Território sem lei

Justiça dos EUA decide sobre direitos versus tecnologia

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3 de dezembro de 2013, 11h09

Legislativo que não legisla não é privilégio dos Estados Unidos. Mas a pressão no país para adequar as leis — e até mesmo a Constituição — à era digital está muito alta. A cada avanço da tecnologia, mais o vácuo jurídico se amplia, criando territórios sem lei, sem disposições constitucionais e sem casos anteriores para orientar a Justiça.

Por isso, a população americana está depositando toda a sua esperança no Judiciário. Na próxima semana, a Suprema Corte dos EUA começa a decidir se aceita ou não examinar algumas questões jurídicas relacionadas a novas tecnologias e, com isso, "salvar os tribunais, que estão muito confusos, tomando decisões opostas ou se recusando a tomar qualquer decisão", segundo o site Político.

Há dúvidas. Os ministros são avessos à tecnologia, como disse a ministra Elena Kagan recentemente. Em setembro, o ministro Antonin Scalia disse, em uma palestra, que a Suprema Corte terá, em algum momento, de decidir sobre o programa de vigilância do governo americano, por exemplo. Para ele, isso é ruim, porque o Judiciário é o braço do governo que menos entende de alta tecnologia.

A maior preocupação da população americana, bem como da comunidade jurídica (incluindo os juízes), é com o confronto entre direitos constitucionais — direito à privacidade, direito de não se autoincriminar, proteção contra buscas e apreensões sem mandado judicial — e o trabalho dos órgãos de segurança, da Polícia à Agência Nacional de Segurança (NSA).

Um dos casos chegou à Suprema Corte graças a uma certa "interferência" da chefe de um tribunal federal de recursos, a juíza Sandra Lynch. Em um caso em que os demais ministros do tribunal decidiram rejeitar um processo que envolvia "a interseção entre a privacidade individual e a tecnologia em constantes avanços", ela escreveu: "Somente a Suprema Corte poderá finalmente resolver essas questões e eu espero que ela o faça".

O primeiro caso que a corte vai examinar levanta questões sobre a semelhança entre um telefone celular e um maço de cigarros. Há 40 anos, policiais revistaram um "suspeito" e encontraram uma certa quantidade de drogas escondidas em um maço de cigarro. Antes disso, a Suprema Corte havia decidido que a Polícia poderia fazer buscas em contêineres, sem mandado judicial. A questão era se um maço de cigarros equivalia a um contêiner. "Agora é se a busca em um celular equivale à busca em um maço de cigarro", disse ao jornal o advogado Hanni Fakhoury, da Electronic Frontier Foundation.

Em outras palavras, qual é a extensão da busca que é permitida à Polícia quando apreende um celular após uma prisão. Um tribunal de Massachusetts decidiu que a Polícia só pode verificar os registros telefônicos. Mas pode fazer uma busca em aplicativos? E se a pessoa tem um Dropbox? A Polícia pode acessar todos os arquivos? E os documentos que estão arquivados em nuvem? A Polícia pode olhar tudo? Não há lei que ajude a responder a essas perguntas.

Enquanto isso, os tribunais tomam decisões diferentes, às vezes opostas. De acordo com um levantamento da Electronic Frontier Foundation e da revista Forbes, tribunais de seis estados decidiram que a Polícia precisa de um mandado judicial para fazer busca em tecnologias de "suspeitos". No entanto, tribunais de outros 20 estados decidiram que a Polícia pode fazer essas buscas sem mandado. Se não há orientação jurídica, os juízes decidem como querem.

Em outro caso, a Polícia de Fronteiras fez uma busca em um laptop de um viajante e encontrou pornografia infantil. As autoridades policiais nas fronteiras podem examinar toda a bagagem dos viajantes sem mandado judicial. O advogado do suspeito questionou, na Justiça, se essa autorização para fiscalizar a bagagem se estende a dispositivos que os viajantes portam naturalmente.

O juiz que examinou o caso concluiu que os policiais estavam errados. "O presente caso ilustra esse aspecto único de dados eletrônicos. (…) É como se a busca em uma mala da pessoa pudesse revelar tudo o que ela está carregando nessa viagem e tudo que ela carregou em viagens passadas, porque é assim que um computador funciona: mesmo o que já foi apagado pode ser descoberto", escreveu a juíza Margaret McKeown. "Imagine se o governo tiver o direito de fazer buscas em dados arquivados em nuvem. Será muito mais problemático", disse.

Qual é sua senha, por favor?
Mesmo que a Polícia obtenha mandado de busca e apreensão de um disco rígido, ainda terá de lidar, hoje em dia, com criptografia e senhas. Os investigadores policiais terão de pedir ao suspeito: "O senhor pode nos fornecer sua senha, por favor? Pode desbloquear a conta e descriptografar os arquivos? Do contrário, não poderemos encontrar provas para incriminá-lo". A Polícia pode obrigar um "suspeito" a fazer qualquer dessas coisas?

Alguns tribunais têm decidido, em alguns casos, que as pessoas podem se recusar a fornecer sua senha, desbloquear contas ou descriptografar arquivos, porque fazer isso equivale a se autoincriminar — e é um direito constitucional do cidadão não se autoincriminar (Quinta Emenda da Constituição americana).

Em 2012, um tribunal federal decidiu que um suspeito pode "invocar a Quinta Emenda para não fornecer sua senha ou qualquer outra coisa que dê acesso à Polícia a seus arquivos porque, se fizer isso, será a mesma coisa que testemunhar que o material encontrado em seu disco rígido pertence a ele". Isso é autoincriminação.

Em um caso na Suprema Corte de Massachusetts, um advogado foi acusado de fraude no sistema de financiamento habitacional e a Polícia foi à sua casa e confiscou computadores e outros dispositivos eletrônicos. Mas não pôde ver os arquivos porque estavam criptografados. A Polícia argumenta que há provas do crime nos computadores, mas a defesa alega que os policiais não têm provas do que o computador contém. A única prova que têm é que o advogado comprou aqueles computadores.

"Há dois meses, a Apple lançou um iPhone que o proprietário pode bloquear e desbloquear com sua impressão digital. Em pouco tempo, haverá tecnologia que permite ao usuário fazer isso com os olhos. Como os tribunais vão lidar com isso, se não conseguem decidir questões bem mais simples, porque não há leis que os oriente?", pergunta Fakhoury.

Localização do celular
No ano passado, a Suprema Corte decidiu que a Polícia — ou qualquer órgão de segurança — não pode fixar um GPS no carro de uma pessoa investigada sem mandado judicial, para seguir seus movimentos, observar os lugares que frequenta etc. Isso seria invasão de propriedade particular. Mas, aparentemente, o mesmo raciocínio não se aplica quando a Polícia segue os deslocamentos de um suspeito com a ajuda de sua provedora de serviços, que tem capacidade de rastrear o telefone celular ou smartphone da pessoa.

Os tribunais estão divididos sobre esse assunto. Mais recentemente, um tribunal de recursos do Texas decidiu que a Polícia pode obter dados de rastreamento de celulares das provedoras de serviços, sem mandado judicial. A Suprema Corte de Nova Jersey decidiu exatamente o contrário: é preciso obter um mandado, de acordo com a Constituição do estado.

Doutrina dos terceiros
Em 1970, a Suprema Corte decidiu que, quando uma pessoa confia informações a terceiros, como um banco ou uma companhia telefônica, ela abre mão de seus direitos de manter essas informações privadas, fora do alcance do governo. A decisão ficou conhecida como a "doutrina dos terceiros". Para muitos juristas, o problema é que essa decisão foi tomada muito antes da existência da Internet e dos smartphones. "Naquela época, os dados eram anotados à caneta, em papéis. É muito diferente do volume de dados que os usuários enviam eletronicamente, hoje, às provedoras de serviço".

"O que resta aos juízes fazer, por falta de legislação atualizadas, é ligar casos novos a casos velhos — e a cada dia mais velhos, porque a tecnologia evolui rapidamente", diz o advogado Alan Butler, do Centro para a Privacidade das Informações Eletrônicas.

Alguém pode processar a NSA? Não. A NSA pode espionar quem quiser, sem problemas judiciais. "A Quarta Emenda da Constituição, que garante ao cidadão proteção contra buscas e apreensões não razoáveis, sem mandado judicial, não faz qualquer menção ao programa de metadados operado pela NSA", diz o professor da Faculdade de Direito de Vanderbilt Christopher Slobogin, porque todas as comunicações por telefone ou e-mail são confiadas a terceiros — a empresa provedora. E, portanto, caem na "doutrina dos terceiros".

Além disso, no ano passado, a Suprema Corte decidiu, depois das revelações do ex-agente da CIA Edward Snowden, que uma pessoa tem de provar que está sendo vigiado pela NSA, para poder processá-la. "É uma pegadinha", diz Slobogin. "Para processar a NSA, você têm de pedir à NSA que lhe confirme que está sendo vigiado".

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