal/Estatisticas/2010/Setembro.pdf, acesso em 28.7.2016.

[7] http://www2.trf4.jus.br/trf4/controlador.php?acao=pesquisar_portal, acesso em 28.7.2016.

[8] http://veja.abril.com.br/brasil/stf-autoriza-prefeito-de-barueri-a-voltar-ao-cargo/, acesso 26.7.2016.

Autores

  • Brave

    é desembargador federal aposentado do TRF da 4ª Região, onde foi corregedor e presidente. Mestre e doutor em Direito pela UFPR, pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da USP, é professor de Direito Ambiental no mestrado e doutorado da PUC-PR. Presidente da International Association for Courts Administration (IACA), com sede em Arlington (EUA). É vice-presidente do Ibrajus.

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