Observatório Constitucional

A Medida Provisória dos acordos de leniência e a insegurança jurídica

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26 de dezembro de 2015, 9h43

No dia 18 de dezembro de 2015, a presidente da República publicou a Medida Provisória 703, alterando dispositivos relativos à celebração de acordos de leniência na Lei 12.846, de 2013 (Lei Anticorrupção), e revogando um dispositivo da Lei 8.429, de 1992 (Lei de Improbidade), e na Lei 12.529, de 2011 (Lei do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência).

A Exposição de Motivos Interministerial (EMI) 207/2015, veio firmada pelos titulares do Planejamento, Nelson Barbosa; da Advocacia-Geral da União, Luís Inácio de Lucena Adams; da Controladoria-Geral da União, Valdir Moysés Simão, e da Justiça, José Eduardo Cardozo.

Segundo se extrai da referida exposição de motivos, a MP 703 teria dois efeitos principais, do ponto de vista jurídico. O primeiro deles seria a ampliação da participação institucional nos acordos de leniência conduzidos pelos órgãos de controle interno dos poderes executivos, como a CGU[1]. Assim, esses acordos passariam a poder contar com a participação das advocacias dos entes federados, como a AGU, e do Ministério Público. O segundo, uma consequência do primeiro, seria o aumento da segurança jurídica dos interessados, resultando em maior estímulo nas colaborações com as investigações, o que, por sua vez, resultaria em maior rapidez na celebração dos acordos.

Do ponto de vista econômico, o governo afirma que a celeridade resultante das alterações impactaria positivamente nas suas tentativas de “salvaguardar a atividade econômica e a preservação de empregos”[2]. Apesar dessas justificativas conterem expectativas legítimas, o texto da MP tem tudo para provocar uma série de efeitos negativos, alguns, inclusive, contraditórios com o que esperam os signatários da EMI 207/2015.  Um dos efeitos negativos poderá ser, justamente, sobre a segurança jurídica. E isso principalmente em razão das múltiplas dúvidas quanto à constitucionalidade, tanto formal quanto material, da medida provisória.

Preliminarmente, a própria presença dos pressupostos à edição de medidas provisórias, a relevância e a urgência, é discutível. É que já existe proposição legislativa em avançada tramitação na Câmara dos Deputados com texto bastante parecido com o da MP 703. Trata-se do PL 3.636, de 2015. Já aprovada no Senado Federal, essa proposição tramita em regime de prioridade na Câmara dos Deputados. Segundo o rito estabelecido no regimento, após o exame do PL 3.636/2015 pela Comissão Especial, o texto iria ao Plenário da Casa[3].

No dia 15 de dezembro de 2015, o relator, deputado André Moura (PSC-SE), apresentou à Comissão Especial parecer favorável à aprovação do texto do Senado Federal, com modificações. Apesar disso, o presidente da Comissão, deputado Vicente Cândido (PT-SP), pediu a prorrogação do colegiado por mais 10 sessões. O pedido do presidente inviabilizou as negociações para a votação do parecer antes do fim da sessão legislativa de 2015.

Essa dificuldade na tramitação do PL 3.636 foi usada como justificativa na EMI 207/2015:

8. Considerando que a Proposta ainda depende de deliberação na Comissão Especial antes de ser encaminhada ao Plenário da Câmara e tendo em vista o recesso parlamentar que se aproxima, não há previsão em curto prazo de apreciação final da matéria.

9. Assim, em razão da urgência de se contar com procedimentos mais céleres para firmar acordos de leniência e salvaguardar a continuidade da atividade econômica e a preservação de empregos é que se faz necessária a edição desta Medida Provisória, de texto análogo ao já aprovado pelo Senado Federal. (destacamos)

Além de ser intrigante que um deputado da base peça a prorrogação da Comissão Especial em uma matéria que o governo julga urgente, a presença da urgência está, pelo menos em parte considerável, sob relativo controle do Governo. É que o acordo de leniência com base na Lei 12.846/2013 refere-se a sanções administrativas aplicadas por órgãos vinculados ao próprio governo, como autarquias, Ministérios ou a própria CGU. E muitos dos processos que levariam a essas sanções sequer tinham sido instaurados até poucos dias atrás[4].

Portanto, a existência de projeto de lei em avançado estado de tramitação com conteúdo bastante similar e a possibilidade de o Governo influir no ritmo com que a urgência se concretiza depõem contra a presença do pressuposto da urgência, fragilizando a constitucionalidade da norma e sujeitando-a a questionamentos que reduziriam a segurança jurídica dos atos praticados com base nela.

No conteúdo, a MP 703 tem dispositivos que, em princípio, infringem algumas das vedações materiais presentes no art. 62, §1º, I, b, da Constituição Federal. É que partes da MP dispõem sobre normas de direito penal, processual penal e processual civil. A título de exemplo, citamos a alteração no prazo prescricional aplicável a ilícitos contidos na Lei 8.666/1993, sem excluir expressamente sua aplicação a ilícitos penais, e a revogação de norma processual civil contida na Lei de Improbidade Administrativa. Isso significa mais vícios de inconstitucionalidade formal.

Mas são as inconstitucionalidades materiais, as mais preocupantes.

A MP 703, assim como o texto aprovado no Senado e transformado no PL 3.636 na Câmara dos Deputados, mistura dois sistemas de responsabilização civil por atos atentatórios ao patrimônio público: o sistema de responsabilização de pessoas jurídicas, a cargo da CGU, e o sistema de responsabilização de pessoas físicas, notadamente, agentes públicos, de competência do Ministério Público, do Judiciário e do TCU.

A Lei 12.846/2013, Lei Anticorrupção, trata da “responsabilização objetiva administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a administração pública”. Nesse sistema, a possível prática dos “atos lesivos à administração pública”, previstos no artigo 5º da Lei, são investigados por meio de processos administrativos instaurados no âmbito dos órgãos do Poder Executivo, entre os quais a CGU. Esses processos podem levar à aplicação de sanções administrativas às empresas que, comprovadamente, os tenham praticado.  As sanções aplicáveis são relacionadas à natureza do processo (administrativo) e à categoria da pessoa investigada (pessoa jurídica), e são, principalmente, multas e declaração de inidoneidade para participar de licitação ou contratos com a administração pública (com base na Lei 8.666/1993).

Assim, a Lei Anticorrupção forma, claramente, um sistema de aplicação de sanções administrativas de impacto econômico a empresas que tenham praticado atos lesivos ao patrimônio público. As autoridades atuando nesse sistema são, essencialmente, ligadas ao Poder Executivo.

Os acordos de leniência firmados no âmbito desse sistema devem, por princípio, impactar sobre a aplicação de sanções próprias dele, sem interferir em investigações a respeito da malversação de recursos públicos por burocratas ou políticos. Ou seja, o Poder Executivo só pode “perdoar” a aplicação de sanções que ele mesmo tem competência para aplicar.

Já o sistema de responsabilização de pessoas físicas, principalmente agentes públicos, é mais complexo, combinando a responsabilização administrativa e a civil; a aplicação de sanções de naturezas distintas (perda de cargo, prisão, multa etc.) e a atuação de instituições pertencentes a diferentes poderes, ou independentes de todos eles, como o Judiciário, o TCU e o Ministério Público. Aqui, uma das leis mais importantes é a Lei de Improbidade Administrativa, Lei 8.429/1992.

Pois bem, na prática, a MP 703, a pretexto de “ampliar” a participação institucional nos acordos, confunde os dois sistemas e permite que acordos de leniência firmados entre a CGU e empresas impeçam o Ministério Público e o TCU de investigar os agentes públicos envolvidos nos atos de corrupção daquelas empresas, desde que a AGU e o Ministério Público “participem” do acordo. A exigência da participação do Parquet deveria ser uma salvaguarda suficiente para evitar que o acordo firmado entre a CGU e uma empresa prejudicasse o exercício de suas competências no tocante à investigação e punição da improbidade. Ocorre que a MP 703 é totalmente vaga quanto à forma da participação do Ministério Público.

Enquanto a proposição legislativa[5], de autoria do senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) que deu origem ao PL 3.636 previa claramente que o Ministério Público teria atuação obrigatória em todos os acordos de leniência firmados pela CGU, cumprindo-lhe examinar a legalidade, a moralidade, a razoabilidade e a proporcionalidade dos seus termos, o substitutivo aprovado no Senado e a MP 703 não explicitam o papel do Parquet nos acordos, deixando-o a reboque da CGU, que será o órgão condutor do acordo.

Nesse cenário, o Ministério Público se veria diante de um dilema: ou abre mão de seu papel de fiscal da legalidade no acordo ou “participa” do acordo e corre o risco de não poder exercer sua função de repressão à improbidade e à corrupção dos agentes públicos.

Esses dispositivos, por inviabilizarem a atuação do Ministério Público, podem representar afronta aos artigo 127 e 129 da Constituição Federal. O TCU é posto em situação ainda mais subalterna relativamente à CGU.

O parágrafo 14 do artigo 16 da Lei 12.846, com a redação dada pela MP, estabelece duas condições para que o TCU exerça as funções que lhe são atribuídas pelo artigo 71, II, da Constituição Federal relativamente aos atos que estejam sendo objeto de acordo de leniência. A primeira delas é que a CGU assine o acordo e o encaminhe ao TCU. A segunda é que a compensação financeira paga pela empresa ao Erário não seja suficiente para a reparação do dano. Assim, o TCU, órgão auxiliar do Poder Legislativo justamente na fiscalização do Poder Executivo, torna-se dependente da CGU, que é subordinada ao Chefe do Poder Executivo, o Presidente da República.

A imposição dessas condições, que inviabilizam a atuação do TCU, é uma afronta ao próprio Poder Legislativo, atingindo o cerne do disposto no artigo 2º da Constituição Federal, que é cláusula pétrea, além de enfraquecer de forma irreversível os princípios de uma administração pública republicana, previstos no artigo 37.

O problema é que essa confusão entre a responsabilização, conduzida pelo Poder Executivo, de pessoas jurídicas e a responsabilização de agentes públicos por órgãos de outros poderes é o cerne da MP 703, conforme afirmaram os próprios ministros signatários da exposição de motivos já:

10. As inovações permitem em síntese que o acordo de leniência seja celebrado com a participação do Ministério Público e da Advocacia Pública, com o escopo de dar segurança jurídica às empresas celebrantes, tendo em vista os efeitos do acordo nas esferas administrativa e civil. Ou seja, o acordo de leniência celebrado com a participação de todos os atores impedirá o ajuizamento de ação por improbidade administrativa e de quaisquer outras ações cíveis contra a empresa pelo mesmo fato objeto do acordo.
(…)
12. No tocante à reparação do dano, a Medida Provisória resguarda a competência dos Tribunais de Contas para apurar o dano ao Erário, quando entender que o valor previsto no acordo celebrado é insuficiente para a reparação integral. Caso em que será assegurado o contraditório e a ampla defesa.

O curioso é que essas medidas não são necessárias para dar a pretendida segurança jurídica às empresas interessadas em firmar acordos de leniência com o Poder Executivo para evitar sanções que comprometam sua existência. Ao contrário, com tantos pontos de duvidosa constitucionalidade, o mais provável é que a celebração de acordos de leniência baseados na MP 703/2015 fomentem diversas batalhas judiciais em todas as instâncias, podendo, ao final, prejudicar ainda mais as tentativas de manter a atividade econômica e o nível de emprego.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).


[1] Embora a norma se aplique a todas as controladorias, ao longo do texto, falaremos em Controladoria-Geral da União ou CGU, por uma questão de economia narrativa. Da mesma forma, falaremos em AGU e em TCU, e não em advocacias públicas ou tribunais de contas.
[2] Conforme a já citada exposição de motivos.
[3] Conforme Requerimento nº 3.757/2015, de autoria do deputado federal Vicente Cândido (PT/SP), presidente da Comissão Especial destinada a proferir parecer ao Projeto de Lei nº 3636, de 2015.
[4] Conforme noticiado há poucos dias, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) instaurou no dia 22 de dezembro de 2015 os primeiros processos para investigar a formação de cartel em “licitações para contratação de serviços de engenharia, construção e montagem industrial onshore conduzidas pela Petrobrás”. Ver notícia em http://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/cade-instaura-processo-para-investigar-cartel-nas-licitacoes-da-petrobras/
[5] PLS 105, de 2015.

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