Desiludidos e aterrorizados

Jogo de barganhas é caminho para instauração da arbitrariedade punitiva

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19 de fevereiro de 2015, 5h20

Um artigo publicado por alunos da Harvard Law School (Simplicity as Equality in Criminal Procedure. Harvard Law Review. Cambridge. n.120.  pp 1585-1603, 2007) enfrentou a questão de como réus mais abastados, podendo contratar advogados mais eficazes na exploração das complexidades do processo penal, ficam menos sujeitos às ações penais. Em contrapartida, os mais pobres, submetidos com frequência a defensores menos experientes ou mesmo custeados pelo estado, são mais facilmente selecionados pelas promotorias para serem processados. Em vez de escolher um acusado rico, processa-se o pobre com a tranquilidade de que sua defesa técnica não terá condições de neutralizar eventual nulidade ou debater no processo de modo a causar dificuldades à promotoria.

É claro que o cenário norte-americano não contempla, como ocorre no Brasil, o princípio da obrigatoriedade da ação penal, o que em tese significa um parâmetro igualitário na seleção de casos que serão submetidos à acusação pública. Além disso, a proposta do artigo da Harvard Law Review é de explorar a simplificação dos procedimentos criminais sem interferir na amplitude dos direitos dos defendentes.    

O dado do artigo que chama a atenção e inspira os piores vaticínios (ao estilo “e se fosse no Brasil…”) é a exploração dos acordos (plea bargain) como metodologia processual preponderante para os casos selecionados pela promotoria. Réus com menos recursos, a princípio, ficam à mercê das propostas de acordo mediante as quais, por exemplo, concordam em confessar delitos menos graves e ficam livres de punições mais severas. Às vezes a proposta resulta também em delação, facilitando o trabalho da promotoria para produzir provas contra outros. A triste história relatada aqui na revista eletrônica Consultor Jurídico onde a delação premiada teve o triplo efeito de condenar uma inocente, manter solto o culpado e permitir que o culpado cometesse outro delito dá bem a tônica de determinados sintomas que podem vir com a voga das delações. Todos esses efeitos já se descortinam bem facilmente no horizonte do abuso de um sistema processual de delações e barganhas. Mas o ar que se respira no Brasil pode ainda trazer outros efeitos.

O espetáculo do momento, ao menos em sua parte exposta como evidente nos noticiários, a novela do "lava jato" e seus múltiplos desdobramentos, deu fôlego aos defensores da delação premiada como tática de investigação e de elemento aparentemente definitivo da supressão da, por assim dizer, impunidade. Parece que será uma tendência daqui para frente, ainda mais quando se sabe que o projeto do novo código de processo penal sistematiza uma metodologia de acordos, de inspiração nas cortes norte-americanas.

A aplicação do método — não é possível negar isso — pode disseminar a sensação de que o sistema processual, agora amparado na disseminação de confissões, vai espalhar pela sociedade brasileira a sensação de que agora sim, todos serão punidos. Entretanto, como se vê na experiência americana, há o risco de que a metodologia processual de acordos torne-se um atalho a ameaçar continuamente e sobretudo duas ordens de réus: os desiludidos (por não acreditarem ter, ou por não terem recursos ou acesso a recursos para sua defesa, por se encontrarem mal defendidos, por não acreditarem que terão um julgamento justo etc) e os aterrorizados (normalmente conduzidos nas primeiras horas da manhã em operações pirotécnicas sob mandado de prisão ou de mera “condução coercitiva”).

O horizonte está propício para proliferação das propostas de acordo como sistemática de macabra economia processual em nome da suposta redução da “impunidade” e em detrimento de tudo o que se fez historicamente (e a duras penas), para se construir um processo penal cercado de regras e de segurança jurídica. A experiência americana tem a capacidade de nos mostrar que a substituição de um processo penal rigidamente regrado por um jogo de barganhas tem a inclinação, sim, de reduzir a sensação de impunidade (porque devida ou indevidamente, mais gente é punida desse modo e do ponto de vista de satisfação pública, é isso que interessa), mas será um caminho bastante curto para a instauração da arbitrariedade punitiva, sem qualquer consideração à culpa ou inocência.

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