Justiça Tributária

Fisco paulista quer transformar-se no super-poder

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

9 de dezembro de 2013, 7h00

Spacca
Através da Portaria CAT 122, publicada no Diário Oficial de 5 de dezembro de 2013, as autoridades fazendárias paulistas resolveram conceder-se a si mesmas poderes que não possuem, a pretexto de combater a sonegação.

Pretendem regulamentar uma prestação de garantia ao cumprimento de obrigações tributárias, que poderia ser exigida sempre que alguém pretenda trabalhar neste estado como contribuinte do ICMS.

Imaginam que a inscrição possa ser negada, ante supostos antecedentes fiscais que “desabonem”  uma pessoa que tenha interesse em se tornar aqui comerciante, industrial ou produtor.

Vão mais além: querem cercear o ramo de atividade, criando dificuldades para aqueles que apresentem, além do “antecedente fiscal desabonador”, indícios ou fundada suspeita de futuro ou iminente descumprimento da obrigação.  Ou seja: se o Fisco não for com a sua cara, você não pode trabalhar. Afinal, como se define “fundada suspeita”?

Talvez eu esteja exagerando, mas parece que não, pois mesmo que a exigibilidade de um débito estiver suspensa, a inscrição pode não ser concedida a critério do fisco ou negada “a juízo da Procuradoria do Estado”. Espero que todos os procuradores tenham juízo.

O delegado da Receita é quem vai decidir quanto à necessidade ou não de garantia. Certamente a função será transferida aos inspetores ou chefes de postos fiscais, pois o número de delegados não é muito grande.

E mais: o contribuinte pode ser intimado para entrevista pessoal, em que será feito um termo circunstanciado sobre o que ele disser.

Como toda essa papagaiada inclui também quem tenha sido sócio de empresa que não pagou suas dívidas, imagino a seguinte situação: a coitada da dona Sarah, que ficou viúva e com poucos recursos, resolveu montar uma lojinha na garagem do sobrado que é seu único bem.  Foi sócia do seu marido e não tinha a mínima idéia dos seus negócios, jamais sendo informada que a firma deixara dívidas fiscais. Vai ter que ir ao Fisco para explicar o que não sabe. Será intimada ou intimidada? Isso vai trazer algum benefício para o Estado?

Recomendamos aos leitores, especialmente aos contadores e advogados, a atenta leitura dessa porcaria, digo, Portaria. Não me parece que seus termos e normas mereçam comentário minucioso, eis que uma simples leitura perfunctória leva os leitores a perceberem com facilidade que se está diante de um ato absolutamente inconstitucional.

Nossa Carta Magna garante, no artigo 6º, o trabalho como um dos direitos sociais. Qualquer ato que o prejudique deve ser apontado como inócuo. Por outro lado, o inciso XXXV do artigo 5º assegura que nem  mesmo a lei pode excluir do Poder Judiciário a apreciação de ameaça a direito.

As normas na portaria CAT 122 ofendem o direito ao trabalho e dificultam a defesa dos que, ainda que possuindo débitos fiscais, não  perdem direito a ela. Tal ato administrativo é uma aberração jurídica. Certamente não foi elaborado por bacharéis em direito.

Todas as suas normas indicam o exercício das chamadas sanções políticas, já fulminadas por diversas Súmulas do STF, dentre as quais a 547:“Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.”

O parágrafo 2º do artigo 1º da tal portaria diz que se pode exigir garantia para o contribuinte quando houver indícios ou fundada suspeita de iminente descumprimento obrigação. Ou seja: baseia-se em indício de futuro não pagamento.

Ora, procedimentos fiscais baseados em suspeita ou indício não são  admitidos. A matéria já foi muitas vezes examinada pelos nossos Tribunais, como vemos por estas duas indicações:

Processo Fiscal – Não pode  ser instaurado com base em mera  presunção. Segurança concedida." (Tribunal Federal de Recursos, 2ª Turma, Agravo em Mandado de Segurança  nº 65.941 in "Resenha Tributária" nº 8)                          

"Qualquer lançamento ou multa, com fundamento apenas em dúvida ou suspeição  é nulo, pois não se    pode presumir a fraude que,   necessariamente, deverá ser demonstrada" (Tribunal Federal de Recursos, Apelação Civil nº 24.955 em Diário  da Justiça da União,9/5/69). 

A Portaria pretende ampliar exageradamente o alcance de suas normas até mesmo a pessoas físicas interessadas no negócio, ignorando os limites do CTN e desejando criar suposta solidariedade.

Todavia, a definição de  solidariedade passiva é, claramente, uma das “normas gerais em matéria de legislação tributária” a que se refere o inciso III do artigo 146 da Constituição Federal, cujo caput ordena que essas normas são regidas por lei complementar.  Lei ou decreto estadual não podem inovar nesse quesito.

Submeter contribuintes ou quem queira estabelecer-se com  novas e quase intransponíveis exigências burocráticas, poderá dar ensejo à possibilidade de corrupção ou, na melhor das hipóteses, aumento exagerado dos custos do empreendimento.

A implementação dessa medida servirá para criar muitos problemas para os contribuintes e certamente não servirá para o progresso de nosso Estado. Registre-se, aliás, que São Paulo não enfrenta qualquer dificuldade financeira, posto que lhe sobram milhões e milhões para despesas com publicidade,  novos investimentos e contratação de servidores. Já há empresários se mudando para outros Estados. Não creio que esse seja o desejo dos burocratas fazendários paulistas.

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    é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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