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Justiça precisa superar cultura de atraso, diz ministra

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25 de abril de 2012, 19h05

Nesta quarta-feira (25/4), segundo dia do II Congresso Internacional de Direito Administrativo e Administração Pública, em Brasília, os ministros do Superior Tribunal de Justiça Gilson Dipp e Eliana Calmon e o senador Pedro Taques (PDT-MT) se reuniram para debater, entre outros temas, sobre a busca de um modelo para a administração do Poder Judiciário no Brasil.

Primeiro a falar, o ministro Gilson Dipp, que preside o grupo de trabalho que elabora anteprojeto para o novo Código Penal, começou expondo um panorama dos problemas na Justiça penal, que o novo Código terá de contemplar. A previsão é que o anteprojeto seja apresentado ao Congresso em maio.

“Sabemos que haverá um intenso debate no foro apropriado, que é o Parlamento”, disse Dipp ao falar da mudança de abordagem do anteprojeto em relação ao aborto. De acordo com ele, a prática seguirá sendo tipificada como crime, mas os casos em que deve ser autorizada serão estendidos e mais bem detalhados, exigindo a apresentação de laudos médicos e psicólogicos. “O aborto é mais uma questão de saúde pública do que tema de Direito Penal”, avaliou.

O ministro também atacou o que entende por “deturpação do sistema penal” por conta da banalização do uso de Habeas Corpus. “O Habeas Corpus é um remédio da maior dignidade constitucional, mas sua banalização, ao ser empregado em qualquer caso, leva ao descrédito”, disse. “[O HC] tornou-se substitutivo de qualquer tipo de recurso, a ponto de não termos mais sistema recursal no Brasil. Praticamente, não há mais sistema penal processual”, afirmou.

De acordo com o ministro, um dos problemas causados pelo uso indiscriminado de Habeas Corpus é que, pelo fato de ser um recurso rápido, a jurisprudência envolvendo o sistema processual penal tem perdido em profundidade.

“A jurisprudência do STJ em Direito Penal está toda baseada em decisões em Habeas Corpus, até mesmo em casos de Ações Recisórias transitadas por mais de dez anos”, disse Dipp. 

Segundo ele, a raiz do problema é o fato de o país ter um Código Penal com 72 anos de idade. O anacronismo resultante da dessa longevidade motivou a edição de mais de 140 leis para suprir carências. “É um sistema caótico. Dessas 140 leis, 50 foram feitas explicitamente para mudar o Código Penal, e dois terços, criadas após a Carta de 1988”, disse.

Bizantino e lento
Segundo a falar, o senador Pedro Taques (PDT-MT), que integrarará a CPI que investiga as relações do empresário Carlinhos Cachoeira com autoridades políticas, teve que deixar a conferência antes do término por conta da primeira reunião da comissão, pela manhã. Ele participou de palestra que debateu o papel do STF como legislador positivo diante das faltas do Legislativo. 

O senador lembrou que até o período anterior à Revolução Francesa, os parlamentos europeus não formulavam leis, apenas fiscalizavam o governante, e que com a mudança de perfil, o Legislativo passou a ter uma posição central nas democracias. Dessa forma, quando o Parlamento não assume suas atribuições, a dinâmica de poder se desequilibra, a exemplo do que ocorre no Brasil, segundo o ministro.

“A principal questão é se o STF apenas interpreta ou também escreve a Constituição”, questionou o senador. “E temos que também perguntar se as decisões do STF, como principal intérprete da Carta, encontram foro de constitucionalidade.”

A resposta é "não", de acordo com Taques, que citou casos como o Mandado de Injução 712 (sobre o direito de greve de servidores públicos) e o processo referente à demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Segundo ele, essa decisão do Supremo ofendeu o artigo 2º da Constituição, que determina a separação dos Poderes. “O Congresso Federal é omisso em relação a suas obrigações constitucionais. O processo parlamentar no Brasil e bizantino e lento. Hoje nos tornamos despachantes de questões de orçamento para o Executivo. O Congresso não deveria ser um ‘puxadinho’ do Poder Executivo”, disse.

Taques também criticou o que chamou de “déficit de democracia e legimidade na indicação de ministros do STF, um caminho para a aparelhagem da corte”. Ele classificou como "farsa" o processo de sabatina de ministros de Supremo no Senado, lembrando que, enquanto nos Estados Unidos algumas sabatinas já se estenderam por meses, no Brasil, tudo se resume a poucas horas.

O senador explicou ainda que, no mundo antigo, os intérpretes da realidade eram oráculos e cabia a eles ler a sorte da vida pública nas entranhas de animais mortos durante ritos. Hoje, os intérpretes da lei, segundo o senador, conferem, antes de tudo, sentido e entendimento as normas. “São 11 semi-deuses pelos quais passam as mais relevantes questões da sociedade.” 

Poder sem projeto
Última a falar, a ministra Eliana Calmon avaliou a repercussão de sua atuação à frente da Corregedoria Nacional de Justiça. “Dizem que sou bombástica e midiática, mas poucos prestam atenção no mérito do que falo”, disse. A corregedora afirmou ser encantada pelo que se passa nas entranhas do Judiciário e que atuar no CNJ lhe permitiu conhecer os meandros do funcionamento do Poder.

Para a ministra, os problemas de gestão na Justiça decorrem da demora do Brasil em realizar uma revisão crítica do Direito, processo iniciado em muitos países após a II Guerra. De acordo com ela, o ano paradigmático da Justiça brasileira foi 1990, quando ficou patente a incapacidade do Judiciário de atender as multidões que recorreram aos tribunais frente ao confisco de depósitos bancários feito pelo governo Collor.

“Percebemos que éramos um poder desaparelhado para defender as tutelas de urgência”, disse Eliana. “Os magistrados não sabiam como trabalhar com urgência e desconheciam como proceder em termos de Direito coletivo, julgando as ações judiciais separadamente, processo a processo”, afirmou.

“Foi então que a perplexidade tomou conta do Judiciário e percebemos que tínhamos que consertar o carro estando ele em movimento. Foi o que aconteceu quando o legislador trouxe a Emenda 45, em 2004, como socorro”, contou. “Não falo mal do  Poder Judiciário, estou falando de história. Éramos um Poder sem projeto”, disse.

Segundo a corregedora, “o ponto luminoso” da Emenda Constitucional 45 foi a criação do Conselho Nacional de Justiça e da Escola de Magistratura, iniciativas que permitiram começar o processo de revisão do Judiciário com profundidade.

Eliana Calmon disse ainda que os problemas da Justiça estão enraizados na história do país. A ministra relatou que, ao prefaciar um livro sobre o Tribunal de Justiça da Bahia e ter de estudar um pouco sobre o Tribunal da Relação (criado em 1587 e instalado somente em 7 de março de 1609 naquele estado), percebeu que a primeira corte do Brasil sofria dos mesmos problemas que hoje sofrem os atuais tribunais. “Os defeitos dos juízes portugueses de então foram completamente assimilados pelos brasileiros. Estamos, na verdade, tendo que superar uma cultura”.

A corregedora disse ainda que sua função no CNJ é “ingrata e antipática”, o que provocou uma forte reação dos juízes, sobretudo, das associações, que, segundo ela, “não aceitam qualquer interferência”. “Não buscamos simplesmente a punição, mas a uniformidade do Judiciário, disse, ao contar sobre casos, sem citar nomes, em que verificou que um juiz de primeira instância tinha salário de R$ 40 mil e que um desembargador recebia R$ 100 mil mensais. “Sou contra a PEC da Bengala porque temos que nos desfazer de alguns dinossauros. Tenho encontrado dembargadores que não leram a Constituição de 1988”, provocou. 

“Denunciei, no Senado, a infiltração, no CNJ, de membros que pretendem deturpar sua natureza. Não podemos retroceder, pois se perdermos a credibilidade, o objetivo de adequar o Judiciário à Constituição de 1988 estará comprometido”, disse.

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