Limite Penal

Interrogatório deve ser
o último ato do processo

Autores

  • Aury Lopes Jr.

    é advogado doutor em Direito Processual Penal professor titular no Programa de Pós-Graduação Mestrado e Doutorado em Ciências Criminais da PUC-RS e autor de diversas obras publicadas pela Editora Saraiva Educação.

  • Alexandre Morais da Rosa

    é juiz de Direito de 2º grau do TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) e doutor em Direito e professor da Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

3 de julho de 2015, 8h00

Spacca
Você já se imaginou se defender de algo que não sabe? Embora ainda prevaleça uma mentalidade inquisitória na maioria dos agentes processuais, aos poucos, as alterações do Sistema Processual Penal reconhecem o interrogatório como meio de defesa.

A redação anterior do interrogatório no processo penal era quase uma confissão cristã. Depois de citado, havia uma audiência entre o acusado e o juiz, no qual era indagado sobre o conteúdo da imputação. Nem advogado era necessário, mas se fosse, não poderia perguntar ou participar. Sim, até 2003, era assim que funcionava.  A doutrina repetia um mantra inquisitório: o interrogatório é ato pessoal do juiz. Apenas juiz, acusado e escrivão para digitar (ou datilografar, em tempos mais longínquos…). Somente depois disso era nomeado o defensor dativo para aqueles que não tivessem condições de constituir um advogado. E isso perdurou até o século XXI, inacreditavelmente.

A imagem lembrava, como bem sabemos, a confissão entre o pecador e o representante do senhor. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, por sua 5ª Câmara, composta por Amilton Bueno de Carvalho, Aramis Nassif, Genacéia Alberton e Luis Gonzaga da Silva Moura, passaram a anular todos os julgamentos por ausência de defensor. Sobreveio, então, a modificação do Código de Processo Penal (Lei 10.792/2003), exigindo sua presença. Com a alteração promovida pela Lei 11.719/2008, o interrogatório passou a ser o último ato do processo, depois de finalizada a instrução.

Aliás, a Lei 9.099/1995, no seu artigo 81 já indicava neste sentido. É alinhar-se ao conhecido “direito a última palavra”, consagrado em diversas codificações europeias há séculos, segundo o qual, o acusado tem sempre o direito de falar por último, após conhecer a integralidade da acusação e das provas que pesam contra ele. É da essência do direito de defesa pessoal. Então hoje, temos interrogatório no final e com a imprescindível presença e participação da defesa (e também do acusador, que poderá fazer perguntas, as quais não está o acusado obrigado a responder).

Contudo, esse deslocamento do interrogatório para o final da instrução somente ocorreu na Reforma de 2008, e a Lei de Drogas é de 2006, sendo que no procedimento por ela previsto, o interrogatório continua a ser o primeiro ato do processo. Eis o paradoxo.

E uma boa parte dos atores judiciários não se deu conta disso, já que o sistema não pode ser lido em pedaços. Assim é que ou se entende como meio de prova ou meio de defesa. E as reformas recentes indicam no sentido de que prevalece como meio de defesa. Logo, interrogatório somente depois da prova produzida. Antes é uma armadilha cognitiva própria do jogo inquisitório em que a antecipação da culpa vigora.

Isso porque manter o interrogatório como primeiro ato é objetivar o acusado para dele se extrair a verdade (ainda real, para muitos que não leram Salah Khaled Jr), fazendo com que o acusado tenha que adivinhar o que será dito sobre ele pelas testemunhas posteriores. Inverte-se a flecha do tempo de maneira insidiosa. Inspirados, talvez, na exposição de motivos de Francisco Campos, na qual o acusado é simples objeto da prova, legitima-se a trampa da autodefesa de fachada. Resta mantida a lógica inquisitória

O Supremo Tribunal Federal decide em sentido contrário: “A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que as novas disposições do Código de processo penal sobre o interrogatório não se aplicam a casos regidos pela Lei das Drogas. Precedentes: ARE 823822 AgR, Relator (a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 12/08/2014;” (HC 125094 AgR / MG – MINAS GERAIS AG. REG. NO HABEAS CORPUS Relator (a): Min. Luiz Fux, julgado em 10.02.2015).

Mas paradoxalmente, quando se trata do Código Penal Militar, decide o oposto: “1. O art. 400 do Código de processo penal, com a redação dada pela Lei nº 11.719/2008, fixou o interrogatório do réu como ato derradeiro da instrução penal. 2. A máxima efetividade das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa (CRFB, art. 5º, LV), dimensões elementares do devido processo legal (CRFB, art. 5º LIV) e cânones essenciais do Estado Democrático de Direito (CRFB, art. 1º, caput) impõem a incidência da regra geral do CPP também no processo penal militar, em detrimento do previsto no art. 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69. Precedente do Supremo Tribunal Federal (Ação Penal nº 528 AgR, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, j. em 24/03/2011, DJe-109 divulg. 07-06-2011). 3. Ordem de habeas corpus concedida.” (HC 115698, Relator: Min. Luiz Fux, julgado em 25/06/2013). Em alguns casos alegam que não foi demonstrado o prejuízo.

Entretanto, uma leitura minimamente constitucional faz chegarmos à conclusão, como fez Larissa Aparecida Vidal, em monografia de final de curso apresentada na UFSC (Interrogatório como meio de prova ou meio de defesa?), no sentido de ser meio de defesa. Diz Larissa Vidal: “mesmo com o desrespeito ao princípio da ampla defesa e impedindo que o réu tenha acesso a tudo que há ou haverá no processo, às versões daqueles que o acusam e as provas juntadas, ou seja, com uma “pseudo-ampla-defesa”, os tribunais superiores mantêm o posicionamento de ser constitucional essa prejudicial à defesa do acusado no processo penal da lei de drogas.”

O interrogatório é um momento crucial e o silêncio pode ser arriscado, especialmente quando os julgadores sustentam mentalidade inquisitória, como já falamos anteriormente.

Quais as soluções? Sustentamos[1] que ou o juiz “ordinariza” o rito, ou seja, segue o novo rito ordinário, mais amplo, que situa o interrogatório como último ato; ou utiliza o rito da Lei de Drogas, mas desloca o interrogatório para o final.

Mas e se o juiz não fizer isso? Daí como se trata de um jogo processual, no exercício de tática lícita, cabe ao defensor valer-se das regras do jogo. Como assim? Se o magistrado determinar que seja interrogado primeiro, deve permanecer em silêncio e depois de produzida a prova requerer, por seu defensor, a aplicação do artigo 196 do CPP (A todo tempo o juiz poderá proceder a novo interrogatório de ofício ou a pedido fundamentado de qualquer das partes”). O requerimento que não é ilícito, teria o condão de fazer valer a plenitude da defesa e caso indeferido pode significar expressivo cerceamento de defesa.

Logo, manter o interrogatório como primeiro ato da instrução na Lei de Drogas é uma manipulação da ampla defesa, própria da mentalidade inquisitória, cuja tática defensiva poderá contornar utilizando-se das regras do jogo processual. Por que, salvo se possível a viagem no tempo, não podemos nos defender do que não foi produzido.


[1] Neste sentido Aury Lopes Jr., ‘Direito Processual Penal’, 12ª edição, editora Saraiva, 2015.

Autores

  • é doutor em Direito Processual Penal, professor Titular de Direito Processual Penal da PUC-RS e professor Titular no Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais, Mestrado e Doutorado da PUC-RS.

  • é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

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