Direito Comparado

Liberdade religiosa e a não discriminação indireta

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

23 de janeiro de 2013, 16h34

Na coluna da última semana (clique aqui para ler), analisou-se a decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos (CEDH no caso Eweida and Others v. the United Kingdom, de 15 de janeiro de 2013 [ECHR 12(2013)], no qual se afirmou a prevalência do princípio da não discriminação indireta no âmbito da liberdade religiosa.[1] É interessante retomar esse assunto, pois, no mesmo julgamento, a Corte também apreciou duas outras situações, uma delas bastante idêntica à pretensão da britânica Nadia Eweida, ligadas ao problema da religião e sua manifestação nos ambientes laborais.

Como exposto na coluna anterior, Nadia Eweida era empregada da British Airways e foi suspensa por se recusar a seguir o código de condutas da companhia, que não permitia o uso de símbolos ou adereços religiosos, além do uniforme. Ela ostentava um crucifixo, de modo visível, o que foi considerado pela empresa como uma quebra das normas internas.

A decisão da Corte Europeia, que contrariou o entendimento dos tribunais trabalhistas britânicos, favoreceu Nadia Eweida e foi além da mera proibição de discriminações diretas à liberdade religiosa, por definir que o empregador haveria ponderado inadequadamente o conflito entre seu direito potestativo de ordenação das atividades de seus empregados e a liberdade de exteriorizar a religião, especialmente por inexistir norma protetiva específica no Direito interno.

A CEDH também examinou, no mesmo julgamento, um recurso de Shirley Chaplin, uma enfermeira britânica de 56 anos, que trabalhava no Royal Devon and Exeter Hospital. Após uma carreira de 30 anos no hospital, a Sra. Chaplin foi advertida de que não poderia mais usar um crucifixo durante suas atividades profissionais. Segundo o empregador, a restrição baseava-se em normas internas, voltadas à proteção sanitária dos pacientes. A enfermeira contra-argumentou que o cordão com a cruz era uma forma de exteriorizar sua fé cristã. Ademais, a proibição tornava aparente a ideia de que ela usava a cruz com o desiderato de pôr em risco a vida dos pacientes, o que, na verdade, era uma simples forma de expressão de sua liberdade religiosa.

O hospital, que é uma instituição de caráter público, também sustentou a tese de que seguira estritamente as normas do Ministério da Saúde britânico, segundo as quais, para se minorar os riscos de infecção hospitalar, o uso de joias por profissionais da saúde, durante suas atividades, deve ser reduzido ao mínimo. Há proibição específica para cordões, colares e piercings faciais. Os eventuais interessados em usar roupas ou joias por razões de natureza religiosa ou cultural, nos termos do que imposto pelo Ministério da Saúde, deveriam levar a questão a seu superior, o qual poderia negar esse pedido, desde que fundado em motivos razoáveis.

A questão foi judicializada e os tribunais trabalhistas britânicos rejeitaram a pretensão da enfermeira Chaplin. Na instrução, provou-se que, por motivos de segurança e de saúde, outra enfermeira cristã e dois enfermeiros Sikhs foram proibidos de usar joias indicativas de suas religiões. Com a mudança dos uniformes em 2007, os quais passaram a ter uma gola em V, a chefe de Shirley Chaplin pediu-lhe que retirasse o crucifixo e daí nasceu a controvérsia.

Levada a questão à CEDH, o julgamento foi contrário ao recurso de Shirley Chaplin. É conveniente realçar que a Corte se valeu de uma técnica muito próxima da que o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha emprega em casos polêmicos: escolhem-se dois recursos com elementos descritivos muito similares (como se dá com a pretensão de Nadia Eweida e de Shirley Chaplin), mas com algum detalhe que os diferencia, e, com base nessa diferença, chega-se a dois tipos diferentes de conclusões, o que permite dilatar os fundamentos do acórdão para múltiplas hipóteses de fato. Essa técnica é bem perceptível no acórdão da CEDH, pois são constantemente comparados os recursos de Eweida e Chaplin.

Pode-se assim apresentar uma resenha da fundamentação do acórdão quanto ao recurso de Shirley Chaplin:

1. As regras quanto ao uniforme dos profissionais de saúde foram estabelecidas pelo governo e se pautaram por critérios objetivamente aferíveis e razoáveis (segurança sanitária e dos pacientes), além de estabelecerem alguma margem de discricionariedade para as chefias imediatas, o que, a depender de argumentos e circunstâncias aceitáveis, poderia abrandar o nível de restrição ao uso de objetos e adereços pessoais. Ficou devidamente provado, nos julgamentos ocorridos na Justiça trabalhista, que havia efetivo risco para os pacientes e para a enfermeira, se ela fosse admitida a trabalhar com o crucifixo (v.g., algum paciente puxar o objeto; o crucifixo entrar em contato com alguma ferida).

2. Não houve atitude discriminatória em relação à enfermeira Chaplin, pois, diferentemente do caso de Nadia Eweida, que comprovou o tratamento diferenciado (e mais favorável) em relação a colegas de outras religiões, o hospital proibiu outros empregados (cristãos e não cristãos) de usarem joias de caráter religioso. Ademais, como forma de se evidenciar a ausência de caráter restritivo à expressão pública da fé, o hospital abriu a possibilidade de que a enfermeira usasse um broche com uma cruz, o que foi por ela recusado.

3. A restrição, diferentemente da aplicada à aeroviária Nadia Eweida, foi oriunda de um agente público (os dirigentes dos Royal Devon and Exeter Hospital), o que torna sua incidência coerente com uma ação estatal.

A CEDH, portanto, rejeitou as teses de discriminação religiosa direta ou indireta, afastando-se, de maneira sensível, das conclusões apresentadas no capítulo do acórdão relativo à empregada da British Airways.

A fundamentação do acórdão, no que se refere aos capítulos de Nadia Eweida e de Shirley Chaplin, é bastante limitada. Em relação à primeira recorrente, a CEDH admitiu existir discriminação indireta porque não houve ponderação adequada entre a liberdade de expressão e o controle normativo (e potestativo) dos empregados. Quanto à enfermeira do hospital público, a ponderação ocorreu e foi pautada pela razoável colocação em preeminência da proteção sanitária. A complexidade da questão exigiria, por certo, uma fundamentação mais sofisticada.

Como já se criticou nesta coluna, em não poucas vezes, a CEDH não se constitui em uma fonte primorosa de precedentes. Em muitos julgamentos, parece que o senso-comum ou uma tentativa de se forjar um “consenso sobreposto europeu” substituem os critérios de decisão baseados em técnicas analíticas (de matriz kelseniana ou hartiana) ou argumentativas (radicadas nos estudos de Robert Alexy, para não citar outros autores). A ponderação, no caso Eweida and Others v. the United Kingdom, mais pareceu um recurso retórico do que um meio eficaz de persuasão racional e de legitimidade dos resultados do acórdão. Dito de outro modo, se comparados os capítulos Eweida (discriminação indireta) e Chaplin (ausência de discriminação direta ou indireta), ter-se-á um desenho mais consequencialista do que propriamente um perfil argumentativo.

Essa crítica foi também formulada quanto à fundamentação do acórdão Leyla Sahin v. Turkey, de 10 de novembro de 2005. Nesse julgado, a CEDH manteve decisão do Tribunal Constitucional da Turquia, que considerou a proibição do uso do véu islâmico nas universidades locais, então em vigor naquele país, era compatível com o direito fundamental à liberdade religiosa. Conforme aponta Raphael Peixoto de Paula Marques, em erudito estudo sobre o caso, a CEDH “concluiu que as autoridades turcas estariam melhor habilitadas para realizar esse balanceamento de direitos fundamentais, já que ‘não é possível discernir através da Europa uma concepção uniforme do significado da religião na sociedade’”.[2]

Sopesar, balancear ou ponderar, a despeito da diferença entre essas operações, até por sua concepção teórica diversificada, ora tributárias a Robert Alexy, ora encontráveis em Ronald Dworkin, em muitos casos são meros simulacros de um decisionismo consequencialista ou, o pior, populista, como tem apontado com elegância Néviton Guedes, em suas colunas neste espaço.

No Brasil, ainda estão por se resolver grandes questões sobre a existência de um núcleo essencial do direito fundamental à liberdade religiosa. A situação dos adventistas do sétimo dia (e dos judeus) e a alteração de data de concursos públicos marcados para sábados foi destacada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para exame em repercussão geral, nos autos do RE 611.874, de relatoria do ministro Dias Toffoli. Trata-se de matéria de grande relevância, tanto para os adeptos desses credos, quanto para a delimitação desse direito fundamental.

É de se recordar que o Plenário do STF, no julgamento do STA 389 AgR, relator ministro Gilmar Mendes, em juízo delibatório, deu preeminência ao princípio da isonomia em face da liberdade religiosa de estudantes de fé mosaica, que pretendiam alterar a data do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), a fim de que se preservasse o descanso do Shabat.[3] É óbvio que o tipo de procedimento (suspensão de tutela antecipada) e a forma (declaradamente) perfunctória da apreciação da controvérsia não permitem dilatar as conclusões desse julgado e dele extrair o pensamento da Corte sobre o tema. Ademais, examinando-se o objeto da demanda, fica nítido que não se discutiu a tese da não discriminação indireta, tão relevante para a solução de Eweida and Others v. the United Kingdom.

O primado da não discriminação indireta deve ser também considerado nas controvérsias sobre os limites da liberdade religiosa. O caso Eweida and Others v. the United Kingdom é uma importante contribuição para esse debate, especialmente por fornecer duas diferentes soluções, com elementos descritos muito aproximados. Só se espera que o STF não caia na armadilha da utilização da técnica de ponderação para esconder uma decisão consequencialista ou principialista, sem compromissos mais sérios com o exame crítico da coerência de suas conclusões.


[2] MARQUES, Raphael Peixoto de Paula. Quem tem direito ao uso do véu? Secularismo e liberdade religiosa em Sahin V. Turquia. Revista General de Derecho Constitucional. v. 15, p. 1-20,  2012.

Disponível em http://www.iustel.com/v2/revistas/detalle_revista.asp?id_noticia=412522. Acesso em 20.1.2013.

[3] STA 389 AgR, Relator(a): Min. Gilmar Mendes (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2009, DJe-086 14-05-2010. RT v. 99, n. 900, 2010, p. 125-135. Essa argumentação também foi utilizada pelo STJ, em acórdão mais antigo: “O concurso público subordina-se aos princípios da legalidade, da vinculação ao instrumento convocatório e da isonomia, de modo que todo e qualquer tratamento diferenciado entre os candidatos tem que ter expressa autorização em lei ou no edital. O indeferimento do pedido de realização das provas discursivas, fora da data e horário previamente designados, não contraria o disposto nos incisos VI e VIII, do art. 5º, da CR/88, pois a Administração não pode criar, depois de publicado o edital, critérios de avaliação discriminada, seja de favoritismo ou de perseguição, entre os candidatos” (STJ.RMS 16.107/PA, Rel. Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, julgado em 31/05/2005, DJ 01/08/2005, p. 555)

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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