Aplicação e dúvidas

Lei Maria da Penha completa quatro anos neste sábado

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7 de agosto de 2010, 6h38

Neste sábado (7/8), a Lei Maria da Penha completa quatro anos, com resultados que dividem juízes, integrantes do Ministério Público e advogados. A lei, que pretende coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, é considerada inconstitucional por alguns, na meida em que aplica penas diferentes para o mesmo crime. Mas para quem atua diretamente com os casos, a norma é um remédio eficaz no combate à violência contra a mulher.

A lei leva o nome da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes que ficou paraplégica após sofrer agressões de seu marido. Marco Antônio Heredia Viveiros, professor universitário, foi julgado e condenado a 15 anos de prisão. A defesa recorreu e a condenação foi anulada. Em 1996, foi feito um novo julgamento e ele foi condenado a 10 anos. Porém, Viveiros ficou preso por dois anos.

O caso teve repercussão internacional e o Brasil foi condenado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) pela demora na punição do agressor: passaram-se 22 anos até uma solução definitiva. Com a pressão, o projeto de lei foi sancionado pelo presidente em 2006.

De acordo com a redação da lei, o seu objetivo é “criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher”. Ao alterar o Código Penal e a Lei de Execuções Penais, a norma permite que o juiz decrete uma prisão preventiva em caso de agressão ou ameaça de agressão à companheira. E é exatamente nesta previsão da lei que reside a polêmica.

Entre os mecanismos criados para cuidar desses casos, nos quais a mulher é vítima de violência dentro de casa e quando existe relação de afeto, existe um conjunto de medidas que podem ser aplicados além da punição ao agressor, como explica a juíza Tatiana Franklin Regueira do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar de São Paulo.

"O Juizado conta com uma equipe multidisciplinar formada por psicólogos e assistentes sociais que oferecem cursos para recuperação familiar", explica. Quando uma mulher entra com uma representação contra o agressor, se existe uma relação íntima de afeto, é marcada uma audiência com a participação dos dois. Se o casal continua junto, ou tem filhos, ele é encaminhado para um curso.

"Em casos de lesão corporal leve, o homem que agride a parceira e é dependente químico terá como punição frequentar o grupo Alcoólicos Anônimos. A vítima é encaminhada para tratamento psicológico", ressalta.

Desde que foi inaugurado, em 22 de janeiro 2009, o Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar de São Paulo teve 4.077 procedimentos distribuídos, entre inquéritos, medidas cautelares e processos criminais. Para a juíza, a lei se aplica aos casos nos quais existe uma relação íntima de afeto que pode estar caracterizado em um casamento, união estável, ex-marido ou até mesmo um namoro.

Tatiana afirma que o juiz precisa analisar caso a caso para verificar se a lei deve ser aplicada. Mas existem relações domésticas que não envolvem companheiros e não permitem a sua aplicação. "Às vezes, um irmão que subjulga a irmã, se ela de fato for submissa a ele, pode ser englobado pela Maria da Penha. Então ela poderá solicitar medidas protetivas ou de afastamento", exemplifica.

De acordo com a juíza, a lei modificou e continua surtindo efeito no combate a violência. "Há pouco tempo cuidamos de um caso no qual a mulher ficou em coma, e quando acordou percebeu-se que estava paraplégica após agressões de seu companheiro", lamenta. "A lei é ótima e tem dado instrumentos para que a sociedade mude como um todo, mas o melhor resultado depende da sua efetiva aplicação dela", completa.

Conflito de competência
O sumiço de Eliza Samudio, amante do goleiro do Flamengo Bruno de Souza, fez com que a juíza Ana Paula Delduque de Freitas do 3º Juizado de Violência Doméstica do Rio de Janeiro recebesse críticas e acusações pela interpretação que deu à Lei Maria da Penha (11.340/06). Em outubro de 2009, Ana Paula remeteu a queixa da estudante à Justiça Criminal comum porque o relacionamento mantido pelos dois não se tratava de uma relação familiar ou doméstica, e assim, afastou sua competência para cuidar do caso.

"Considerando que a vítima informa que apenas ‘ficou’ com o agressor, com ele não mantendo qualquer tipo de relação afetiva, familiar ou doméstica, não pode a virago, sob pena de banalizar a finalidade da lei Maria da Penha, socorrer-se das medidas protetivas e tentar punir o agressor com agravamento da pena. A Lei 11.340/06 tem como meta a proteção da família, seja ela relação afetiva. E não na relação puramente de caráter eventual e sexual", diz a sentença.

Para Ana Paula, como Eliza disse que apenas manteve relações sexuais com o agressor, não poderia aplicar o mecanismo. "Não pode, contudo, a lei ser encarada como forma de paternalizar o sexo feminino em qualquer que seja a circunstância. A lei, repito, foi criada visando a garantia dos direitos individuais dentro de uma relação afetiva ou familiar, e não, proporcionar uma forma de desequilíbrio, de vantagem para qualquer dos sexos", escreveu a juíza.

Se o caso não é contemplado pela lei, é remetido à Justiça criminal comum, sem a distinção de gênero. A discussão sobre o conflito de competência poderia ter sido resolvida por jurisprudência estabelecida pelos Tribunais Superiores. Mas o próprio Superior Tribunal de Justiça tem entendimentos distintos, e isolados.

No Conflito de Competência 100.654 julgado pela 3ª Seção do STJ, em 2009, os ministros entenderam que o caso concreto definirá se a Lei Maria da Penha deve ser aplicada em relações íntimas de afeto. Na situação específica, a ex-namorada era ameaçada de morte por ter terminado o relacionamento de quase dois anos, o que atraiu a aplicação da norma. Mas, em 2008, a mesma Seção não reconheceu o namoro como relacionamento em que a Lei Maria da Penha possa ser aplicada.

Interpretações
A minúcia de que tipo de relacionamento estaria contemplado pela lei não está explícito, por isso, limiares semânticos permitem interpretações díspares, como afirma o juiz Rubens Casara, da 2ª Vara Criminal de Campo Grande, Rio de Janeiro. Para ele, a mais correta é aquela mais restritiva, que prevê que exista de fato um relacionamento mais sólido, isso porque, a lei fala de violência doméstica e de vítima está oprimida.

"O problema é que todo texto legal tem que ser interpretado", aponta. Mas, para Casara, não é a lei que deve reduzir a violência doméstica. "Os crimes não vão deixar de acontecer por conta do Estado", endossa. Ele diz ainda, que a lei tem uma história e que segundo a própria história não é qualquer tipo de relação homem e mulher que está contemplada na lei. "É preciso haver uma relação na qual há opressão", reforça.

Para o juiz, "a lei pode ser uma saída fácil para a substituição do Estado social para o Estado penal". "Essa lei é meramente simbólica e não pode solucionar problemas culturais", diz e acrecenta: "não vejo uma redução desse tipo de agressão, assim como não existe redução de violência por conta do Código Penal".

Para a procuradora paulista Luiza Nagib Eluf, esse debate que decidirá de quem é a competência para julgar o caso faz com que a lei deixe de ser cumprida. "Sempre que dá, a pessoa empurra para outro, suscita o conflito e até o tribunal decidir já não adianta mais a prestação jurisdicional porque a violência já ocorreu", critica.

"Há uma resistência da Justiça em aplicar corretamente a lei", analisa e acrecenta que a lei pode ser aplicada em casos de violência de gênero. "O texto não faz distinção e restrição quanto ao tipo de relacionamento a que se aplica", ressalta. Para ela, qualquer caso que envolva uma mulher em uma condição de opressão poderá ser abrangido pela Maria da Penha.

Luiza diz ainda que mesmo que o juiz não tenha a competência para julgar um caso, ele pode deferir uma medida protetiva a fim de evitar que algo ruim aconteça com aquela pessoa que procurou ajuda. “A meu ver, a sentença dessa juíza é equivocada e muitos dos nossos operadores do direito ainda não entenderam qual é a finalidade da Lei Maria da penha”, finaliza.

Críticas severas
Outro ponto que ainda gera dúvidas, apesar de ter sido objeto de uniformização, é se o prosseguimento do processo criminal depende ou não da representação da vítima. Através do rito imposto pela Lei dos Recursos Repetitivos, o Superior Tribunal de Justiça decidiu que é imprescindível a representação da vítima para propor Ação Penal nos casos de lesões corporais leves decorrentes de violência doméstica.

O artigo 16 da lei dispõe que, "nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público". 

Para o advogado Márcio Barandier a lei cria uma distinção de gênero que a Constituição Federal não permite. "Há um tratamento penal agravante para situações penais idênticas", explica e critica também o fato de a mulher só poder desistir do processo na audiência anterior ao recebimento da denúncia, e não a qualquer momento da ação. O advogado afirma que a lei trouxe benefícios porque mulheres sofrem violência doméstica, mas é preciso atenção para não servir de instrumento para apenas prejudicar o parceiro.

A juíza aposentada Maria Lucia Karam afirma que "a lei que pretende romper com a discriminação e opressão, insiste na criação de mecanismos que acabam por incentivar a discriminação". Para ela, a lei é inconstitucional na medida em que afasta a aplicação da Lei 9.099/95 (Juizados Especiais e Criminais), uma vez que os processos correm no Juizado Especial. ritica a vedação de acordo entre as partes e a possibilidade de desistir apenas em audiência perante o juiz. "É contraproducente", sentencia. 

Para ela, não é possível avaliar se a lei trouxe mudanças. Mas garante que "o que mais contribui para superar situações de desigualdade entre homens e mulheres é mentalidade das pessoas".

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