Falha do sistema

Foro deve se limitar a crimes de responsabilidade

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

6 de junho de 2007, 15h38

1 – O foro privilegiado no Brasil

O Brasil adota o sistema de foro privilegiado, ou seja, ações penais contra determinadas autoridades tramitam nos tribunais e não nos juízos de primeira instância. Nas palavras de Pontes de Miranda, diz-se “fôro privilegiado aquele que cabe a alguém, como direito seu (elemento subjetivo, pessoal, assaz, expressivo); portanto, o foro do juízo que não é o comum” (Comentários à Constituição de 1967, tomo V, RT, p. 237).

Segundo Júlio Fabbrini Mirabete, há pessoas que exercem cargos e funções de especial relevância para o Estado e em atenção a eles é necessário que sejam processados por órgãos superiores, de instância mais elevada (Processo Penal, 2ª ed., Atlas, p. 181). Em síntese: órgãos superiores da Justiça teriam maior independência para julgar altas autoridades.

No Brasil, proclamada a República em 1889, a Constituição de 1891, no artigo 57, parágrafo 2º, instituiu o foro privilegiado, dando competência ao Senado para julgar os membros do Supremo Tribunal Federal nos crimes de responsabilidade e, ao STF, para julgar os juízes federais inferiores (artigo 57, parágrafo 2º) e o presidente da República e os ministros de Estado nos crimes comuns e de responsabilidade (artigo 59, II). A partir de então, ora mais, ora menos, todas as Constituições mantiveram o foro privilegiado.

Atualmente, a Constituição de 1988 dá ao Senado Federal competência para julgar o presidente da República, o vice-presidente, os ministros do STF, o procurador-geral da República e o advogado-geral da União, nos crimes de responsabilidade (artigo 52, I e II).

Ao STF cabe julgar o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República nos crimes comuns e, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os ministros de Estado, os membros dos Tribunais Superiores (STJ, TST, TSE e STM), do Tribunal de Contas da União e chefes de missão diplomática de caráter permanente (artigo 102, I, “b” e “c”).

Ao Superior Tribunal de Justiça cabe julgar, nos crimes comuns, os governadores de Estados e do Distrito Federal e, nestes e nos de responsabilidade, os desembargadores dos tribunais de Justiça, os membros de Tribunais de Contas dos Estados, TRFs, TRTs, TREs, Conselhos e Tribunais de Contas dos municípios e agentes do Ministério Público que atuem nos tribunais (artigo 105, I, “a”).

Aos Tribunais Regionais Federais atribui-se o julgamento, nos crimes comuns e de responsabilidade, dos juízes federais, juízes do Trabalho, juízes militares e procuradores da República, da área de sua jurisdição (artigo 108, I, “a”).

Ao Tribunal Superior Eleitoral cabe julgar os juízes dos Tribunais Regionais Eleitorais e, a estes, julgar os juízes eleitorais, nos crimes de responsabilidade.

Finalmente, aos Tribunais de Justiça cabe o julgamento dos prefeitos (CF, artigo 29, VIII), dos juízes de Direito e promotores de Justiça, secretários de Estado e outras autoridades conforme previsão nas Constituições Estaduais.

Este é o sistema brasileiro. Necessário, ainda, explicar que crimes comuns são os previstos no Código Penal e leis extravagantes, e crimes de responsabilidade são aqueles praticados por funcionários públicos e agentes políticos (por exemplo, prefeitos e juízes) em razão de suas funções. De resto, cumpre registrar que os deputados federais e senadores, uma vez recebida pelo STF a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal, poderão ter a ação penal sustada, se assim decidir a Casa a que pertençam (CF, artigo 53, parágrafo 3º).

2 – O foro privilegiado no exterior

Cada país adota o sistema que lhe parece mais conveniente. No continente europeu, a Constituição de 1974 de Portugal não prevê ação penal originária nos tribunais. Porém, ela estabelece que os deputados só podem ser processados com autorização da Assembléia (artigo 160, inciso 3).

Na Espanha, a Constituição de 1978, ao tratar do Poder Judicial (artigos 117 a 127 ), não prevê a existência de foro privilegiado. Na Constituição Suíça de 2006, inexiste menção explícita a foro privilegiado. No entanto, há referência à possibilidade de julgamento por uma única instância superior, no caso o tribunal federal, que é a Suprema Corte do país (artigo 32, inciso 3).

A Holanda, na sua Constituição de 1983, não prevê a existência de foro privilegiado, apesar de que a Carta Magna relegue a maior parte das questões da Justiça à lei ordinária, inclusive a possibilidade de pessoas que não são magistrados fazerem parte da administração dos tribunais (artigo 116, inciso 3). A Constituição da Itália, de 1947, prevê caber à Corte Constitucional o poder de julgar o presidente da República pelos crimes praticados (artigo 135).


Na África, a Constituição de 1980 da República de Cabo Verde não faz referência ao assunto, limitando-se a afirmar que os juízes, nos casos previstos em lei, podem ser responsabilizados criminalmente pelos seus julgamentos e decisões (artigo 85, inciso 3).

A Constituição da República Popular de Moçambique, ao tratar da organização judiciária, não prevê qualquer tipo de foro privilegiado (artigos 69 a 75), resguardando, apenas, os deputados da Assembléia Popular, que não podem ser presos, salvo em flagrante delito, nem processados sem autorização deste órgão ou da sua Comissão Permanente (artigo 49).

Na América do Norte, os Estados Unidos não adotam o sistema de foro privilegiado. Na América do Sul, a Constituição Argentina de 1994 adota-o, porém de forma restrita, limitando-se a dar à Câmara dos Deputados o direito de acusar perante o Senado, que exerce o poder de julgar, o presidente, o vice-presidente, o chefe de gabinete de ministros, os ministros e os membros da Corte Suprema, por mal desempenho nas suas funções ou por crimes de responsabilidade e comuns (artigo 53 e 59).

Na Colômbia, a Constituição Política de 1991 adota o regime de foro privilegiado para o julgamento do presidente da República, membros do Congresso, procurador-geral da Nação, ministros de Estado, defensor do Povo, agentes do Ministério Público junto à Corte e ao Conselho de Estado, diretores de departamentos administrativos, controlador-geral da República, embaixadores e chefes de missão diplomática, governadores, magistrados de tribunais, generais e almirantes da Força Pública (artigo 235, 2 a 4). No Equador, a Constituição de 1998 é omissa a respeito, inclusive quando trata do Poder Judicial (artigos 191 a 208).

Como se vê, o tratamento dado à matéria é absolutamente diferente nos diversos países. É possível, ainda, que parte dos que foram mencionados regulem o assunto através de leis ordinárias. Mas, em exame preliminar, é possível afirmar que em nenhum país o foro privilegiado é estendido a tantos atores como no Brasil.

3 – A ineficiência do foro privilegiado no Brasil

Nunca se deu ─ e nem se dá ─ maior atenção às ações penais originárias no Brasil. O mundo acadêmico não se preocupa com os temas de política judiciária e administração da Justiça. Raríssimas são as dissertações de mestrado ou teses de doutorado. Todavia, agora a questão do foro privilegiado está na ordem do dia, tendo, inclusive, sido objeto de manifestação contrária da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), no dia 1º de junho passado. E não é sem razão, pois este é um dos maiores problemas da impunidade na esfera criminal.

No passado, o número de autoridades que gozavam do direito ao foro privilegiado era pequeno. Apenas para dar-se um exemplo, no início da década de 70, havia 33 desembargadores no Tribunal de Justiça de São Paulo, enquanto hoje são 360. Calcula-se que, ao todo, o número de magistrados de segunda instância, incluindo todas as Justiças, aproxime-se de 1.300.

Por outro lado, até 1988, os prefeitos respondiam ações penais na primeira instância e, depois da Constituição, no tribunal de Justiça. No âmbito do Ministério Público, para falar apenas do Federal, o número que era irrisório nos anos 80, atingiu agora centenas. Pois bem, todas estas autoridades e mais outras tantas (só juízes são cerca de 13 mil) têm foro privilegiado. Não é, pois, de surpreender, que nos tribunais existam denúncias desde fatos graves, como homicídio ou corrupção passiva, até as mais banais práticas contravencionais.

Entretanto, apesar da mudança e do acréscimo de ações penais originárias nos tribunais, a estrutura destes continua a mesma, preparada apenas para receber recursos. O único tribunal brasileiro que se adaptou ao novo modelo foi o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que criou uma Câmara especializada no julgamento de prefeitos (4ª. Câmara Criminal).

Os demais continuaram como antes, sem providência alguma, com funcionários que não tinham  e ainda não têm  a prática de processar uma ação penal, sem salas próprias para audiências e com dificuldades para as medidas mais corriqueiras, como o recolhimento de fiança.

Da mesma forma, ministros e desembargadores não estão habituados a interrogar réus, ouvir testemunhas e conduzir a prova. A complementar a ineficiência, a maioria das provas são produzidas por cartas de ordem, em locais distantes do julgamento. A própria investigação do crime é feita com maior dificuldade.

No caso dos juízes, por força da Lei Complementar 35/79, artigo 33, parágrafo único, aquilo que deveria ser apenas uma apuração preliminar, tal qual um inquérito policial, torna-se um procedimento com contraditório, ora mais, ora menos, conforme entender o relator.

Quando a autoridade investigada é um parlamentar ou um chefe do Poder Executivo, simplesmente não há previsão para a condução das investigações, como e quem deve fazê-las. Os regimentos internos dos tribunais não costumam disciplinar o assunto. Mas, depois de concluída a apuração, a denúncia só pode ser recebida por órgão colegiado (Lei 8.038/90, artigo 6º), o que motiva pedidos de vista que podem retardar o ato em meses ou anos. E uma vez instaurada a ação penal, entra-se em um emaranhado burocrático de delegação de colheita de provas, já que um ministro ou desembargador não costuma viajar e ouvir testemunhas em outras cidades e, se o fizer, seus processos no tribunal ficarão parados.


Mais poderia ser dito. Inclusive, da desdita pela qual passam os acusados inocentes, já que as ações penais não terminam. Mas um só fato é suficiente para dispensar maiores considerações. No Supremo Tribunal Federal, há muitos anos ninguém é condenado em ações penais originárias. Talvez o último réu condenado tenha sido o deputado Francisco Pinto, da Bahia, que na década de 70 protestou contra a visita do general Augusto Pinochet ao Brasil. Preso por crime contra a segurança nacional, acabou condenado por crime contra a honra.

O mesmo sucede, regra geral, nos demais tribunais, exceto em casos de maior simplicidade na apuração da prova. É necessário, contudo, registrar que esta ineficiência não pode ser atribuída aos ministros ou desembargadores, sabidamente envolvidos com milhares de processos a exigir-lhes dedicação absoluta. A falha é do sistema. Mas, por ser grave e por estar hoje mais do que nunca visível, precisa ser ressaltada.

4 – O bom senso recomenda revisão do instituto

O tema foro privilegiado está na ordem do dia. Um país que pretende colocar-se entre as principais nações do planeta não pode arrastar a pecha da corrupção ou da ineficiência no seu combate (com grande colaboração das ações penais originárias). No ano de 2002, o Brasil colocou-se em 45º lugar no indicador anual de corrupção da “Transparência Internacional” (Gazeta Mercantil, 29.8.2002, A-12). Em 2006, todavia, na lista de 206 países pesquisados pelo Banco Mundial, caiu de posição assumindo o 106º lugar (O Estado de São Paulo, 16.9.2006, B8). Diante de tal quadro, merecem reflexão as seguintes medidas:

4.1 – Restringir a competência por prerrogativa de função aos crimes de responsabilidade. Com efeito, ainda que seja compreensível levar um juiz federal a julgamento perante o Tribunal Regional Federal, pela prática de um crime de responsabilidade (por exemplo, prevaricação), é absolutamente sem sentido que se proceda da mesma forma no caso de crime comum, como um acidente de trânsito que resulte em lesões corporais culposas. Restringindo a competência dos tribunais aos crimes de responsabilidade, estar-se-ia dando maior importância aos juízes de primeira instância e desobstruindo-se a pauta dos tribunais, que ficariam com mais tempo para os casos de maior gravidade. Esta alteração dependeria de Emenda à Constituição.

4.2 – Afastar a possibilidade de foro privilegiado para os agentes políticos aposentados ou sem mandato. Se a ação penal originária dos tribunais já é exceção, a inclusão de aposentados nesta categoria é, ainda, mais excepcional. Inexistente em toda parte, dela só se tem notícia na Constituição da Colômbia, artigo 174. Evidentemente, nada justifica este tratamento especial, pois, se o foro privilegiado é uma forma de evitar acusações sem fundamento, por motivos pessoais (por exemplo, ódio, inveja, divergências políticas), uma vez fora do cargo o agente político, nada justifica que se perpetue esta deferência.

Imagine-se um juiz de um Tribunal Regional do Trabalho que, por discussões envolvendo questões de vizinhança, sofra uma representação por crime de ameaça (Código Penal, artigo 147) A adotar o foro privilegiado, responderá perante o Superior Tribunal de Justiça, em Brasília.

4.3 – Evitar o foro privilegiado para as ações de improbidade administrativa (Lei 8.429/92). Inexiste previsão constitucional para que se reconheça tal benefício às autoridades que gozam, na área criminal, de foro privilegiado. Mas os que são favoráveis a tal posição argumentam que as autoridades não podem se ver expostas a ações precipitadas, por vezes propostas com finalidade política ou por sentimentos pessoais menos nobres. Realmente, este é um risco. Tal procedimento pode ocorrer e, regra geral, sem controle por parte das Corregedorias do Ministério Público.

Em outras palavras, qualquer autoridade dos Poderes da República e do próprio Ministério Público podem ver-se envolvidas em uma Ação Civil Pública que tramitará por 10 ou mais anos e que não pode ser trancada por uma instância superior. Mas, se esta é uma situação de risco, maior ainda será o estabelecimento de foro privilegiado para as ações de improbidade administrativa, posto que, em tal hipótese, elas não terão a menor previsibilidade de desfecho. Exatamente como as ações criminais originárias.

O correto, então, será o próprio Ministério Público promover cursos de capacitação aos seus agentes, mostrando as conseqüências de uma ação proposta de forma impensada, bem como apurar faltas funcionais quando se evidencie abuso ou desvio de poder (o Conselho Nacional do Ministério Público tem um papel importante nesta busca de equilíbrio).

Por outro lado, os juízes de primeira instância precisam conscientizar-se da importância desses pedidos e evitar que se instaurem ações precipitadas, inclusive, se for o caso, indeferindo a inicial ou excluindo a parte no despacho saneador.

Ainda, o artigo 17, parágrafo 5º da Lei 8.429/92, que declara preventa a jurisdição para todas as outras ações eventualmente propostas, deve ser observado com rigor, a fim de evitar que o réu tenha que se defender em diferentes (e eventualmente distantes) comarcas. No entanto, o que não se justifica é acabar com este instrumento poderoso de controle dos atos administrativos, por um ou outro excesso que tenham ou venham a ser cometidos.

5 – Conclusões

1) O Brasil é um país que adota de forma ampla o foro privilegiado às suas autoridades, estendendo esta regra a milhares de agentes políticos.

2) As ações penais originárias, propostas em tribunais contra aqueles que detêm o privilégio de foro, são de uma ineficiência absoluta, e as estatísticas (regra geral, inexistentes) podem provar que as decisões de mérito não chegam a 5 por cento dos casos.

3) Estender o foro privilegiado a aposentados ou parlamentares não reeleitos é aumentar a falta de efetividade, sem qualquer justificativa teórica ou prática.

4) Estender o foro privilegiado às ações por improbidade administrativa é passar a elas a falta de efetividade que caracteriza as ações penais.

5) Reduzir a prerrogativa de foro aos crimes de responsabilidade, excluindo os crimes comuns e manter a competência da Justiça de primeira instância para os demais casos (aposentados, não reeleitos e acusados de improbidade administrativa) é dar um passo à frente para que o Poder Judiciário cumpra o seu papel de distribuir Justiça em tempo razoável.

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