Mudanças necessárias

"Tribunal do Júri no Brasil não faz Justiça"

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17 de abril de 2011, 8h46

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Paulo Sergio Rangel - Spacca - Spacca

Da forma como o Tribunal do Júri funciona no Brasil, não se faz Justiça nem quando o réu é condenado nem quando ele é absolvido pelos jurados. A opinião é do desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Paulo Sérgio Rangel do Nascimento, ex-promotor de Justiça que passou 18 anos de sua carreira atuando em casos apreciados e julgados por pessoas que não se dedicaram ao estudo do Direito.

Rangel é defensor das mudanças propostas no novo Código de Processo Penal, em trâmite no Congresso, sobretudo no que se refere ao Júri. Uma delas é a fundamentação pelos jurados da decisão que condena ou absolve. “Se a Constituição diz que toda e qualquer decisão judicial deve ser fundamentada, é obvio que inclui a dos jurados”, disse em entrevista concedida à revista Consultor Jurídico, ressaltando que, absolvido ou condenado, o réu nunca sabe das razões daquele desfecho.

Pela experiência que adquiriu durante o tempo que trabalhou no Júri, Rangel observa que as decisões dos jurados são motivadas pelas mais variadas — e despropositadas — razões. “Já ouvi a justificativa de que o réu foi absolvido porque ‘coitado; ele é tão bonitinho.’ Ele é bonitinho, mas ele matou. O perigo dessa decisão é que se trabalhou com direito penal do autor. Um autor feio como eu, se sentar no banco dos réus, será condenado. O que se está levando em consideração é a aparência física do réu”, afirma. Se a justificativa para a absolvição fosse conhecida, conclui, esse resultado seria anulado. “Como não é dito, a defesa ou acusação não sabe e, portanto, não pode impugnar. Em plena democracia, há uma decisão às escuras, oculta.”

Ao se posicionar a favor de mudanças no CPP, Rangel diz que é preciso adequar o Código à Constituição. Ele critica o fato de, no Brasil, não se fazer uma reforma cuja pergunta seja: ela é boa para a sociedade? Cada corporação perde um pouco, mas quem ganha é a coletividade. “Todos vão precisar de um código garantista e adequado à Constituição, basta se sentar no banco dos réus para perceber isso. E, no Brasil, para sentar no banco dos réus basta estar vivo e ter mais de 18 anos.”

Paulo Rangel nasceu no Rio de Janeiro e se formou pela Universidade Cândido Mendes, em 1990. Pela mesma universidade se tornou mestre, em 2003. Dois anos depois, terminou o doutorado na Universidade Federal do Paraná. Ao rever sua trajetória, Rangel contou que seu primeiro emprego foi de porteiro nas Casas Pernambucanas e na IBM. “Nas Casas Pernambucanas, conheci uma pessoa que me ofereceu um emprego de vendedor da Mesbla. Fui para a empresa, que depois faliu, mas não foi por minha culpa. Nessa época, fiz concurso para a Polícia Civil.”

Ele ficou sete anos na Polícia antes de ingressar no MP, experiência que considera fundamental. “Quando cheguei ao Ministério Público, já tinha experiência para poder lidar com as questões de lá”, disse. No final de março deste ano, completou um ano que Paulo Rangel foi nomeado desembargador, tendo ingressado no TJ do Rio através do quinto constitucional do MP.

Leia a entrevista:

ConJur — No Brasil, há uma resistência em incluir na reforma do Código de Processo Penal a motivação das decisões do Tribunal do Júri. Quais são os argumentos contrários?
Paulo Rangel —
O que há, no Brasil, é uma resistência muito grande de se trabalhar com a Constituição da República. Ela diz, claramente, no artigo 93, inciso IX, que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e todas as decisões fundamentadas, sob pena de nulidade. Talvez o argumento — que não se sustenta — é de que, no Júri, não há como ter fundamentação, porque o voto é secreto. A fundamentação não passa por saber em quem o jurado votou, e sim o motivo que o levou a condenar ou absolver. O voto continua sendo secreto.

ConJur — Mas como fazer isso?
Paulo Rangel —
Da mesma maneira que é feita hoje: “Eu condeno porque a testemunha foi firme; porque o laudo de confronto balístico foi indiscutível; porque a arma que matou é a que estava na mão do réu”. Sempre há uma razão, ainda que seja a de que está condenando porque o acusado tem uma folha penal extensa. Antes da reforma da lei, em 2008, quando o juiz retirava todos os votos, era possível saber quem decidiu condenando ou absolvendo, quando havia unanimidade. O argumento de preservar o voto secreto já não se sustentava.

ConJur — E por que não se adota a obrigatoriedade de fundamentação?
Paulo Rangel —
Porque nós temos dificuldade no Brasil de cumprir a Constituição. Há muita resistência de adequar o Código de Processo Penal ao modelo constitucional de processo. É esse o motivo pelo qual a brilhante comissão presidida pelo ministro Hamilton Carvalhido [do Superior Tribunal de Justiça], que fez o anteprojeto de reforma do Código, está sofrendo ataque por parte de alguns segmentos do meio jurídico. O Código, embora não seja perfeito, é bem avançado e moderno para o processo penal brasileiro.

ConJur — O réu é condenado pelo Júri e fica sem saber o porquê.
Paulo Rangel —
Não sabe, porque os jurados não dizem. E a sociedade também fica sem saber por que o réu foi absolvido. O que resta são suposições. Já ouvi jurados dizerem que é claro que o réu, com uma folha penal como aquela do caso que julgaram, era o autor do crime. Perceba o perigo dessa decisão. Ele não levou em consideração as provas do processo, mas sim a vida passada do réu.

ConJur — Sim. Mas, no processo penal, os antecedentes não podem ser considerados para condenação do acusado naquele processo específico.
Paulo Rangel —
Não é permitido perante o juiz singular. Mas no Júri, se os jurados assim decidirem, sequer é possível saber. Também já ouvi a justificativa de que o réu foi absolvido porque “coitado; ele é tão bonitinho”. Ele é bonitinho, mas ele matou. O perigo dessa decisão é que se trabalhou com direito penal do autor. Um autor feio como eu, se sentar no banco dos réus, será condenado. O que se está levando em consideração é a aparência física do réu. Se o jurado justificasse a decisão e apresentasse esse motivo, o Júri seria anulado. Como não é dito, a defesa ou acusação não sabe e, portanto, não pode impugnar. Em plena democracia, há uma decisão às escuras, oculta.

ConJur — Há necessidade de que determinados crimes sejam julgados por leigos, que não têm o conhecimento do que é ou não válido no processo penal?
Paulo Rangel —
Essa é outra grande discussão. Os jurados estão aptos, prontos, sabem julgar? São sorteados para integrar o Júri uma professora primária, um porteiro, um médico, um matemático, um advogado, enfim, pessoas dos mais diversos matizes da sociedade. Dizem os defensores do Júri que este decide com base no sentimento popular. Os contrários observam que esse sentimento pode ser negativo, de raiva e de ódio, ou de amor, de benevolência e de tolerância, o que nada tem a ver, nem um e nem outro, com o sentimento de Justiça. É claro que como ser humano nós sempre vamos ou deveríamos dizer que perdoamos. Mas para a lei dos homens, se o réu cometeu um crime, deve pagar na medida de sua culpa.

ConJur — Colocar pessoas que não estudaram Direito é um risco?
Paulo Rangel —
Sempre é. Eu dediquei e ainda dedico a minha vida para estudar, preparando-me para julgar. Às vezes, me deparo com situações que tenho que refletir muito para chegar a uma conclusão. Imagina ser sorteado para integrar um Júri: “Hoje é dia de julgar. Vá lá e julgue”. A pessoa não sabe bem o que está acontecendo, não sabe bem como funciona, não entende porque foi chamada, simplesmente, o juiz diz que ela é obrigada a participar e que não pode se recusar, do contrário, vai pagar multa ou ser presa. Isso é arriscado. Ao se deparar com o caso, surgirão lembranças de quando a pessoa foi assaltada no ônibus; do irmão, que já foi acusado injustamente; de já ter levado um tapa de um guarda; do pai que foi assassinado; do bairro violento onde mora. Há sentimentos que afloram no Júri e que servem para duas coisas: para condenar e absolver. São sentimentos que influenciam na hora de decidir, ainda mais em um Júri que não justifica a sua decisão. Isso é perigoso.

ConJur — E por que os casos julgados pelo Júri são os chamados crimes dolosos contra a vida?
Paulo Rangel —
Porque são crimes que, em tese, qualquer um de nós pode cometer. Qualquer um de nós tem capacidade de compreender porque foi cometido. Qualquer um de nós pode matar. A pessoa pode dizer: “Não, eu não. Deus me livre tirar a vida de alguém”. Se ao chegar em casa e se deparar com o filho sendo agredido por um facínora, a pessoa vai matar o agressor se ela estiver com uma arma. Certamente, alegará que foi em legítima defesa. Mas quem vai dizer se, de fato, foi é o Júri. Ela vai ser acusada e sentará no banco dos réus. Ninguém vai convencer o outro a roubar um banco, a estuprar, a falsificar moeda. Isso são crimes em que a pessoa já está com a personalidade formada. Também não vai convencer a matar. Mas um dia ela pode ter de matar para se defender. A grande discussão sobre a manutenção do Júri passa por essas análises acerca da necessidade ou não de deixarmos o colegiado, que não é preparado para isso, decidir a vida do outro.

ConJur — Houve um caso em uma cidadezinha do interior de Minas Gerais em que um homem, que estava em um bar, foi para casa, pegou o revólver, voltou e matou outro. Ele foi absolvido por unanimidade. A justificativa de um dos jurados era de que o assassino tinha sido humilhado durante toda a vida pelo homem que foi morto. O Júri pode funcionar adequadamente mesmo com essas distorções?
Paulo Rangel —
Depois de passar 18 anos fazendo Júri, eu diria que depende do que se quer para a sociedade. Se quiser impunidade, ele funciona adequadamente. Se quiser Justiça, não. Um exemplo é o das milícias. Como moradores de Campo Grande [bairro da cidade do Rio de Janeiro], em um Júri local, vão julgar um homicídio praticado por milicianos que atuam na região? Ele não vão conseguir, porque os jurados serão ameaçados e mortos. A solução que o Tribunal do Rio encontrou foi acabar com o Júri de Campo Grande e transferi-lo para a capital [pela divisão do TJ-RJ, as chamadas varas da capital são as que ficam no fórum central do Rio]. Essa medida foi adotada, exatamente, para que os jurados que vão julgar o homicídio praticado pela milícia de Campo Grande seja morador de outra região e evite essa influência negativa dos milicianos sobre as pessoas que integram o Júri.

ConJur — Muita gente também é condenada pelo Júri.
Paulo Rangel —
Sim. Há o caso recente do casal Nardoni, de São Paulo, em que eles foram condenados. Mas se eles não fossem condenados, seria melhor fechar as portas. Aquele é um Júri em que o promotor [Francisco Cembranelli] — brilhante por sinal — já vai com um placar de 6 a 0, em uma partida que vai até 10. No meio do Júri, ele faz outros 4 gols. Há pressão popular e prova técnica feita com muita acuidade. Mas, se retirarmos a repercussão e analisarmos outros casos que são julgados diariamente, vamos perceber que nem sempre o resultado é a condenação.

ConJur — Por quê?
Paulo Rangel —
Por vários motivos. Primeiro, o despreparo das pessoas que vão para julgar. Segundo, o descompromisso social dessas pessoas. Elas foram obrigadas a se apresentar no Fórum. Eu não posso confundir a paixão que o promotor ou o advogado possa ter pelo Júri com a realidade do Júri. Uma coisa é gostar de colocar a roupa específica, de encenar, de fazer os discursos empolados. A outra é questionar se isso funciona como instrumento de Justiça. Se analisarmos os resultados que são obtidos, sejam eles condenatórios ou absolutórios, vamos observar que o Júri não funciona para um país como o nosso, de modernidade tardia, que ainda tem que avançar muito em determinadas políticas públicas. É por isso que fico muito feliz com a reforma que está sendo proposta. O Júri vai ter que discutir, na sala secreta, o porquê de estar condenando ou absolvendo.

ConJur — Hoje, cada um decide separado, não podem sequer se comunicar.
Paulo Rangel —
A incomunicabilidade é a regra no Júri. Com a reforma do processo penal, uma vez aprovada, haverá comunicabilidade. O projeto já sofreu bastante alteração, mas me parece que, se for mantida a comunicabilidade, já será um avanço. Eu também acredito que o número de sete jurados é insuficiente. De 1822 até 1938 eram 12 jurados. Durante o governo ditatorial de Vargas, em 1938, foi baixado decreto diminuindo de 12 para sete. Isso tem uma razão de ser: política. Doze é um número par, é mais difícil de obter a condenação porque é preciso uma diferença de dois votos, 7 a 5 no caso. Em um número ímpar, é preciso apenas a diferença de um voto, 4 a 3. É mais fácil obter a condenação. No Júri ,de 1822 até 1938, os jurados se comunicavam entre si. Esse mesmo governo ditatorial acaba com a comunicabilidade e torna o Júri incomunicável com a justificava jurídica falaciosa de que é preciso manter a imparcialidade do Júri. O que tem de manter é a independência dos jurados, eles não podem ser coagidos. O Júri é o instrumento de democracia. Já vivemos duas ditaduras, e hoje estamos em uma democracia plena. Está na hora do Júri voltar a ser o que era. Não adianta viver em uma democracia se ainda há pessoas que têm um espírito ditatorial, punitivo.

ConJur — Mas a sociedade ainda tem esse espírito.
Paulo Rangel —
A sociedade é punitiva. Se for feita uma enquete nacional sobre pena de morte, ela será aprovada. E quem vai para a cadeira elétrica são os pobres, os negros, as prostitutas. Não os do crime de colarinho branco. Por isso que, quando se fala de pena de morte, é preciso pensar na maioria da população que vai sentar naquela cadeira. Essa medida está fora de cogitação. E digo mais: a pena de morte está fora de cogitação também para os crimes de colarinho branco. Não interessa se o acusado roubou não sei quantos bilhões de reais dos cofres públicos. Pena de morte não, seja para o rico ou para o pobre. Isso é respeitar as diferenças em um país como o nosso.

ConJur — O senhor comentou o caso Nardoni. Quando há comoção da sociedade e, principalmente, muita repercussão na imprensa, o MP sempre entra com vantagem no Júri?
Paulo Rangel —
Não há dúvida. Quando a imprensa está em cima, o promotor já tem a vantagem que é a comoção social. O que ele vai precisar fazer é levar as provas para o processo para justificar a decisão que já foi dada, socialmente, pela imprensa: a condenação. Eu mesmo já fiz júris em que fui com 6 a 0. Eu só precisava mostrar as provas levadas ao processo que justificavam a decisão que já havia sido dada. As pessoas estavam aguardando aquele dia. E há um problema nisso. Para a imprensa, não interessa o fato velho. Mas para o processo essa pressão é ruim, porque, de certa forma, coage o juiz e o promotor e limita o trabalho do defensor. Sem tolher a liberdade da imprensa, é preciso encontrar um meio termo para que haja a divulgação — e não há democracia sem a imprensa livre— sem gerar prejuízos ao réu. É difícil achar esse meio termo.

ConJur — O senhor comentou sobre a resistência dos operadores de Direito para adequar o processo penal à Constituição. Isso me fez lembrar o vídeo que circulou no YouTube, da escrivã da Polícia Civil de São Paulo que, investigada pela Corregedoria por corrupção, foi despida à força na frente de delegados. O Ministério Público opinou pelo arquivamento do inquérito que apurava abuso de autoridade e o juiz arquivou. Há, no MP, uma visão geral de que o fim justifica os meios?
Paulo Rangel —
Não. É claro que muitos promotores querem os fins, mas sabem que se os meios utilizados não forem adequados, pertinentes e proporcionais, a consequência será a declaração de nulidade do ato. O que aconteceu com a escrivã da própria Polícia me deixa horrorizado. Mais horrorizado ainda quando imagino o que pode ser feito com um cidadão abordado na rua. E isso ocorreu em São Paulo, e não em um estado do interior, em um município distante. Foi em São Paulo, que deveria ter a melhor Polícia, porque tem a melhor renda per capita. Nesses casos, o Ministério Público tem que mostrar a que veio.

ConJur — Outra questão em relação ao MP diz respeito a acusações que chamam muito a atenção da opinião pública, e anos depois os acusados são absolvidos pelo Judiciário. O senhor acha que o promotor deve responder quando a ação proposta por ele é totalmente descabida?
Paulo Rangel —
Acho que não. Se há dolo, maldade, má-fé, o promotor responde administrativamente. Quando dois ou três promotores forem condenados pelo insucesso da sua ação, os outros não vão mais querer trabalhar. Às vezes, o resultado independe da vontade do promotor. Pode haver dificuldades em levar provas ao processo, em ouvir testemunhas, porque elas não vão depor, ou da perícia técnica que não está dotada de instrumentos necessários e adequados para elaboração do ato pericial. Uma das coisas que ainda mantém o Ministério Público de pé — e deve continuar assim — é a independência funcional e a inamovibilidade. É a certeza de que, custe o que custar, inclusive a própria vida, enquanto o promotor estiver agindo dentro da lei, ele não será removido nem coagido por ninguém a fazer algo que não seja o correto.

ConJur — O senhor já se deparou com alguma situação de tentativa de coação?
Paulo Rangel —
Certa feita, como promotor de Justiça em uma comarca, descobri que o prefeito atrelou o salário dele à arrecadação municipal. Ele ganhava 1% da arrecadação e mais dois terços de representação; o salário dele era de R$ 50 mil. Entrei com Ação Civil Pública e consegui a diminuição do salário dele. Arrumei um grande inimigo, houve uma pressão política tremenda. Ele dizia que ia me tirar de lá. Mas eu tinha inamovibilidade. Se eu pudesse ser removido, a sociedade ia perder. Mas, é claro que os membros do Ministério Público têm e devem ter responsabilidade para saber que não devem agir por impulso, por injunções políticas, nem imbuídos de qualquer outro espírito que não seja o de fazer justiça. Exatamente para impedir que haja uma ação ministerial em desacordo com aquilo que a sociedade busca na figura do Ministério Público.

ConJur — O senhor disse em uma palestra que, em matéria penal, os promotores ainda têm uma visão xiita do processo. Existe alguma orientação de promover ações penais para buscar punições?
Paulo Rangel —
Não. Isso vem da própria história da instituição e da origem de seus membros. Teríamos que fazer um estudo sociológico de quais classes sociais vêm os membros do Ministério Público, que tipo de ensino e de preparo técnico possuem e, por fim, entender que a visão não é do MP, é da sociedade a qual o Ministério Público faz parte e representa. As pessoas têm prazer com o mórbido, com o sofrimento alheio. A sociedade é punitiva, é xiita, desde que não seja com ela. Se fizermos uma pesquisa e perguntar para as pessoas: “Vocês querem uma Polícia honesta, limpa e correta, um Ministério Público forte e independente, e um Judiciário implacável?”. As pessoas vão responder: “Sim. Desde que não seja para me processar”.

ConJur — A tendência é querer todo rigor para punir os outros?
Paulo Rangel —
Sim. Um exemplo claro, conhecido de todos nós, é o caso lamentável do filho da atriz Cissa Guimarães. O rapaz atropelou, matou o filho dela e fugiu. O pai dele, homem de classe média, foi corromper o policial. Se tivermos Polícia, Ministério Público e Judiciário implacáveis será o caos na sociedade, que não quer e nem está preparada para isso. A sociedade quer aquele guarda que aceita o dinheiro. A sociedade é hipócrita, porque quer um Ministério Público forte e implacável contra os outros, não contra ela. Tanto que quando o Ministério Público sobe o escalão, no sentido de perseguir e de punir crimes de colarinho branco, há um massacre para cima do órgão. Eu divido o MP antes e pós-Constituição. Este último ainda é muito novo e não aprendeu a trabalhar com todas as prerrogativas que tem. Com o tempo, seus membros vão estudando, refletindo, em busca de informações de outras disciplinas que nos ajudam a enxergar o Direito em uma dimensão maior. Mas isso exige a disposição de olhar além daquilo que até então se está olhando. Esse é um desafio não só do Ministério Público, mas de todas as classes jurídicas.

ConJur — O senhor pode contar um pouco da sua experiência no Júri? Histórias que tenham marcado esses 18 anos de atuação no Tribunal do Júri.
Paulo Rangel —
Tenho muitas. Certa feita, fiz um Júri em uma cidade do interior. Eu pensei que fosse entrar em uma partida que, de 10, já estava com o placar de 8 a 0. No caso, o marido deu três tiros pelas costas da esposa e a deixou paraplégica. Ele fugiu e, depois, foi preso. No dia do julgamento, resolvi ouvir a mãe da vítima, sogra do acusado. Pela sua própria natureza jurídica de sogra, já era o terror. Como a filha ficou paraplégica, a mãe que passou a fazer todos afazeres dela. Seria importante esse depoimento. Levei a vítima, que estava na cadeira de rodas, ao plenário. Só isso já causou impacto. Quando a sogra, uma senhora muito rude, de poucas luzes, sentou na cadeira para prestar depoimento, ela perguntou ao juiz se podia falar a verdade. Sim, ela não tinha o compromisso de dizer a verdade, mas era a verdade que todos queríamos para colaborar com a Justiça. Na hora, pensei que já estava com 9 x 0; com aquele depoimento, fecharia com todos os gols. Foi aí que ela surpreendeu: “Esse homem é um santo doutor. Vive do trabalho para casa e de casa para o trabalho. Minha filha que é uma vagabunda, não presta, não vale nada. É uma prostituta”. A mulher contou que a filha estava na cama com outro homem quando o genro a flagrou e, descontrolado, atirou contra a mulher. “Se a minha filha não fosse uma vagabunda, isso não tinha acontecido”, disse a mãe da vítima. Eu comecei a escorregar da cadeira onde estava sentado para debaixo da mesa.

ConJur — O senhor ainda tentou argumentar?
Paulo Rangel —
Tentei. Falei que era um absurdo atirar pelas costas. Enfim, eram quatro mulheres e três homens no Júri. Já via os homens olhando torto. No final, o defensor disse que me admirava, que eu era um homem que falava seis idiomas, com mestrado, doutorado, um monte de livro publicado, começou até a inventar. E arrematou: “Se fosse com o doutor Paulo Rangel seria diferente. Ele chegaria em casa e, ao flagrar a esposa nessa situação que a mãe descreveu aos senhores jurados, diria ‘Cavaleiro, por gentileza, o senhor queira colocar essa roupa e se retirar da minha casa. Minha esposa, vá se vestir, pois precisamos discutir a nossa relação’”. Os jurados riram muito. Conclusão: perdi de 7 a 0. Em outro Júri, um homem conseguiu ser absolvido depois de matar o irmão de sua amante, que tinha relação sexual com a própria irmã e ficou com ciúmes do homem com quem a irmã passou a ser relacionar. O homem que matou o rapaz foi absolvido, porque era espécie de coronel da cidade e influenciou os jurados ao ameaçar todo mundo. No final, esse continuou vivendo com a amante e com a esposa. São dois Júris que eu guardo na lembrança como duas situações esdrúxulas.

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