"Vamos investir maciçamente em conciliação"
6 de junho de 2010, 9h31
O caos do sistema prisional é uma chaga viva a incomodar a sociedade brasileira e a causar preocupações nos três poderes da República. O Executivo tenta combater o grave problema da superlotação com a construção de novas instalações. O Ministério da Justiça anunciou, recentemente, a destinação de R$ 500 milhões para criar 30 mil novas vagas nas cadeias públicas do país. Já o Judiciário, pelo Conselho Nacional de Justiça, criou o Mutirão Carcerário, um programa voltado para revisar prisões e supervisionar o funcionamento da Justiça Criminal. Desde 2008, o programa já colocou em liberdade mais de 20 mil detentos em situação irregular.
Quem também está diretamente envolvida no enfrentamento à crise do sistema prisional é a Defensoria Pública. Com a atribuição constitucional de defender os interesses das pessoas carentes, a Defensoria tem como clientes as principais vítimas do caos prisional. Como bem mostrou o Mutirão Carcerário, são os pobres que acabam esquecidos nas prisões, mesmo depois de cumprir suas penas ou antes até de serem julgados.
Em São Paulo, responsável por um terço da população carcerária do país, o problema está entre as prioridades da nova defensora pública-geral, Daniela Sollberger Cembranelli, de 42 anos. “Sabemos que essas pessoas vivem em condições desumanas, tratadas, às vezes, como verdadeiros bichos. A Defensoria quer investir seus esforços na questão da execução criminal para aquela pessoa que já tem direito de progredir de regime”. Desde 2008, a Defensoria Pública de São Paulo já entrou com mais de 5 mil Habeas Corpus para livrar da cadeia gente que não deveria estar presa.
Casada com um promotor de Justiça – Francisco Cembranelli, que ganhou notoriedade por atuar com êxito na acusação do caso Nardoni – Daniela defende a competência da Defensoria para promover Ação Civil Pública, como uma forma de ampliar seu desempenho em favor dos desvalidos. "Essa possibilidade tende a racionalizar o trabalho da Defensoria".
Daniela dedicou sua vida a defender pessoas carentes, mesmo quando a defensoria paulista não existia. Aos 25 anos, época em que ingressou na Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, tratou de trabalhar no serviço de assistência judiciária. “Eu me apaixonei. Eu era procuradora do Estado, mas logo quis ingressar na procuradoria de assistência judiciária da PGE”. Na função, a defensora passou a fazer defesas criminais no Tribunal do Júri. Por lá, passou 15 anos. “Lutar pela ampla defesa sempre foi minha bandeira.”
Nesta entrevista à ConJur, Daniela Cembranelli fala sobre os desafios do futuro para a Defensoria Pública de São Paulo, explica como será sua gestão e anuncia seus planos para a fiscalização dos presídios pelos defensores.
Leia a entrevista:
ConJur — O que a defensoria pode fazer para levar Justiça para quem não tem acesso à Justiça?
Daniela Cembranelli — O papel do defensor é bastante amplo. Primeiro, a Constituição de 88 estabeleceu que uma instituição pública seria responsável pela assistência judiciária. A Constituição já muda o tema: antes a gente falava assistência judiciária, ela estabelece que é assistência jurídica. Prestar assistência jurídica para os necessitados é muito mais do que advogar para uma pessoa pobre. É também atuar extrajudicialmente. Além de patrocinar uma causa em juízo, pela lei, é atribuição do defensor público também promover a educação em direitos. Ou seja, primeiro conscientizar e depois motivar a população carente. O defensor público deve se aproximar das comunidades carentes, fazer cursos populares, buscar as pessoas mais vulneráveis para conscientizar que existem direitos. Também temos de fazer conciliação e mediação. Quando chega alguma pessoa para ser atendida na defensoria, o defensor deve chamar a parte contrária e tentar a conciliação. Porque essa é uma solução até para a pacificação social. O que nós queremos é não deixar que todo litígio se judicialize.
ConJur — Evitar a judicialização dos conflitos é uma das bandeiras da defensoria?
Daniela Cembranelli — O meu projeto, nos próximos dois anos, é investir maciçamente na área de conciliação. Recentemente nós fizemos um concurso para o ingresso de servidores na defensoria especializados em assistência social e em psicologia. Queremos abrir núcleos de conciliação e mediação, com a participação de defensores públicos, assistentes sociais e psicólogos. É um trabalho sério, que deve ser feito por profissionais que têm habilidade na área. Eles farão cursos sobre conciliação e mediação pela escola da defensoria. Cada defensoria regional vai ter um Centro de Atendimento Multidisciplinar, o CAM, com um psicólogo, um assistente social e um defensor público juntos, promovendo conciliação e mediação de conflitos.
ConJur — A ideia é tentar a conciliação em todos os casos?
Daniela Cembranelli — Sim. Quando uma pessoa procurar a Defensoria Pública para ingressar com uma ação judicial necessariamente deverá passar pelo CAM. Vai conversar com o assistente social, o psicólogo e o defensor público, a outra parte será chamada, e a defensoria tentará promover a solução desse conflito de modo a não judicializá-lo. Essa é a parte mais relevante do meu projeto. Acredito que isso irá contribuir para um Judiciário mais rápido, ágil, por não levar demandas para ele. E também poderá solucionar conflitos de uma forma muito mais eficaz e pacifica. Vamos investir todos os esforços no Centro de Atendimento Multidisciplinar.
ConJur — Qual é o orçamento para a criação do CAM?
Daniela Cembranelli — Estamos tentando trabalhar com a estrutura que temos. Conseguimos nos apertar e otimizar os nossos recursos da melhor maneira possível. Mas sem dúvida a defensoria precisa crescer em número de defensores. O governo está sensível a isso, tanto que no ano passado criou mais 100 cargos. Já fizemos um primeiro concurso e foi provida uma parte. Agora estamos no segundo e até o fim do ano 78 cargos serão providos. O edital já está prestes a sair. Em 2011, já precisaremos de outro concurso para prover mais cargos.
ConJur — Qual seria o número ideal de defensores em São Paulo?
Daniela Cembranelli — Se você considerar que temos 2 mil juízes e 1,8 mil promotores na ativa acredito que deveríamos ter entre 1,5 mil a 2 mil defensores. Surgimos com 400, temos mais 100.
ConJur — Falta muito ainda…
Daniela Cembranelli — Muito. Mas sabemos que esse é um processo paulatino, gradual, sabemos das dificuldades. Acreditamos muito na sensibilidade do governo para isso, por ser uma função social, voltada para a população carente. O pleito será de mais cargos já esse ano para que a gente possa fazer o concurso para o ano que vem, porque é demorado, tem que contratar empresa, fazer edital.
ConJur — Como está organizada a Defensoria?
Daniela Cembranelli — São vários núcleos e esses núcleos são coordenados por um defensor público e tem a participação de outros defensores. Nos dividimos por área, há defensores que atuam só em VEC [Vara de Execução Criminal], outros só no crime [Vara criminal], em infância e juventude [Varas de Infância e Juventude], varas cíveis, varas de família. Temos também núcleos de Direitos Humanos, de Direito da Mulher, de Habitação e Urbanismo. Temos o Núcleo do Idoso, que vai cuidar também da questão dos deficientes. Há um núcleo contra todo tipo de preconceito, que trata de assuntos como homofobia. Vamos criar um núcleo de consumidores.
Conjur — Qual a área que precisa de mais defensores?
Daniela Cembranelli — Pela Constituição, a prioridade deve ser dada à infância e juventude. Hoje temos defensores trabalhando em todas as Varas de Infância e Juventude, tanto na capital quanto no interior. É preciso cuidar da infância e adolescência justamente para ter um cidadão no futuro. Mas a Defensoria não consegue abranger todas as cidades de São Paulo, então é evidente que há lugares em que essa área está descoberta. Assim como a Vara de Execução Criminal é fundamental. A questão dos presídios no país inteiro é um grande problema e em São Paulo também. Em 2008, a Defensoria ingressou com cerca de 5 mil Habeas Corpus para evitar que prisões indevidas fossem decretadas, para impedir que pessoas que praticaram fatos de menor relevância, furto de bagatela, fiquem presas.
ConJur — O direito individual deve prevalecer sobre o direito da coletividade?
Daniela Cembranelli — Não é disso que se trata. Porque para o coletivo é melhor que pessoa não seja encarcerada, porque indo para a cadeia certamente ela vai para uma escola de crime. Permitir que pessoas aguardem em liberdade seu julgamento não atinge a sociedade do ponto de vista negativo. É preciso lembrar que, pela Constituição, todo mundo é inocente até que seja condenado com uma sentença transitada em julgado. Hoje se prende porque a lei autoriza uma prisão instrumental, a prisão cautelar, que tem o objetivo de resguardar a instrução criminal do processo. Os juízes têm que ser mais rigorosos na análise de requisitos para a prisão cautelar. E, hoje, o que mais se vê são pessoas, que poderiam aguardar o processo em liberdade, presas.
Conjur — A prisão cautelar muitas vezes usada como uma condenação antecipada…
Daniela Cembranelli — Com certeza. Às vezes, a pessoa fica presa pelo tempo que seria a pena e, no final do processo, é absolvida. Que tipo de perigo prepresenta para a sociedade o autor de um crime pequeno cuja pena é de um ano, um estelionatário, por exemplo? Claro que ela precisa de uma reprimenda, mas pode pegar uma pena alternativa, talvez doa mais para ela pagar uma indenização do que ser presa.
ConJur — O que acontece com a pessoa que ficou presa cautelarmente durante um ano e depois é absolvida?
Daniela Cembranelli — Dependendo do caso ele pode até ingressar com uma ação de indenização contra o Estado. Se for uma pessoa carente, a Defensoria promove a ação de indenização.
ConJur — E a defensoria incentiva a entrar contra o estado nesse caso?
Daniela Cembranelli — É um direito que é assegurado ao cidadão que ficou preso indevidamente e se ele tiver intenção de ingressar com ação de indenização a Defensoria promoverá a ação.
ConJur — Como se resolve a questão dos presídios no país?
Daniela Cembranelli — Tem uma questão socioeconômica a ser enfrentada importante, mas a defensoria tem muito a contribuir sobretudo preocupando-se com a questão das condições de tratamento das pessoas que estão presas. Isso não pode continuar. Uma pessoa que está presa tem direito a sua dignidade. Não é porque cometeu um crime que deve ser tratada como um animal. Ela tem direito a saúde, a higiene, a comer, a dormir. E hoje o que nós vemos são pessoas que às vezes tem que se amarrar na grade porque não tem espaço na cela para poder dormir.
Conjur — E o Estado diz que gasta R$ 2 mil por detento…
Daniela Cembranelli — Mas isso é uma questão de mentalidade, enquanto o Judiciário continuar mantendo presas pessoas que já poderiam progredir de regime nós vamos ter essa situação. Nunca vai ser suficiente, por mais que o Estado construa presídios, gaste com os presos, se não mudarem essa mentalidade de encarceramento não vai se resolver. O encarceramento não é uma solução para a criminalidade, mas a mentalidade é essa, porque as pessoas são refratarias à idéia de desencarcerar.
ConJur — A Defensoria tem ajudado nos mutirões do CNJ?
Daniela Cembranelli — A Defensoria contribui com o trabalho do CNJ, que é um trabalho muito bom em relação aos presídios. Participamos de mutirões nacionais e até coordenamos um desses. Há um trabalho do CNJ junto com as Defensorias e o Condeg (Conselho Nacional de Defensores Gerais).
ConJur — A senhora já participou de mutirão?
Daniela Cembranelli — Já. Fizemos um trabalho no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros no ano passado para verificar uma situação de superlotação.
ConJur — E como foi?
Daniela Cembranelli — Cada mutirão tem o seu foco. O que nós fizemos especificamente no ano passado foi ver a situação irregular de presos provisórios, ou seja, presos que estavam aguardando sentença e continuavam no CDP. Os nossos coordenadores de execução criminal têm, por lei, a atribuição de visitar estabelecimento prisional.
ConJur — A vigilância da defensoria fez diferença em algum presídio?
Daniela Cembranelli — Só de o diretor da casa saber que a defensoria faz uma visita semanal ao presídio, já muda. No começo havia uma resistência para que a defensoria ingressasse nesses locais, alguns estabelecimentos exigiam que avisassem da sua ida antes. Mas, como isso é uma prerrogativa legal, conversamos muito com a Secretária de Administração Penitenciária até que foi acertado que não precisaria mais de avisar com antecedência. Hoje, o defensor entra tranquilamente.
ConJur — E como é a relação da Defensoria com o Tribunal de Justiça de São Paulo?
Daniela Cembranelli — A conversa com a presidência do Tribunal de Justiça, hoje, é muito boa. Estamos negociando para fazer um sistema integrado de processamento de dados entre a Defensoria e o TJ, para que os defensores possam ter acesso aos processos de forma mais fácil.
ConJur — A Defensoria está se preparando para o processo eletrônico?
Daniela Cembranelli — Já adquirimos o certificado digital para todos os defensores, o processo de licitação acabou, compramos e está na fase de implementação. Em Brasília, temos um escritório de representação, cujo coordenador, que é um defensor, já peticiona eletronicamente com essa certificação digital.
ConJur — A Procuradoria do Estado de São Paulo tem reclamado do ativismo judicial. Na hora de decidir, o juiz tem que pensar no impacto econômico e social?
Daniela Cembranelli — Cabe ao Judiciário, sim, promover esse papel. O Supremo tem feito isso muito bem. Muitas vezes se supre até o papel do legislador para garantir direitos fundamentais. Não chamaria nem de ativismo judicial, mas de uma responsabilidade do Judiciário com o exercício dos direitos fundamentais de cada pessoa.
ConJur — Ao pleitear competência para mover Ação Civil Pública, a Defensoria não está invadindo a área do Ministério Público?
Daniela Cembranelli — Não. Existe previsão legal para a Defensoria entrar com Ação Civil Pública, um instrumento importante para reunir várias demandas em uma única causa. Esse possibilidade tende a racionalizar o trabalho da Defensoria. Em vez de receber 50 moradores de uma comunidade carente, onde há um problema de saneamento e promover 50 ações, a Defensoria vai promover uma Ação Civil Pública em favor daquela comunidade.
ConJur — Mas esse não é o papel do Ministério Público?
Daniela Cembranelli — É também. Mas não há que se falar em choque de interesses e de atribuições, porque os dois têm essa atribuição. O Ministério Público faz isso em favor de toda a sociedade e a defensoria faz no âmbito da tutela da pessoa carente. Esse é o diferencial.
ConJur — Se o Ministério Público entrar na área de pessoas carentes vai invadir uma competência da Defensoria?
Daniela Cembranelli — Não. O MP pode também fazer. Há ações que são promovidas pelos dois conjuntamente. É uma somatória de forças para garantia de direitos fundamentais, da Defensoria e do Ministério Público que tem a prerrogativa de defender a sociedade.
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