Penhora administrativa

"Credor não pode ser juiz do próprio crédito"

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17 de julho de 2010, 9h07

Gilberto Fraga - Spacca - SpaccaSpacca" data-GUID="gilberto-fraga-spacca2.png">Com a adoção do modelo de penhora administrativa antes do ajuizamento das execuções fiscais, a administração tributária pretende dar um passo maior do que as pernas, e corre o sério risco de cair. É o que avisa o tributarista Gilberto Fraga, membro da Comissão de Assuntos Tributários da Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro. 

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, o advogado prevê uma verdadeira hecatombe caso o Projeto de Lei 5.080/2009, que tramita em caráter de urgência na Câmara dos Deputados, seja aprovado. Esta é a segunda de duas entrevistas feitas pela revista exclusivamente sobre o assunto. A primeira, com o procurador da Fazenda Nacional Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy, foi publicada nesta sexta-feira (16/7).

A proposta coloca nas mãos dos procuradores das Fazendas estaduais, municipais e federal o poder de localizar e bloquear valores e bens de devedores antes mesmo que as execuções fiscais sejam ajuizadas. A ideia é adiantar o processo, já que a constrição de bens que garantam os valores discutidos é a fase mais complicada das ações.

O cenário é preocupante. Segundo Fraga, embora bem intencionados, os procuradores não darão conta nem de encontrar os bens, nem de responder às contestações de devedores que alegam já ter pago os débitos, ou que queiram trocar as garantias. A falta de eficiência exigiria a terceirização da cobrança, que inclusive está prevista no projeto, com o protesto em cartório das dívidas não garantidas. 

Além disso, os curtos prazos para ajuizamento de execuções fiscais depois das constrições demandariam seguidos pedidos de suspensão dos processos até que as Fazendas conseguissem descobrir se o contribuinte pagou ou não o que é cobrado. Isso manteria recursos financeiros e bens importantes bloqueados por tempo indeterminado, o que daria ensejo para ações de cobrança contra o Estado por lucros cessantes e perdas e danos. "Seria o caos", diz. 

Tudo isso, segundo o advogado, é desnecessário diante dos recursos à disposição da Justiça. "Uma série de inovações posteriores ao início da discussão da constrição administrativa esvaziaram o projeto", afirma. Entre os exemplos ele cita o processo eletrônico, o bloqueio online de valores e bens, usado com frequência pelos juízes, e a não obrigação de ajuizamento de execuções de dívidas já prescritas.

A entrevista é uma amostra do que o advogado vai expor em um debate sobre o assunto no Rio de Janeiro, no próximo dia 20 de julho. A OAB do Rio convidou procuradores, advogados e juízes para discutir o projeto. Entre os expositores estão o procurador-regional da Fazenda Nacional no Rio, Paulo César Negrão de Lacerda, os juízes federais Marcus Livio Gomes e Maria do Carmo Freitas Ribeiro e a advogada Daniela Gusmão, presidente da Comissão de Assuntos Tributários da OAB-RJ e membro da comissão correspondente no Conselho Federal da OAB. O evento será organizado na sede da entidade, das 10h às 13h. Clique aqui para saber mais.

Leia a entrevista:

ConJur — Qual sua visão geral sobre o projeto?
Gilberto Fraga — O projeto transfere a jurisdição executiva, o início dos atos expropriatórios, da esfera judicial para a esfera administrativa. Isso acarreta uma redução de garantias constitucionais de proteção do indivíduo. Ele acaba tendo o seu patrimônio sujeito a uma violação, sem que a questão seja submetida previamente ao crivo do Judiciário. Esse projeto de lei também perdeu uma grande oportunidade de olhar para o lado dos contribuintes. Por que já não positivaram a possibilidade de garantia com o oferecimento de precatórios vencidos e não pagos? Estamos falando hoje de uma lei que pode ser aplicada a mais de cinco mil municípios.

ConJur — Mas a proposta apenas adianta a exigência de garantia da dívida antes que a execução seja ajuizada. É correto chamar o novo modelo de “execução administrativa”?
Gilberto Fraga — Sem dúvida é errado. O que existe é um ato preparatório da execução fiscal, mas que já envolve a expropriação do patrimônio. Parte do patrimônio correspondente ao valor da dívida já fica indisponível por um ato unilateral do próprio credor.

ConJur — Qual o prejuízo prático?
Gilberto Fraga — Uma das garantias constitucionais é que a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito. Esses atos de constrição, independentemente dos embargos que se possam interpor contra eles, envolvem questões que exigem a participação de um órgão equidistante, imparcial, que certamente não pode ser o próprio credor. O credor não pode ser juiz do próprio crédito.

ConJur — Que questões poderiam comprometer o devedor?
Gilberto Fraga — Por exemplo, a inclusão, de forma absurda, de um corresponsável na cobrança da dívida do devedor principal. Ou então no caso de outro processo que garanta a suspensão da exigibilidade da mesma dívida, inclusive com depósito judicial, por meio de liminar. A Fazenda poderia não saber, não cruzar as informações. Imagine o risco, citando outro exemplo, que empresas em processos de falência ou concordata poderão correr. O credor não pode simplesmente dizer qual garantia ele aceita. O princípio da menor onerosidade do devedor precisa ser levado em conta, e não é o credor quem vai dar tempero à aplicação desse princípio.

ConJur — O prazo dentro do qual o fisco pode manter o bem ou os valores bloqueados não é curto até que a execução seja ajuizada?
Gilberto Fraga — Se a procuradoria bloqueia via online recursos financeiros correspondentes a um débito já pago pelo contribuinte, a Fazenda tem três dias para ajuizar a execução fiscal. Ao receber a execução, pelo projeto, o juiz não pode se manifestar de ofício sobre a validade da constrição, salvo para algumas exceções. Imagine que o contribuinte entre então com embargos. A Fazenda poderá pedir a suspensão da execução para apurar melhor as alegações desses embargos. Ou seja, o fisco poderá manter os valores bloqueados por tempo indeterminado, apesar do limite de três dias. É a interpretação que se faz do artigo 24, parágrafo 1º do projeto. O parágrafo 3º diz ainda que a Fazenda Pública terá 30 dias, salvo prorrogação deferida pelo juízo, para analisar se o contribuinte pagou ou não, como alegou nos embargos.

ConJur — O risco é o mesmo para pessoas físicas?
Gilberto Fraga — Imagine um ex-diretor de uma empresa que, embora tenha saído há quatro anos de lá, teve o nome incluído no pólo passivo de uma cobrança. Em um belo dia ele é notificado e não tem sequer os elementos para a defesa. Sem patrimônio, tem bloqueadas reservas econômicas de uma vida inteira, que usa para manter a família. Apesar de aquele débito já ter sido pago, esse ex-diretor pode ter seu dinheiro bloqueado por tempo indeterminado. Até pouco tempo atrás, quando o fisco colocava o sócio como responsável pela dívida previdenciária da empresa, os juízes federais sempre diziam o seguinte: “credor, emende a inicial e justifique por que incluir no pólo passivo, como devedor corresponsável, o sócio da empresa”. Se o projeto de lei for aprovado, essa cautela tida pela função jurisdicional não vai poder ser prestada.

ConJur — No caso de penhora, haverá espaço para o contraditório nas procuradorias?
Gilberto Fraga — O projeto de lei estabelece que o devedor poderá alegar: pagamento, compensação anterior à inscrição em dívida ativa, e causas de nulidade da Certidão de Dívida Ativa que possam ser verificadas de plano. Ou seja, não se discutirá matérias de fundo, que demandem uma dilação de prova.

ConJur — Isso pode prejudicar a obtenção de Certidões Negativas de Débito, por exemplo?
Gilberto Fraga — Uma vez inscrita a dívida ativa e notificado o devedor, ele poderá ingressar em juízo por meio de embargos, mesmo que não haja constrição de bens. O que nós vemos na prática é que muitas vezes o débito pode estar inscrito em dívida ativa, mas pela ineficiência da máquina, esse crédito não é levado a juízo. O contribuinte fica então em um limbo, sem poder conseguir uma Certidão Negativa de Débitos. Ele só consegue a certidão depois que a execução é ajuizada. É de se esperar que haja a mesma demora no que se refere à notificação de inscrição na dívida ativa, prevista no projeto.

ConJur — Como isso poderia acontecer?
Gilberto Fraga — O artigo 26, parágrafo 2º da proposta, diz que diante de manifesto risco de dano ou de difícil ou incerta reparação, a execução ficará suspensa mediante garantia. Se os embargos forem ajuizados após a notificação, e o juiz considerar que há iminente dano ao embargante, ele pode determinar a suspensão da execução. Com essa suspensão, a parte fará jus à CND. Mas se o contribuinte não é notificado, não pode entrar com os embargos, só com uma ação autônoma, e a concessão de liminar ou antecipação de tutela está condicionada ao oferecimento de garantias extremamente custosas. Nesse caso, só ficará suspensa a execução mediante garantia consistente em depósito em dinheiro, fiança bancária ou seguro garantia.

ConJur — Uma das justificativas do projeto é a diminuição do tempo que uma execução fiscal leva para terminar. De acordo com o fisco, a discussão administrativa leva cerca de quatro anos, e a judicial mais 12. Nesse sentido, ele é coerente?
Gilberto Fraga — Esse argumento poderia ser procedente há alguns anos atrás. Hoje, nós vivemos na fase do processo virtual. Um processo que levava quase um ano para ser remetido a um tribunal superior leva hoje sete minutos, tramitando virtualmente. Além disso, os juízes hoje têm ferramentas que permitem o bloqueio online de recursos financeiros e bens. Depois da implantação do processo virtual e do maior número de varas, a execução fiscal se tornou muito mais rápida. Outro argumento é que a partir da Lei 11.941, do ano passado, os procuradores passaram a poder reconhecer de ofício a prescrição, e não ter que ajuizar execuções manifestamente prescritas. Também há ferramentas de controle concentrado que tendem a diminuir o número de processos, como a repercussão geral e a Lei de Recursos Repetitivos. Quer dizer, uma série de inovações posteriores ao início da discussão da constrição administrativa esvaziaram o projeto. Por outro lado, se a proposta passar, vai haver uma multiplicação de incidentes que os contribuintes levarão ao Judiciário durante a constrição preparatória. Em vez de tirar do Judiciário o que eles chamam equivocadamente de função meramente burocrática de proceder a constrição, serão levados um sem número de contestações aos atos desapropriatórios.

ConJur — O efeito será inverso.
Gilberto Fraga — Hoje, no lugar das varas de execuções, a situação caótica é nas Fazendas públicas, no que se refere à mão-de-obra de apoio ao trabalho dos procuradores. Há casos em que o contribuinte é intimado a apresentar defesa no auto de infração, mas para ter vista dos autos tem de esperar sete dias úteis. Para ter cópia do processo com prazo fluindo, são dez dias úteis, em média. E ainda se fala em um projeto que cria novas atribuições? As Fazendas Públicas estão sofrendo de uma série de problemas relacionados a tecnologia de informação e falta de mão-de-obra qualificada e capacitada. A morosidade, no que se refere à satisfação da dívida ativa, não pode ser imputada ao Poder Judiciário, mas sim a esses problemas.

ConJur — A Fazenda não teria condições de cumprir a própria lei?
Gilberto Fraga — São inúmeras novas atribuições, mas não se cria uma carreira de apoio, um plano de carreira, não se investe em tecnologia da informação. Não há um sistema de dados confiável e disponível para as procuradorias. Se aparelhassem, se dessem melhores condições para os procuradores, com certeza a dívida ativa hoje não apresentaria índices tão negativos de satisfação.

ConJur — Existe o receio de que, com as novas atribuições, os procuradores não dariam mais conta do trabalho, o que serviria de justificativa para se começar a terceirizar a cobrança da dívida ativa. Isso é razoável?
Gilberto Fraga — O protesto de dívida ativa em cartório é uma prova disso. O projeto diz que, uma vez que o crédito seja inscrito, o contribuinte terá 60 dias para pagar, parcelar ou apresentar uma das três modalidades de garantia. Se não adotar nenhuma dessas três condutas, vai ter que dizer quais são os bens e direitos que possui. Se ele não informar, a Fazenda Pública poderá solicitar o protesto da Certidão de Dívida Ativa junto a um tabelionato de protesto de títulos. Essa figura do protesto da CDA é uma sanção política que funciona unicamente como meio de coerção ao pagamento do tributo. As Súmulas 70, 323 e 547 do Supremo Tribunal Federal rechaçam esse tipo de medida, e a questão específica do protesto de débito tributário já foi rechaçada pelo Superior Tribunal de Justiça.

ConJur — A OAB chegou a ameaçar de cassação da licença os procuradores que usassem a constrição administrativa, por entender que essa é uma ação jurisdicional e não da advocacia. O senhor concorda?
Gilberto Fraga — Acho desnecessário que o debate caminhe para esse lado. Há argumentos de ordem prática e de ordem jurídica que são bastantes para mostrar o descabimento desse projeto de lei.

ConJur — Também se chegou a dizer que os fiscais da Receita Federal passariam a poder arrombar casas para procurar bens. Isso mostra desconhecimento de quem critica o projeto?
Gilberto Fraga — Esse foi um equívoco inigualável. Só se pode arrombar uma casa com ordem judicial. É um entendimento tão precipitado quanto o de que os procuradores poderiam penhorar o faturamento das empresas sem ordem judicial.

ConJur — A OAB alega que o projeto não foi debatido o suficiente. Mas a ideia ganhou força há pelo menos três anos, principalmente no Legislativo.
Gilberto Fraga — Esse modelo de constrição administrativa já existia na época do Império, e morreu com o advento do Mandado de Segurança, em 1934. A ideia foi sepultada e depois ressuscitada por conta de uma defesa de tese do então procurador da Fazenda Nacional Leon Frejda Skalorowski, nos anos 1970. No ano passado, um projeto de lei trouxe a questão à tona e começou a tramitar, mas, infelizmente, a OAB não foi instada a se pronunciar no início das discussões. Agora é que as audiências públicas estão começando.

ConJur — O Sistema Nacional de Informações Patrimoniais reunirá informações sobre patrimônio, renda e endereço de todos os contribuintes, e ficará à disposição de todos os procuradores federais, estaduais e municipais. Isso ameaça o sigilo?
Gilberto Fraga — Não se teve o trabalho de sequer mudar a sigla. O SNI remonta a uma época negra, infeliz, que nós brasileiros não gostamos de lembrar. É realmente um perigo liberar o acesso a esses dados a todos os municípios do Brasil, principalmente tratando-se da questão política. Isso pode ter um aspecto de inconstitucionalidade no que se refere à intimidade do contribuinte.

ConJur — A penhora administrativa já existe em outros países. Por que aqui seria ruim?
Gilberto Fraga — A realidade brasileira não permite que se trate com o estudo de Direito Comparado a justificar a introdução desse novo modelo de cobrança. Há uma série de peculiaridades que tornam inviável a introdução desse projeto. Nos Estados Unidos, se a constrição for feita de modo equivocado, a sanção para o agente é gravíssima. Faltou colocar isso no projeto. Em alguns países tem até pena de prisão para o agente que se equivocar. Hoje, se é feito um bloqueio online manifestamente indevido, qual a sanção para o funcionário? Não estou defendendo prisão, mas nós temos que ter uma penalidade funcional grave para inibir o desleixo e a negligência.

ConJur — Em casos como esses haveria abertura para ações cobrando lucros cessantes, por exemplo?
Gilberto Fraga — Sim, há precedentes no Brasil nesse sentido. Mas imagine o tormento de um cidadão em, além de ser cobrado indevidamente, ter que pagar advogado para entrar com ação de perdas e danos. É um tormento.

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