Primeiro dever fundamental do Supremo Tribunal Federal é dizer não
23 de fevereiro de 2016, 8h05
Por outro lado, as constituições também impõem deveres, dentre eles o de pagar tributos, sem os quais o Estado deixa de existir, e o governo não pode governar. Existem outros, tal como o de prestar serviço militar, o de trabalhar como mesário nas eleições, ou servir no tribunal do júri. Deveres individuais ou coletivos são menos estudados pela doutrina e até mesmo um pouco esquecidos pelas pessoas, que não são muito afeitas a serem obrigadas a fazer algo, ou a cumprir regras que lhes são impostas. As pessoas são movidas pelo princípio do prazer, por meio do qual tudo que lhes dá prazer e as afasta do desprazer é bem-vindo. Logo, direitos são bem-vindos; deveres, como regra, não são bem-vindos.
Dentre os diversos deveres impostos pela Constituição e demais normas jurídicas existem aqueles que se referem às pessoas em geral, e outros que são dirigidos a um ou mais grupos de indivíduos. Dessa forma, seguindo os exemplos acima referidos, o dever de pagar tributos atinge a todos os que habitam o país, mesmo aqueles que aqui estejam apenas como turistas, afinal, nenhum país do mundo devolve o imposto incidente sobre o cafezinho que se toma no aeroporto, mesmo que se esteja apenas em trânsito rumo a outros países. A prestação de serviço militar (que bem poderia ser melhor desenhada para abranger serviços ao país, e não apenas no âmbito militar) atinge apenas os homens, e não as mulheres. E por aí seguem os deveres.
Um grupo de pessoas que possuem deveres específicos são os servidores públicos, afinal, recebem do Estado para servir ao público, e não para se servir dele. Por isso mesmo que são denominados de servidores — aqueles que servem. E sua remuneração decorre dos tributos que todos pagamos — todos, sem exceção. Do drogadito que habita a cracolândia, no centro de São Paulo, aos ribeirinhos da Amazônia, todos pagamos tributos para manter a máquina estatal, na qual um dos itens mais caros é a remuneração dos servidores públicos, que – nunca é demais repetir — devem prestar serviços ao público.
Os servidores públicos possuem deveres para com o público, a depender do cargo que ocupam e da função que desempenham. Por exemplo, os membros das diversas polícias (federal, civil, militar etc.) servem para preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio (artigo 144, CF). As Forças Armadas servem para a defesa da pátria, a garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem (artigo 142, CF). E, foco deste artigo, o Supremo Tribunal Federal, que é composto de 11 indivíduos denominados em razão do cargo como ministros, que serve prioritariamente para guardar a Constituição (artigos 101 e 102, CF). Os ministros do STF, portanto, têm por função, em razão do cargo, guardar a Constituição. É seu dever fazer isso, não um direito ou uma faculdade. A expressão correta e exata é esta: é seu dever, por força da Constituição, serem seus guardiões.
No início do século XX, dois juristas de enorme qualidade técnica travaram um debate sobre quem deveria desempenhar o papel de guardião da Constituição. Hans Kelsen defendia que o guardião dos compromissos assumidos pela sociedade na Constituição deveria ser um órgão composto de pessoas com conhecimento jurídico, pois a Carta é um documento jurídico com funções políticas. Carl Schmitt, em sentido oposto, defendia que a guarda dos compromissos constitucionais deveria ser atribuída a um órgão político, pois a Constituição é um documento político, com forma jurídica. As democracias ocidentais predominantemente adotam as posições de Kelsen, atribuindo o controle de constitucionalidade a um órgão jurídico específico, como no caso da maioria dos países europeus — Itália, Portugal e Espanha dentre eles —, ou atribuindo esse controle a todo o corpo de juízes que compõem o Poder Judiciário, como nos Estados Unidos ou no Brasil, onde há um órgão de cúpula, mas qualquer juiz pode apreciar questões relativas à constitucionalidade das leis. A posição teórica defendida por Schmitt, após um período de esplendor na ascensão e na manutenção do nazismo na Alemanha, tornou-se declinante.
O grande risco de qualquer desses sistemas ocorre quando o guardião muda de posição e se compreende como dono da Constituição. Aqui reside o perigo. Aos guardiões é incumbida uma função, qual seja, a de guardar algo em proveito de outrem. Isto é, o exercício de uma função. Os servidores públicos incumbidos de guardar a Constituição a devem guardar em proveito da sociedade que lhes atribuiu essa função pública, e não se tornar donos dela. Ninguém deu aos guardiões a propriedade da Constituição, apenas sua guarda.
Observe-se que essa guarda se desenvolve em pelo menos dois âmbitos: contra os demais poderes, pois as normas jurídicas por eles criadas podem estar em desacordo com a Constituição e devem ser anuladas; e contra aquelas condutas que atentarem contra a Constituição, quando então deverão ser fulminadas.
E aqui surge o primeiro dever fundamental dos guardiões da Constituição: dizer não. Dizer não ao presidente da República, aos deputados e senadores; dizer não aos ministros e autoridades em geral; dizer não às pessoas simples do povo e também aos endinheirados e detentores do poder; dizer não à pressão da mídia. Dizer não em todos os sentidos que divirjam daqueles estabelecidos pela Constituição. Afinal, são seus guardiões. Quando um órgão, alguém ou um grupo de pessoas fizer alguma coisa em desacordo com a Constituição, o primeiro dever fundamental dos seus guardiões é dizer não; dizer que isso não pode ser feito dessa forma, e então seja desfeito o ato ou anulada a norma. Eis o primeiro dever fundamental do Supremo Tribunal Federal, guardião de nossa Constituição: dizer não.
A situação se torna ainda mais complexa quando se verifica que o nosso guardião da Constituição, o Supremo Tribunal Federal, reúne mais poderes que qualquer outro no mundo. Nossa Constituição concede ao STF os mesmos poderes que a Constituição norte-americana atribui à Suprema Corte, por meio do controle difuso de constitucionalidade, bem como os poderes que o sistema europeu continental possui, com o controle concentrado. Ou seja, temos um sistema misto onde os ministros são vitalícios até os 75 anos e guardam a Constituição por meio dos sistemas difuso e concentrado. Poder maior não há.
Pois bem, tudo isso para dizer que, infelizmente, semana passada, o STF baixou a guarda. Deixou de lado a função de guarda da Constituição e a raptou. Entendeu-se como seu dono, subjugou-a e deu a seu texto uma interpretação frontalmente contrária ao que nele consta. Utilizou-se do contexto político em que vive o país e decidiu pelas consequências — da forma que os juristas chamam de consequencialismo jurídico. Não disse não. Dobrou-se às circunstâncias. Não cumpriu seu dever fundamental.
Basta ler. Foram dois os julgamentos. Em um deles, o STF validou o artigo 6º, da Lei Complementar 105, onde consta que: “As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente”.
Ocorre que a Constituição, em seu artigo 5º, inciso XII, diz que esse procedimento só pode ocorrer por meio de ordem judicial, isto é, existe uma reserva de jurisdição. E isso só pode ocorrer com a finalidade de investigação criminal ou instrução processual penal. Basta ler a norma: “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”.
No outro julgamento, estava em debate o artigo 5º, LVII, onde consta que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, e o STF entendeu que não era preciso o trânsito em julgado para que uma pessoa fosse desde logo presa após o julgamento em segunda instância. Algo como um “adiantamento de pena”, uma espécie de “conta corrente prisional”.
Não quero discutir se as finalidades pretendidas são boas ou más, pois isso se refere a questões políticas, e nosso modelo de guardião é amparado em Kelsen: um órgão eminentemente jurídico, pois a Constituição é um documento jurídico com funções políticas. Lembremos que a posição de Schmitt, que compreendia a Constituição como um documento político apenas com formas jurídicas, descambou para o nazismo. É preciso ter cautela e retornar ao Direito.
Não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Um cachorro jamais será um gato. Ou, em linguagem poética, basta lembrar a cena do balcão na peça Romeu e Julieta, de Shakespeare, quando a donzela diz ao seu amado, membro de família rival: “Que há em um nome? O que chamamos de rosa, com outro nome, exalaria o mesmo perfume tão agradável”. Ou ainda, observando as artes plásticas, olharmos a tela do surrealista René Magritte, denominada A traição das imagens, na qual se lê “isto não é um cachimbo”, pois é apenas a imagem de um cachimbo — mas não deixa de representá-lo, uma vez que seguramente não é a imagem de um pato.
Se as normas constitucionais não estão mais adequadas, vamos mudá-las. O Direito e a Constituição não são produtos hauridos do céu ou construídos por sábios trancados em torres empoeiradas. É algo vivo. Se é necessário mudar, mudemos — ouvindo o povo, no qual reside a soberania (artigo 1º, I, CF), e não por meio de uma interpretação constitucional composta de seis dentre 11 pessoas, cuja função é guardar a Constituição, e não alterá-la. Eles não nos representam para isso.
Alguém poderia fazer um paralelo com outro julgamento anterior, muito aplaudido pela sociedade, que ficou conhecido por casamento de pessoas do mesmo sexo. De fato, a Constituição estabelece no artigo 226, parágrafo 3º: “Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Ora, se está escrito homem e mulher, teria o STF errado ao reconhecer como unidade familiar a união de pessoas do mesmo sexo? Não, segundo meu ponto de vista, pois nesse caso há uma ampliação dos direitos fundamentais. Nos dois julgamentos que ora estão sendo comentados, foi restringido o direito fundamental de liberdade, seja pela permissão de invasão da privacidade, seja pela restrição ao direito de ir e vir, por meio do encarceramento antecipado — expressamente vedados pela Constituição. No caso do casamento gay, os direitos fundamentais foram ampliados, tornando a convivência entre duas pessoas — não importa o sexo — mais humana e protegida pelo Direito.
Discutir procedimentos informais de modificação constitucional envolvendo restrição a direitos fundamentais é um erro. A leitura do texto constitucional não deve ser feita de maneira formalista, mas de maneira substancialista. Ampliar direitos fundamentais é permitido; restringi-los, jamais. Guimarães Rosa inicia seu livro Grande Sertão, Veredas afirmando que “viver é perigoso”. Restringir direitos fundamentais também é perigoso.
É comum se dizer que o STF tem a última palavra sobre o Direito e a Constituição. Não concordo. O STF tem a última palavra no processo, nos autos, mas não se pode estudar o Direito e a Constituição apenas pela jurisprudência. Fosse assim, deveriam ser rasgados todos os livros doutrinários e fechadas as faculdades de Direito; passaríamos todos a estudar nas escolas de magistratura.
Registro que faço a presente crítica também vinculado a um dever fundamental — não a uma faculdade ou a um direito. Em diferentes graus, conheço vários dos ministros do STF, pois advogo naquela corte e tenho atividades acadêmicas que envolvem alguns deles. Porém, a doutrina tem que apontar os acertos e erros das decisões ocorridas. Esse é o papel da doutrina, doutrinar. É o que estou fazendo. É nosso dever fundamental, nesse caso, apontar que o STF errou e que o caminho que está seguindo, ao sabor das conveniências políticas de plantão, é extremamente perigoso. Em nome de maior celeridade no aprisionamento de pessoas e de fiscalização tributária, o que pode até ser desejável, o STF está se tornando dono da Constituição. Por ora, foi apenas um rapto. Temos que resgatá-la.
Faço coro com o ministro Marco Aurélio, que foi vencido nas duas votações: aquelas não foram “tardes felizes”. É necessário estar atento e corrigir enquanto ainda há tempo. O primeiro dever fundamental do STF é dizer não.
*Texto alterado às 13h24 do dia 24 de fevereiro de 2016 para correção.
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