Tratados de direitos humanos anteriores à EC 45/04
30 de maio de 2013, 8h01
Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro pela forma comum, ou seja, sem observar o disposto no artigo 5º, §3º, da Constituição Federal, possuem, segundo a posição que prevaleceu no Supremo Tribunal Federal, status supralegal, mas infraconstitucional (Prova objetiva seletiva do II concurso público para ingresso na carreira da Defensoria Pública do Estado do Amazonas).
Na atual sistemática, se partirmos da premissa adotada pelo parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição da República torna-se possível conferir hierarquia constitucional a documentos complementares e subsidiários ratificados após a inclusão do aludido dispositivo, como é o caso da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto 6.949/2009), sem que se possa atribuir esse mesmo status aos instrumentos principais, isto é, os pactos internacionais citados na alínea "d" do preâmbulo daquele tratado, pela singela razão de terem sido ratificados anteriormente à introdução, em nosso ordenamento constitucional, do referido parágrafo 3º[2].
O Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana atentou-se para esse anacronismo ao examinar as alterações propostas pela PEC 29/00 (Reforma do Judiciário), no tocante à inclusão do parágrafo 3º ao artigo 5º. Na oportunidade, sugeriu-se que sua redação afirmasse simplesmente que "os tratados internacionais de proteção de direitos humanos ratificados pelo Estado brasileiro têm hierarquia constitucional"; ou que fosse reformulada, alternativamente, para "os tratados internacionais de proteção dos direitos humanos aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, gozarão de hierarquia constitucional".
Como essas propostas não surtiram efeito, deu-se origem à seguinte questão: os tratados internacionais de direitos humanos já ratificados ou mesmo promulgados pelo Brasil também podem integrar a Constituição da República, a despeito do que dispõe seu artigo 5º, parágrafo 3º? Em busca de soluções, a doutrina se desdobrou entre aqueles que, defendiam a incorporação automática[3] dos tratados firmados antes da EC 45/2004 ao texto constitucional, a teor do que passou a dispor seu artigo 5º, parágrafo 2º; e os que propugnavam pela recepção material[4], por parte daquele mesmo dispositivo, de todos os tratados internacionais de proteção de direitos humanos.
Embora essa última tese tenha alcançado certo prestígio em alguns tribunais[5], a ponto de se considerar encerradas "as controvérsias jurisprudenciais e doutrinárias suscitadas pelo parágrafo 2º do artigo 5º"[6], o fato é que a inserção do parágrafo 3º opõe-se, por si só, à interpretação de que o parágrafo 2º teria ensejado nivelamento constitucional para os tratados internacionais de direitos humanos preexistentes à EC 45/2004[7].
O legislador, atento a essa realidade, está buscando regulamentar a matéria por meio do Projeto de Resolução 204/2005, em que se propõe a criação do artigo 203-A, parágrafo 10, no Regimento Interno da Câmara dos Deputados[8], que passaria a admitir a equivalência de tratado ou convenção internacional sobre direitos humanos ratificados pelo Brasil anteriores à EC 45/2004, através de requerimento dirigido pelo Presidente ao Congresso Nacional[9], onde seria submetido à votação. Aprovado pelo Plenário, a matéria seria então regulada pelas disposições regimentais pertinentes ao trâmite e apreciação das propostas de emenda. Essa solução, no entanto, causa controvérsia no âmbito do próprio Legislativo. Três são as correntes que se põem de manifesto.
A primeira, nitidamente influenciada pelo radicalismo extremado internacionalista, insiste em considerar materialmente constitucionais os tratados de direitos humanos ratificados anteriormente à EC 45/2004, e propõe uma redação “mais adequada” para o retro mencionado parágrafo 10 do artigo 203-A, a fim de exprimir a necessidade daqueles compromissos serem recepcionados como normas equivalentes às emendas constitucionais, nos termos do parágrafo 3º do artigo 5º.
A segunda, formalista, defende a supressão do projetado artigo 203-A, parágrafo 10, ao argumento de ser impossível que um tratado já aprovado pelo quórum comum seja reapreciado na forma estabelecida pelo parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição da República, a fim de ser considerado equivalente a emenda constitucional. Segundo essa corrente, essa possibilidade feriria o princípio da segurança jurídica.
A terceira, por fim, entende que a transformação do conteúdo de uma lei ordinária em norma constitucional por meio de proposta de reforma à Constituição da República não representa nenhum óbice à segurança jurídica, na medida em que a inovação trazida pela EC 45/2004, não excluiu da regra do parágrafo 3º do artigo 5º os tratados de direitos humanos ratificados antes de sua promulgação; ao contrário, antes lhes concedeu maior enforcement no âmbito local em tempos de restrição às liberdades individuais.
Esse último posicionamento, favorável à ideia de que os acordos internacionais aprovados antes da EC 45/2004 possam ser reapreciados nos termos do artigo 5º, parágrafo 3º, da Constituição da República, para que passem a vigorar com status de norma constitucional, é, em nosso sentir, o que melhor se coaduna com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, razão pela qual, desde há muito, temos propugnado que "a salvaguarda da coerência do sistema estaria, eventualmente, na elaboração de uma resolução do Congresso Nacional, que se encarregaria de regular a matéria"[10].
Os debates legislativos, no entanto, indicam, até o momento, preferência pela posição formalista, com esteio em moderna doutrina constitucionalista, segundo a qual não seria possível um tratado, já aprovado pelo quórum comum, ser reapreciado para que, votado pelo quórum do parágrafo 3º possa ser considerado equivalente a emenda constitucional, porquanto "a Constituição projetou para o futuro e não tratou de disciplinar regras transitórias nesse sentido"[11].
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