Jurisprudência Fiscal

Carf, o cerceamento de defesa e outras questões fiscais

Autores

  • Mary Elbe Queiroz

    é advogada tributarista sócia da Queiroz Advogados Associados pós–doutora em Direito Tributário (Universidade de Lisboa – Portugal) Doutora em Direito Tributário (PUC-SP) mestre em Direito Público (UFPE) professora e presidente do Conselho Jurídico do Ibrei.

  • Antonio Elmo Queiroz

    é advogado sócio do escritório Queiroz Advogados Associados e diretor do Centro de Estudos Avançados de Direito Tributário e Finanças Públicas do Brasil.

18 de setembro de 2014, 15h16

Spacca
Mary Elbe Queiroz e Elmo Queiroz [Spacca]Quando um contribuinte é cientificado de uma autuação da Receita Federal, e os motivos fáticos ou legais lhe parecem confusos, fica frente a uma grave decisão: ou apenas questiona o cerceamento ante a dificuldade para se defender, ou, para não correr o risco de ficar sem defesa, contesta também o mérito da autuação mesmo com a deficiência. E a escolha gera consequências, porque, caso venha a produzir uma defesa, não adiantará alegar o cerceamento, já que a própria petição ficará como prova que superou o cerceamento.

Essa situação fica clara em dois julgados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), publicados no mesmo dia. No primeiro, o contribuinte não rebateu todos os pontos, e assim a Turma do Carf decidiu que o processo deveria recomeçar, para haver plena defesa; assim ementado:

Acórdão 3401-002.620 (publicado em 12.09.2014)
Necessário resguardar o direito de defesa quando o contribuinte demonstrar não compreensão suficiente dos motivos da notificação ou autuação.

No segundo julgado, o contribuinte, apesar de alegar cerceamento, fez uma defesa abordando todas as questões, portanto a Turma do Carf considerou o problema superado; assim ementado:

Acórdão 1402-001.756 (publicado em 12.09.2014)
O auto de infração deverá conter, obrigatoriamente, entre outros requisitos formais, a capitulação legal e a descrição dos fatos. Somente a ausência total dessas formalidades é que implicará na invalidade do lançamento, por cerceamento do direito de defesa. Ademais, se o contribuinte revela conhecer plenamente as acusações que lhe foram imputadas, rebatendo-as, uma a uma, de forma meticulosa, mediante impugnação, abrangendo não só outras questões preliminares como também razões de mérito, descabe a proposição de cerceamento do direito de defesa.


Correta omissão
Quando um contribuinte movimenta valores na sua conta corrente bancária, mas não comprova a origem dos recursos, fica sujeito a ser autuado com base no artigo 42 da Lei 9.430/96, que é o caso geral para tributar omissão bancária. Todavia, pode ser que o contribuinte indique a origem dos recursos, e o problema esteja no fato de serem recursos não tributados de uma atividade econômica que exercia. Nesse caso, a autuação seria outra, fundamentada no § 2º do mesmo artigo 42 da Lei 9.430/96, com tributação típica de pessoa jurídica (artigo 41, parágrafo 1º, alínea “b”, da Lei 4.506/64).

A diferenciação às vezes não é observada, mas é importante tendo em vista o princípio da estrita legalidade que inspira a atuação estatal no direito tributário, e foi o motivo pelo qual Turma do Carf cancelou uma autuação; assim ementado:

Acórdão 2201-002.483 (publicado em 09.09.2014)
IRPF. AUTUAÇÃO COM BASE EM DEPÓSITOS BANCÁRIOS. LIMITES.
Constatada a possibilidade de tributação específica (§ 2º do art. 42 da Lei nº 9.430/1996), incabível a manutenção da exigência com base em depósitos bancários de origem não identificada, sob pena de configurar-se novo critério jurídico de lançamento. Vedada a transmudação da fundamentação legal da exigência.


Ágio no TRF/3ª Região
Publicado importante e desde logo polêmico acórdão do TRF-3 que julgou uma autuação da Receita Federal tratando de indedutibilidade de um ágio advindo de operação societária. Infelizmente a discussão avança no Poder Judiciário antes que a esfera administrativa estabeleça os parâmetros para haver a dedutibilidade do ágio, já que a CSRF, que pacificará as divergências internas das Turmas do Carf, ainda não apreciou as principais questões que cercam o tema.

Enquanto isso, o TRF-3 foi ao mérito, apontando: (a) ser irrelevante os atos societários estarem formalmente corretos, podendo ser requalificados para encontrar a essência da operação e (b) que é artificial haver formação do ágio dentro de um mesmo grupo, só sendo possível se for operação no mercado, com terceiros. O ponto a destacar é que a autuação originariamente se debruçou mais sobre a segunda operação societária, que permitiu a dedução do ágio; mas o TRF-3 se prendeu mais à primeira operação societária, que formou o ágio, inclusive menosprezando o laudo de rentabilidade futura, o que não era fundamento da autuação. Reforço de fundamento que o Carf não faz, sob pena de inovar e relançar o auto de infração. E assim foi mantida a sentença, que já tinha concordado com a legalidade na autuação; assim ementado (Obs: houve desistência do recurso, mas não aceita porque a procuração não dava poderes):

Apelação Cível 0017237-12.2010.4.03.6100 (publicado em 15.09.2014)
2. Apelação contra a sentença que (…), no mérito, denegou a segurança requerida para o fim de se cancelar os créditos tributários referentes ao IRPJ e CSLL. (…)
4. O fato da impetrante ter concentrado seus argumentos na adequação contábil do seu procedimento – com nítida ênfase no aspecto formal da sua conduta – não impede o magistrado de joeirar outros aspectos jurídicos da lide.
5. É cediço que o processo civil brasileiro adota o princípio "iura novit curia", segundo o qual o juiz deve conhecer o direito aplicável aos fatos que são levados ao seu escrutínio.6. O e
xame dos autos revela que existe bastante homogeneidade dos fundamentos da sentença com as razões que foram adotadas pela fiscalização para glosar as amortizações feitas pela impetrante, através de ágio, com o fim de reduzir o pagamento de IRPJ e CSL. (…)
9. É inegável que, do ponto de vista contábil, a impetrante respeitou os art. 7º e 8º da Lei 9.532/97 (assim como os art. 385 e 385 do RIR/99), inclusive porque não havia impedimento, à época, para o aproveitamento de ágio entre empresas coligadas, controladas ou integrantes do mesmo grupo econômico, vedação que somente passou a existir com a Lei 11.638/07.
10. No entanto, a questão trazida aos autos vai além do formalismo contábil, em função do princípio contábil da primazia da essência sobre a forma.
11. Sendo certo que a contabilização do ágio não exige, necessariamente, desencaixe de recursos financeiros, não é menos certo que deve existir efetiva contribuição do investidor em qualquer espécie de bem suscetível de avaliação em dinheiro, de modo a conferir "fundamento econômico" ao ágio.
12. É indispensável que a integralização tenha ocorrido com base no valor real de mercado, o que não ocorre quando o "valor do negócio" é artificialmente estabelecido dentro do mesmo grupo econômico.
13. A entidade empresarial somente terá o direito de se apropriar de um ágio, para fins de amortização, quando isso verdadeiramente tiver representado um custo financeiro ou econômico para ela, segundo a sua interação com os agentes do mercado.
14. A autuação se afigura correta, pois tudo indica uma triangulação societária com a finalidade de criação artificial de ágio, para posterior amortização e de redução do IRPJ e da CSL, envolvendo empresas que tinham os mesmos controladores.
15. A fiscalização verificou que a operação contábil jamais implicou em qualquer desembolso ou investimento pela “XX”, tendo havido somente uma reavaliação de seus ativos, baseado em informações da própria interessada, com o único intuito de gerar despesas com a amortização do ágio, reduzindo ou eliminando o pagamento de IRPJ e CSL durante o período de amortizações mensais.
16. A elisão tributária somente tem lugar quando os benefícios legais são pautados em fatos reais.
17. Faltando esta veracidade, a elisão se convola em evasão fiscal, insuscetível de convalidação judicial.
18. Rejeitadas as alegações preliminares.
19. Apelação improvida.


Além da multa
Um tema que sempre desperta polêmica entre os contribuintes é a possibilidade de sofrerem multas caso distribuam lucros no mesmo período em que tenham débitos em aberto com o fisco, como é previsto no artigo 32 da Lei 4.357/64; norma, aliás, que está tendo a constitucionalidade questionada no STF na ADI 5.161.

No caso abaixo, uma autuação foi além e interpretou que, já que não poderia a PJ distribuir lucros, o valor repassado para os sócios só poderia ser considerado como pró-labore e, portanto, tributado. Todavia, Turma do Carf cancelou a autuação, já que a previsão é apenas de multa para esses casos; assim ementado:

Acórdão 2401-003.551 (publicado em 01.09.2014)
LUCROS DISTRIBUÍDOS. EMPRESA SUPOSTAMENTE EM DÉBITO. TRATAMENTO TRIBUTÁRIO DOS VALORES COMO SE FOSSEM PRÓ-LABORE. IMPOSSIBILIDADE.
O fisco ao constatar que a empresa distribui lucros aos sócios, mesmo estando em débito com a Seguridade Social, deve aplicar multa por descumprimento de obrigação acessória e somente tributar as parcelas distribuídas como se fossem rendimento do trabalho caso reste evidenciado que efetivamente os pagamentos dizem respeito a pró-labore.


Contratos estudados
É prudente os contribuintes sempre conferirem se cumpriram as características dos institutos jurídicos quando utilizarem no dia a dia, pois a Receita Federal pode, posteriormente, requalificá-los para dar os efeitos tributários que entenda mais condizentes com a realidade fática, o que pode ser visto em duas decisões.

E foi o que ocorreu no caso abaixo, no qual uma pessoa jurídica concedia empréstimos para administradores e sócios, mas como apresentou para comprovar apenas os contratos de mútuo, sem registro e sem a prova da devolução dos recursos, uma autuação tributou-os como remuneração, e Turma do Carf manteve; assim ementado:

Acórdão 2301-003.554 (publicado em 01.09.2014)
DUPLICIDADE DE COBRANÇA PREVIDENCIÁRIA EM PRÓ-LABORE e EMPRÉSTIMOS DE SÓCIOS LANÇADOS COMO PRÓ-LABORE
Não está elencado na legislação a cobrança de salário contribuição previdenciária em empréstimos realizados pelas empresas contribuintes a seus empregados.
Mas no caso em tela, ficou demonstrado não se tratar de empréstimos, mas sim de pró-labore travestido de empréstimo, o que incide salário de contribuição previdenciária.


Duplo embrulho
ma inesperada confusão conceitual ocorreu em um processo administrativo, no qual o contribuinte alegou que o fisco fez uma compensação de ofício entre um pedido de restituição e, de outro lado, débitos já alcançados pela decadência. Todavia, a DRJ considerou que a decadência impede de lançar, mas não torna indevido o débito e portanto pode ser pago. Apreciando o caso, Turma do Carf, alegando que não podia tratar da decadência dos débitos, manteve a compensação dos mesmos débitos; assim ementado e fundamentado:

Acórdão 2402-003.522 (publicado em 02.09.2014)
RECOLHIMENTO A MAIOR. SIMPLES. RECEITA FEDERAL. COMPENSAÇÃO DE OFÍCIO.
Há respaldo legal para a Receita Federal utilizar valores pagos a maior para compensar de ofício débitos do mesmo contribuinte, nos termos do art. 73, parágrafo único, da Lei nº 9.430/1996 c/c art. 1º do Decreto nº 2.138/97.
Recurso Voluntário Negado.
Relatório (…)
Às fls. 688/692, foi proferido acórdão pela DRJ, negando provimento à manifestação de inconformidade sob os fundamentos de que: (…)
ii) O fato de o fisco não poder mais constituir o débito em razão da decadência não torna indevidas essas importâncias, pois a decadência somente atinge o direito de praticar o ato administrativo de lançamento, devendo os valores retidos a maior serem considerados como pagamento antecipado das contribuições devidas;
Voto (…)
Preliminarmente, a Recorrente alega que os valores dados pela Recorrida como devidos ao INSS em razão da exclusão da empresa do SIMPLES NACIONAL com efeitos em 2001 estão fulminados pela decadência nos termos da Súmula Vinculante n° 8, STF, impossibilitando a constituição do crédito tributário referente às competências de 01/2004 a 13/2004.
Porém, não cabe análise da decadência dos créditos tributários decorrentes da exclusão da Recorrente do regime SIMPLES, visto que o processo ora em julgamento não tem o condão de discutir o crédito tributário em si, mas sim o procedimento adotado pela Receita Federal ao compensar de ofício os valores devidos pelo contribuinte com os valores pagos à maior, que deveriam ser restituídos.


Decisões variadas
No Acórdão 9202-003.285 (publicado em 29.08.2014), demonstração do rigor com que a CSRF analisa a admissibilidade do Recurso Especial, pois, além de cobrar haver uma divergência com os mesmos fatos e normas para dar seguimento ao recurso, exigido também que esse entendimento divergente seja capaz de mudar o Acórdão recorrido; assim ementado: “o conhecimento do recurso especial de divergência pressupõe que o entendimento consagrado no acórdão paradigma seja suficiente para, se adotado na situação dos autos, resultar em reforma do acórdão recorrido”.

No Acórdão 2301-003.102 (publicado em 04.09.2014), cancelada uma parte da autuação, sendo aduzido que, mesmo para fins previdenciários, a CLT é o critério para caracterizar um vínculo trabalhista: “a caracterização de segurados como empregados é medida excepcional e requer a comprovação cabal da existência do vínculo empregatício, nos termos do art. 3º da Consolidação das Leis do Trabalho (“considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário”), bem como do artigo 12, inciso I, da Lei 8.212/91”.

Na Nota PGFN 1.020/2014 (publicada em 29.08.2014), a Fazenda Nacional, instada a se manifestar sobre a abrangência do parcelamento especial para lucros no exterior da Lei 12.865/13, registrou que o parcelamento só contemplaria os débitos ligados ao artigo 74 da MP 2.158-35/01 (momento da distribuição de lucros no exterior), e não para os litígios quanto ao artigo 25 da Lei 9.249/95 (sobre a própria possibilidade de tributação universal da renda).   

Autores

  • é advogada e professora, pós-doutora em Direito Tributário pela Universidade de Lisboa, e doutora pela PUC-SP; mestre em Direito Público pela UFPE; presidente do Centro de Estudos Avançados de Direito Tributário e Finanças Públicas do Brasil; presidente do Instituto Pernambucano de Estudos Tributários; membro imortal da Academia Brasileira de Ciências Econômicas, Políticas e Sociais; membro do Conselho Jurídico da Fiesp (Conjur); sócia do escritório Queiroz Advogados Associados e Palestrante da FocoFiscal.

  • é advogado, sócio do escritório Queiroz Advogados Associados e diretor do Centro de Estudos Avançados de Direito Tributário e Finanças Públicas do Brasil.

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