Hospital superfaturado

CGU constata sobrepreço de 42% em obras de hospital

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1 de agosto de 2011, 18h30

Previsto para entrar em funcionamento em abril de 2009, o novo prédio do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (INTO) continua inacabado 27 meses depois da data estimada para a sua inauguração. Suas obras, segundo auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU), apresentam doenças crônicas como restrições criadas no edital para limitar a participação de concorrentes; sobrepreço estimado em R$ 23,5 milhões no custo da segunda etapa da obra; cobrança em duplicidade de um mesmo serviço no valor de R$ 3,4 milhões; pagamento antecipado por serviços não prestados e equipamentos não entregues.

A soma do sobrepreço com os valores em duplicidade para um mesmo serviço perfaz R$ 26,9 milhões. O contrato desta segunda etapa da obra foi firmado no valor de R$ 63,9 milhões. Logo, pelo que se depreende do relatório da CGU, esta segunda etapa da reforma do prédio poderia sair por pouco mais de R$ 37 milhões, 42% mais barato do que o preço acordado entre o Instituto e a Delta Construções, em maio do ano passado.

Uma das recomendações do relatório desta Auditoria (de número 201108819) ao qual a ConJur teve acesso com exclusividade é que o INTO faça a adequação dos preços contratados a valores de mercado, de forma a não ser necessária a rescisão do contrato, exigindo a devolução dos valores pagos com sobrepreço e dos serviços executados em duplicidade. Recomenda ainda a apuração de responsabilidades de quem “deu causa aos vícios graves ocorridos nas pesquisas de preços originais, os quais ocasionaram contratações em valores superiores aos praticados no mercado”.

Como este documento chegou à Procuradoria da República do Rio de Janeiro mediante requisição, à Polícia Federal será determinada a instauração de inquérito policial para apurar os possíveis crimes de fraude na licitação (frustrar meios de competitividade da licitação) e peculato (desviar dinheiro público em proveito próprio ou alheio).

Paralelamente, um Inquérito Civil Público será instaurado ainda esta semana com a finalidade de verificar uma possível improbidade administrativa por servidores do Instituto, além de outras pessoas físicas e jurídicas envolvidos na obra. Como a CGU não aponta responsáveis pelos erros e falhas detectados, caberá às duas investigações identificá-los.

A construção de um novo INTO foi decidida em abril de 2005 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com esta finalidade, ele desapropriou o antigo prédio do Jornal do Brasil, na avenida Brasil 500, zona portuária do Rio de Janeiro. O edifício passa por reformas de modo a adequá-lo para que a “instituição possa dobrar o número de leitos atual, quadruplicar o número de consultórios, passar de 5.200 para 19.700 cirurgias/ano, reduzir o tempo de espera da fila para cirurgia, implantar o primeiro Centro de Tratamento de Infecção Óssea da América Latina, além de estender sua atuação na área de formação de recursos humanos e de pesquisa”, como consta do documento “Novo Complexo do INTO: projeto de estruturação da nova sede”, editado pelo Ministério da Saúde em 2006.

A obra, inicialmente orçada em R$ 187,6 milhões, foi licitada em junho de 2006 e deveria durar 34 meses. Em julho de 2008 estava prevista o início da mudança da sua sede atual na Rua Washington Luís, 61, Centro do Rio, para que o novo INTO fosse inaugurado em abril de 2009. Com todos os atrasos, segundo o relatório da CGU, a inauguração do novo complexo passou a ser prevista para meados de 2011, o que também não aconteceu.

Restrições na licitação
Para a conclusão da segunda etapa da obra, o INTO fez nova licitação no início de 2010 — Concorrência 1/2010 (Processo 250057/875/2010). Ao analisar o edital, o Tribunal de Contas da União manifestou-se através do ofício1306/2010 — TCU/SECEX-RJ-D4 no sentido de que a direção do Instituto “evitasse homologar o resultado e adjudicar o objeto da licitação em tela, em face de possíveis irregularidades apontadas por meio de denúncia, até deliberação final da aludida Corte”, como diz o relatório da CGU.

O mesmo documento ressalta que, “embora o certame já estivesse homologado e adjudicado, o ofício em comento (do TCU) foi recebido no mesmo dia (2/6/2010) em que o contrato foi firmado, sendo possível ao gestor adotar providências no sentido de elucidar as questões apresentadas pela Corte de Contas antes de autorizar o início da obra”, o que acabou não acontecendo. O contrato, no valor de R$ 63,9 milhões, foi assinado nove dias após a licitação.

Como o edital — com “injustificadas exigências e procedimentos restritivos à competitividade” — só foi publicado na grande imprensa no dia 29 de abril, a licitação deveria ocorrer pelo menos 30 dias depois, como manda a lei, mas foi realizada no dia 24 de maio, fora do prazo. Segundo o INTO, oito empresas retiraram o edital, seis delas agendaram visita técnica ao prédio, mas apenas três concorreram: Caenge S.A. — Construção Administração e Engenharia; Delta Construções S.A.; IBEG Engenharia e Construções Ltda.

A IBEG foi “inabilitada sem constar a motivação do ato no processo”, de acordo com a auditoria da CGU. Restaram apenas as outras duas empresas as quais, segundo o relatório destaca, “formaram em junho de 2008 o Consórcio VR Ecologia (CNPJ 09.612.232/0001-75) para a realização de obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) no município de Volta Redonda”. Ou seja, eram sócias em outra obra.

A vencedora Delta tem como dono Fernando Cavendish, cuja amizade com o governador do Rio, Sérgio Cabral, veio a público no mês de junho quando do acidente com um helicóptero na Bahia em que morreram a mulher de Cavendish e a nora de Cabral. Trata-se da empreiteira com maior número de contratos com o atual governo do estado do Rio, conforme levantamento feito pelo jornal O Dia. Somente no primeiro semestre deste ano a construtora recebeu R$ 241,8 milhões para a realização de obras, sendo que praticamente um quarto deste montante, R$ 58,7 milhões, foi pago em contratos realizados sem que a empresa tivesse que participar de concorrências públicas.

O caráter de emergência tem sido um aliado da construtora no estado. Um levantamento feito por líderes do PSDB na Alerj mostrou que o ano de 2011 é o que registrou o maior percentual de dispensa de licitação para a construtora. No primeiro ano do governador, em 2007, foram empenhados nessa modalidade R$ 10,2 milhões, 15% do valor total de contratos. Em 2008 e 2009, o percentual caiu para cerca de 3%. Em 2010, ano eleitoral, voltou a subir para 23%: R$ 127,3 milhões. A Delta, entre outras obras, está no consórcio que reconstrói o Maracanã e na construção de um novo anexo do Poder Judiciário.

O relatório da CGU, ao analisar a Concorrência 1/2010 do INTO, concluiu que algumas exigências ali contidas se traduziram “em fator limitador e restritivo à participação de potenciais concorrentes no referido certame licitatório”.

Sobrepreço de R$ 23 milhões
Na análise dos preços estimados para diversos itens da obra, a CGU constatou que eles estavam acima dos valores praticados no mercado. Tal fato gerou, em novembro do ano passado, uma Nota de Auditoria — 251219/01, de 11/11/2010 — na qual foi determinada nova pesquisa de preços, a fim de ajustar todos os valores contratados, cujos preços de referencia foram obtidos por pesquisa de mercado.

Ao responder à Nota de Auditoria, o INTO, em março deste ano encaminhou a CGU a nova pesquisa de preços elaborada pela empresa MHA Engenharia Ltda., autora do projeto da reforma do prédio. Na revisão feita, o próprio Instituto admitia um sobrepreço da ordem de R$ 13,6 milhões, já incluindo os valores cobrados em duplicidade pelo revestimento do teto e prometendo repactuar o contrato assinado com a Delta, como diz o relatório da CGU.

A auditoria, porém, constatou erro neste novo cálculo, que foi explicado no relatório da seguinte forma: “para cálculo do sobrepreço, o INTO adotou o menor valor entre o preço contratado de determinado item (paisagismo, no break, marcenaria, sistema de supervisão, etc.) e o preço total do mesmo item obtido por meio de nova pesquisa de preços realizada, não tendo sido adotado por aquele Instituto o menor valor unitário entre os valores contratados e os preços obtidos na nova pesquisa que somados totalizam o preço do item”.

Segundo o relatório, “caso os valores de referência adotados fossem os menores preços unitários entre os valores contratados junto a empresa Delta Construções S.A. e a nova pesquisa realizada pelo INTO”, o sobrepreço real sobe para R$ 26,9 milhões, já incluídos R$ 3,4 milhões relativos à previsão em duplicidade do revestimento de teto.

A nova tabela de preços tinha ainda outro vício detectado pelos auditores. Os preços dos produtos nas listas de fornecedores diferentes apresentavam sempre a mesma variação percentual levando a CGU a concluir que “inequivocamente, tais propostas não foram elaboradas isoladamente”.

O documento prossegue: “cabe ressaltar que o INTO realizou em 2011, por sua conta e risco, pagamentos à Delta Construções no valor de R$ 15.273.032, antes da realização de nova pesquisa de preços a fim de determinar o valor total de sobrepreço, restando atualmente um saldo a pagar no montante de R$ 25,3 milhões.”

Foi constatado ainda que nos valores previstos para os equipamentos o INTO trabalhou com o chamado BDI (Benefícios e Despesas Indiretas) superiores ao permitido pelo Tribunal de Contas. Para os auditores, conforme as regras baixadas pelo TCU, o percentual do BDI “não poderia ultrapassar 10%, pois corresponde ao pagamento pelos serviços de mera intermediação de materiais”.

Na nova licitação incluíram ainda despesas como de revestimento do teto que já constavam da primeira etapa da obra. Além deste serviço ter sido classificado como “duplicidade”, os auditores notaram “previsão na planilha orçamentária de quantitativos para esses serviços superiores aos valores existentes nos projetos”. Ou seja, pela planilha eles pagariam por uma quantidade maior de revestimento de teto do que a metragem prevista no projeto original.

O INTO justificou a inclusão deste item no novo edital por conta de “serviços a serem contratados e executados necessitarem de acesso aos forros”. A esta justificativa a CGU se opôs de maneira clara: “uma vez executado todo o revestimento de teto, para a execução de qualquer outro sistema, não será viável tecnicamente a quebra de todo o revestimento, visto que será obrigatória a execução de diversos serviços referentes às instalações elétricas, sistemas de condicionamento de ar, etc.”.

Serviços pagos e não prestados
Os auditores constataram que o INTO desembolsou R$ 13,8 milhões por materiais e equipamentos sem a respectiva contraprestação do serviço de instalação, apesar de o contrato prever o pagamento em parcelas na medida em que fossem feitas as medições e constatados os serviços realizados. Na vistoria realizada em agosto passado, estes auditores notaram que “diversos equipamentos medidos e pagos não se encontravam no local do empreendimento”. Um exemplo foram os elevadores, que não tinham sido entregues e, segundo o próprio fiscal da obra admitiu, estariam no cais do porto aguardando liberação.

Nas suas explicações à CGU, o Instituto argumentou que “no que tange a equipamentos customizados e indisponíveis para pronta-entrega (como é o caso dos elevadores), o cronograma de pagamentos ao contratado deve corresponder ao que este deverá enfrentar no mercado, relativamente ao presumido evento de desembolsos das aquisições que deverá efetuar. Este entendimento justifica-se pelo fato de que alguns equipamentos e em especial “elevadores”, demandam certo tempo após serem contratados para que cheguem até seu local de destino”.

Apesar das explicações do Instituto, os auditores insistiram que o procedimento foi ilegal, uma vez que “o pagamento antecipado é possível, não para contemplar exigências de prestadores ou fornecedores, mas somente quando impliquem economia para o erário”. No caso em questão, afirmam que no edital da Concorrência 1/2010 não identificaram “qualquer previsão de pagamentos antecipados, e estes foram realizados pela administração do INTO sem nenhum benefício pecuniário ao erário, tampouco foram oferecidas quaisquer garantias efetivas e idôneas destinadas a evitar prejuízos à Administração pelo pagamento antecipado realizado”.

Na sexta-feira (29/7), ao ter acesso ao relatório da CGU, a reportagem da ConJur procurou a diretoria do INTO e da Delta Construtora para ouvi-las. Nesta segunda-feira (1º/8), ao final da tarde, o INTO, por meio de uma nota rejeitou todas as acusações feitas no relatório da CGU, contestando item por item e repetindo argumentos que usou na resposta à Controladoria e por ela foram rechaçados. A Delta Construtora alega que, por questões contratuais, o Instituto é quem deve se manifestar sobre o relatório do CGU.

Leia a nota divulgada pelo INTO:

“As obras foram licitadas em duas etapas: a primeira teve como objeto a obra estrutural de retrofit da antiga sede do Jornal do Brasil, no Rio de Janeiro; já a segunda ocorreu devido a necessidades identificadas no decorrer da primeira etapa, resultantes da especificidade do projeto e da necessidade de adequação da infraestrutura ao novo uso – instituto de ensino e pesquisa na área de traumatologia e ortopedia, cuja unidade hospitalar terá capacidade de oferecer 305 mil consultas ambulatoriais e de realizar mais de 19 mil intervenções cirúrgicas por ano.

Em ambas as etapas, foi escolhida a modalidade de licitação por preço global, no qual a ênfase está na avaliação do preço total, mais do que na avaliação de preços unitários item a item. A escolha desta modalidade de licitação teve como objetivo proteger a administração da instituição de variações futuras nos custos de produtos e serviços. Além disso, as planilhas orçamentárias com cotações prévias de produtos e serviço para a determinação dos valores globais em ambas as licitações foram encaminhadas aos órgãos de fiscalização competentes – CGU (Controladoria Geral da União) e TCU (Tribunal de Contas da União).

Nos dois processos licitatórios, o valor contratado ficou 15,8% e 3,4%, respectivamente, abaixo da cotação de preços feita pelo Into para balizar os custos da licitação.

Não houve antecipação de pagamento. A obra foi medida e paga por meio de liberação de etapas especificas pré definidas de acordo com o cronograma físico financeiro estabelecido na licitação. No que tange a equipamentos customizados, como por exemplo os elevadores, cuja fabricação é específica para cada local, o pagamento ocorreu em parcelas ao longo do contrato, sendo a última liberada após a conclusão total dos mesmos.

Não houve duplicidade de pagamentos. Para a segunda licitação considerou-se a possibilidade de que alguns serviços contemplados no primeiro contrato tivessem que ser complementados devido às novas intervenções, tais como uma nova colocação de forros para execução de serviços de adequação elétrica, por exemplo. No decorrer do processo, tornaram-se desnecessárias tais complementações. Por isso, os quantitativos desses itens não foram utilizados e, consequentemente, não foram pagos.

Cabe esclarecer que alguns equipamentos não foram localizados no canteiro quando houve a vistoria, pois encontravam-se na Receita Federal, conforme comprovado por meio de documentos de importação.

Até a presente data, todos os serviços e equipamentos pagos foram atestados pela fiscalização do contrato e encontram-se fornecidos, instalados e testados.

Todo o processo de licitação para a construção da nova sede do Into foi conduzido de acordo com as regras da Lei nº 8.666 e o Into vem mantendo contato permanente com os órgãos de fiscalização e fornecendo todos os esclarecimentos sempre que solicitado”.

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