Economia do compartilhamento deve respeitar os direitos do consumidor
23 de dezembro de 2015, 9h22
Dentre as várias transformações que o desenvolvimento tecnológico e das comunicações vem operando na sociedade de consumo contemporânea[1] está o surgimento da denominada economia do compartilhamento, também conhecida como consumo colaborativo. Esta economia dita do compartilhamento (sharing economy) concebe novos modelos de negócio não mais concentrados na aquisição da propriedade de bens e na formação de patrimônio individual, mas no uso em comum — por várias pessoas interessadas — das utilidades oferecidas por um mesmo bem.[2] A estruturação destes negócios ganha força pela internet, e se dá tanto sob o modelo peer to peer (P2P), quanto no modelo business to business (B2B), ou seja, entre pessoas não profissionais e entre empresários.
A escolha do tema para esta coluna resulta da importância crescente do consumo colaborativo em vários países do mundo, e mais recentemente no Brasil. Há várias formas de interpretar-se o fenômeno. Desde uma interpretação com ênfase econômica, que dá conta de uma redução de custos e otimização de recursos em razão do compartilhamento, até uma interpretação cultural, que identifica neste novo modelo favorecido pela internet uma genuína inspiração de reação ao consumismo e adesão ao consumo sustentável.[3] Por outro lado, também serve para viabilizar o acesso a bens e utilidades de maior custo (a exemplo do car sharing), mediante precisa definição das necessidades a serem satisfeitas (transporte eventual) e o dispêndio apenas daquilo que for utilizado (mensalidade, gasolina utilizada de um local a outro, sem pagar estacionamento).
Muitos setores da economia já estão sendo afetados por esta nova forma de oferecer e consumir produtos e serviços no mercado, como é o caso do transporte de pessoas, ou a locação de automóveis[4], e o compartilhamento de veículos, a hospedagem turística, utilização de ferramentas, dentre outros. Quem opta pelo compartilhamento, de um lado quer fruir da maior utilidade possível dos bens de sua propriedade, e ser remunerado por isso, em caráter eventual ou não. Por outro lado, quem procura utilizar os bens sem adquiri-los, visualiza a oportunidade de investir apenas o necessário para satisfazer sua necessidade momentânea, abrindo mão de imobilizar parte de seus recursos em bens que utilizará apenas eventualmente.
A tendência é de franca expansão, possibilitada pela criatividade e desenvolvimento de novas plataformas de negócios na internet pelas denominadas empresas start-ups, reconhecidas pela estruturação de modelos de negócio inovadores em diversos setores. Note-se que a prestação de serviços ou a oferta de bens podem ser realizadas por intermédio de uma plataforma digital, por pessoas que não atuam necessariamente como profissionais, nem se organizam sob a forma empresarial. É o caso daquele que deseja alugar um dos cômodos da sua casa, por temporada, para um casal de turistas, ou o que divide o uso do seu automóvel ou de certas ferramentas, com outras pessoas interessadas, visando repartir os custos desta utilização ou, mesmo, ser remunerado e obter certo lucro desta atividade.
Em todos estes casos está presente o fenômeno da conexidade contratual[5], e se deve perguntar, justamente, se podem ser caracterizadas como relações de consumo aquelas estabelecidas entre quem deseja contratar a utilização e o outro que oferece e compartilha o uso de um bem, mesmo não sendo um empresário ou profissional que realize a atividade de modo organizado. Ou ainda, situações já conhecidas de pessoas comuns que se utilizam, de modo espontâneo e eventual, da internet para vender coisas usadas. A rigor, estas situações em que não está presente uma organização profissional, ou o exercício habitual da atividade para a obtenção de lucro, não se consideram relações de consumo.
Destaque-se, contudo, que todas estas situações de consumo colaborativo pela internet utilizam plataforma digital mantida por alguém que se dispõe a viabilizar espaço ou instrumento de oferta por intermédio de um site ou aplicativo. O site ou aplicativo atua não apenas como um facilitador, mas como aquele que torna viável e, por vezes, estrutura um determinado modelo de negócio. Em outros termos, o site ou aplicativo permite o acesso à “highway” e atua como guardião deste acesso, um gatekeeper (“guardião do acesso”) que assume o dever, ao oferecer o serviço de intermediação ou aproximação, de garantir a segurança do modelo de negócio, despertando a confiança geral ao torná-lo disponível pela internet. No direito brasileiro, estarão qualificados indistintamente como provedores de aplicações de internet, de acordo com a definição que estabeleceu o artigo 5º, VII c/c artigo 15 da Lei 12.965/2014. Exige a norma, que se constituam na forma de pessoa jurídica, exercendo a atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos.
É a confiança no meio oferecido para as trocas e compartilhamentos, a base do comportamento das partes, levando-as a aderir ao modelo de negócio e por intermédio de determinada plataforma (site ou aplicativo), manifestar a vontade de celebrar o negócio. Exige-se daí o domínio de certas informações sobre quem se dispõe a oferecer o bem para uso compartilhado, ou as características do produto ou serviço oferecido. Ou daquele que pretende obter a contraprestação em dinheiro, a segurança sobre o modo como se viabiliza o pagamento. Nestes casos, poderão participar, inclusive, outros agentes, como aqueles que administrem os meios de pagamento para adimplemento do contrato (PayPal, cartões de crédito etc.), ou ainda seguradores, no caso em que a plataforma se disponha a garantir certos interesses das pessoas envolvidas no negócio. É o caso noticiado pela imprensa britânica em 2014, sobre empresa atuante no compartilhamento de casas e acomodações para interessados (Airbnb) e que, após a má publicidade causada por inquilinos desonestos que causaram danos aos donos dos imóveis locados, promoveu o aumento do valor da cobertura de seguro de danos em favor dos locadores nestas situações, como modo de atrair novos interessados.[6]
Nestes casos, os deveres de lealdade são exigíveis de todos, mas a pergunta que surge é qual a posição daquele que organiza e mantém o site ou o aplicativo de internet, e que desempenha esta atividade com caráter econômico, remunerando-se direta (por percentual dos valores contratados ou por taxas fixas) ou indiretamente (por publicidade ou formação e negociação de banco de dados, por exemplo).
O dever deste guardião (gatekeeper, guardião do acesso) será o de garantir a segurança do meio negocial oferecido, em uma espécie de responsabilidade em rede (network liability), cuja exata extensão, contudo, será definida caso a caso, conforme o nível de intervenção que tenha sobre o negócio. A economia do compartilhamento é economia, business, custa algo, há presença de um consumidor. Há situações em que poderá haver responsabilidade do intermediador pela satisfação do dever principal de prestação do negócio objeto de intermediação com o consumidor. Mas na maior parte das vezes, aquele que apenas aproxima e intermedia o negócio deverá garantir a segurança e confiança no meio oferecido para realizá-lo, não respondendo, necessariamente, pelas prestações ajustadas entre partes.
O critério para a exata distinção destas situações reside no próprio conteúdo do serviço oferecido pelo site ou aplicativo de internet, ao qual, como regra, uma vez viabilizando a oferta de produtos e serviços no mercado de consumo, atrai a incidência do Código de Defesa do Consumidor e caracteriza aquele que o explora como fornecedor de serviços (artigo 3º). Contudo, para caracterizar-se o vício ou defeito do serviço, como é próprio ao sistema de responsabilidade do fornecedor, deverá ser determinado de antemão, quais os fins (artigo 20) ou a segurança (artigo 14) que legitimamente seriam esperados pelos consumidores[7] em relação ao serviço oferecido por aquele que explora o site ou aplicativo que promove a intermediação entre as partes.
Tratando-se de serviços de intermediação, portanto, não bastará apenas a qualificação daquele que a promove com fins econômicos como fornecedor. A exata medida da responsabilidade daquele que explora o site ou aplicativo que viabiliza o consumo colaborativo mediante compartilhamento de bens e serviços, deriva da confiança despertada — e daí a necessidade da precisa definição de vício ou defeito da prestação —, o que dependerá do exame caso a caso, do modelo de negócio organizado a partir do site ou aplicativo.
O desenvolvimento de sites e aplicativos que promovam alternativas de consumo compartilhado de bens e serviços se associa, em geral, ao melhor interesse do consumidor, uma vez permitem uma melhor utilização de produtos e serviços e, ao mesmo tempo, podem fomentar a concorrência com setores organizados da economia, melhorando suas práticas. Tratando-se de serviços oferecidos no mercado de consumo, há incidência da legislação de proteção do consumidor. Uma pergunta final que traduz as dificuldades de lidar com as inovações trazidas pela internet, diz respeito à necessidade de regulação específica, ou não, destas várias situações de compartilhamento. A questão tem maior destaque, naturalmente, quando se trate de serviços cuja prestação se dê, na economia tradicional, sob o regime regulado — caso da polêmica entre o aplicativo Uber e os serviços de táxi.
A nosso ver, contudo, o reconhecimento da aplicação do Código de Defesa do Consumidor à oferta de aplicações de internet em geral (artigo 7º, XIII, da Lei 12.965/2014 – Marco Civil da Internet), é, por si, uma garantia aos consumidores de produtos e serviços, inclusive nos modelos de consumo colaborativo em que aquele que promove a intermediação atua profissionalmente. Nestes termos, deve-se ter em conta que o excesso de regulamentação específica e difusa pode inibir a formação de um ambiente seguro para inovação. Deve, o Código de Defesa do Consumidor, incidir, então, em diálogo com o Marco Civil da Internet e outras fontes, para assegurar a adequada proteção da confiança despertada pelas novas tecnologias, como é o caso das situações de consumo colaborativo desenvolvidas por intermédio da internet. Inovar os papéis de consumidor e de fornecedor em rede, o uso compartilhado de produtos e serviços, sem perder os direitos básicos já assentados, representa a evolução da sociedade brasileira para um direito adaptado à nova economia digital. Este é o desafio no qual o Código de Defesa do Consumidor pode prestar grande contribuição.
[1] Veja-se: MARQUES, Claudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor. São Paulo: RT, 2004. 32 e ss.
[2] MELLER-HANNICH, Caroline. Verbraucherschutz und Sharing Economy – Conferência da Rede Alemanha-Brasil de Pesquisas em Direito do Consumidor, UFRGS, 2015.
[3] LATOUCHE, Serge. Sortir de la société de consommation, LLL: Paris, 2010, p. 105 e ss.
[4] Dado interessante divulgado pela versão eletrônica do The Wall Street Journal de 17 de dezembro último indica a tendência de aumento do uso compartilhado de de automóveis nos Estados Unidos considerando especialmente que o tempo de utilização dos automóveis é de 5%, contra 95% do tempo em que eles ficam parados e sem uso. Veja-se: http://br.wsj.com/articles/SB11872728649731044760404581420422311949328
[5] Veja-se: MOSSET ITURRASPE, Jorge. Contratos conexos: grupos y redes de contratos. Santa Fé: Rubinzal-Culzoni, 1999.
[6] Conforme informação da reportagem publicada na edição do jornal londrino The Observer, na edição de 12 de outubro de 2014, “Tech monthly: sharing economy: world of sharing”, p. 14.
[7] MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do consumidor. 5ª ed. São Paulo: RT, 2014, 532-533.
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